quinta-feira, 6 de julho de 2023

Banheiro interditado [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor sem graça.]

Começo com uma nota prévia e peço desculpas, mas nem tudo no mundo são perfumes, desodorante Brut e Leite de Rosas no mundo laboral.
No setor onde trabalho, o banheiro masculino, sem saída de ar externa - mas com uma ventoinha que liga junto com a luz, e não sei se tem outra função -, é composto oficialmente de duas cabines e duas pias. Digo oficialmente porque há sempre algum problema a assombrar o referido espaço no ambiente de trabalho.
Um dos problemas, já assumido como tradição da casa, é com uma das torneiras. Ninguém a usa - salvo quando a outra está pifada -, porque não se lava só as mãos nela, mas boa parte da calça e da camisa e, a depender da altura da pessoa, dá pra lavar o peito também, tamanha a força com que a água sai. Praticamente um trote aos novatos - ou a eventuais visitas ao setor que decidem ir ao banheiro.
O outro problema se dá sempre com a mesma cabine - justo a mais ampla e convidativa. Por muito tempo sua descarga quebrava reiteradamente. E lá íamos nós, dois dias sofrendo com os odores da retrete - talvez sofrendo até mais que o pessoal da faxina, porque esses, como não era com eles, não tinham o que fazer, e podiam se dedicar aos outros banheiros do local (por sinal, isto não é uma queixa ao trabalho da faxina, nem nessa nem em outra situação, no máximo critico a terceirizada, assim como quem contrata essa terceirizada, pelos salários vergonhosos pagos e pelo papel que nos disponibiliza - isso quando não fica duas semanas sem repôr a contento). Esse problema foi dado por resolvido quando nobre colega Carmen, que tem experiência com obras, arrancou a caixa de descarga e passamos a apertar direto no parafuso da instalação. Resolveu um problema, mas trouxe outro, menor: a maioria dos usuários do banheiro masculino, sem sensibilidade para apertar algo pontual como um parafuso, soca o dedo até onde pode, transformando a cabine numa grande poça d'água (limpa! O que suja, às vezes é a terra do sapato).

O problema atual, nessa mesma cabine, não sei bem qual é. De qualquer modo, agiram rápido e antes que acumulasse odores, puseram um aviso de banheiro interditado, escrito com giz de cera azul. Houve alguma discussão sobre esse detalhe lúdico do cartaz (ainda que no setor de Fernández, funcionário do topo, ele tenha tido que pintar mapas com lápis de cor, para economizar a tinta colorida da impressora), mas todos respeitaram. Ao cabo das conversas, sempre uma certa indignação: custava imprimir uma folha com um sinal de caveira, o aviso de interditado e em caso uso, risco de arma química? Instrutivo, direto, sem chances de achar que era piada.
Entretanto, o problema maior não foi esse, mas o detalhe reparado pelo nobre colega Goreti na cabine ao lado: marcas de garras na parede. Isso gerou novo debate, e desta feita mais acalorado - e mesmo com certa apreensão. Contando que estamos no décimo andar, não há janelas no banheiro e as marcas são próximas ao chão, excluímos a possibilidade de uma pomba gigante, do tamanho de uma curucaca. As curucacas, por não existirem em São Paulo, também foram excluídas - e junto excluímos aves grandes em geral. Gato foi outra opção levantada, mas como o bicho não foi até o alto da cabine - sem falar que ninguém nunca viu um gato dentro de todo o prédio -, descartamos a possibilidade. 
Todos com medo de assumir, mas a opção mais razoável que nos pareceu foi a de um rato, que teria subido pelo encanamento - talvez atraído pelo cheiro da outra cabine em um de seus outros problemas? - e tentado escalar a cabine. Pareceu bastante razoável e para evitar uma histeria coletiva, optamos por não comentar com as mulheres do setor - cuja anatomia não permite o uso da retrete em pé. Nobre colega Desembargador, entusiasta do Capirotinho, que adorava contar que recebia pra fazer cagadas, tem evitado essa pequena vingança contra a espoliação da mais-valia que sofre - e desconfio que tenha medo de ratos, porque tem escovado os dentes (fora do horário de almoço, claro, que como o nome diz, é para almoçar e não para fazer higiene bucal, como bem ensina o Capirotinho) com uma velocidade impressionante.
Estamos nessa situação há dois dias, e hoje o nobre colega Macedo trouxe a hipótese de alguém com "dificuldade de ir aos pés" ter feito aquelas marcas. Não sofro desse tipo de constipação, mas me pareceu meio exagerado alguém espernear e se debater com tamanha veemência na cabine apenas por certo congestionamento em seu tráfego intestinal. Desembargador, por seu turno, achou mais plausível que a história do rato. Daí, então, a necessidade desta crônica de utilidade privada: colega com prisão de ventre: coma mais fibras!

06 de julho de 2023


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa. 

quinta-feira, 29 de junho de 2023

Um palhaço a tentar resgatar a criança de antigamente

Depois de quatro meses de aula, compramos e finalmente iríamos estrear a menor máscara do mundo. Minha grande preocupação ao chegar na aula e pegar meu nariz era ver como ele ficaria em meu rosto - ornaria ou não? Teria comprado um muito grande ou muito pequeno? (E quem sou eu pra me preocupar com tamanho de nariz de palhaço, eu que tenho uma cabeça pequena e uma napa avantajada? Enfim, a hipocrisia).

A aula foi incomum: ao invés de brincadeiras e exercícios de improvisação, exercícios de preparo corporal - que me trouxeram duas práticas corporais que sinto muita falta, as aulas de dança contemporânea com a Key Sawao e o boxe (a outra é tai chi, mas eu tento praticar em casa, de vez em quando) -, e depois uma fala convidando a rememorar o percurso de cada pessoa, em quem e no que nos marcou em todo nosso processo de vida, até chegar nesse quase-palhaço, nesse proto-palhaço, nesse palhaço-primordial pronto a se fazer em instantes - porque o palhaço é uma persona, não uma atuação. Em roda, porém voltados para fora, de olhos fechados, pusemos o nariz numa inspiração, e lentamente abrimos os olhos. “Vejam o mundo com olhos de criança”, convidou Paulo, o palhaço-professor. 

Abri os olhos muito lentamente, vi a rotunda: a textura do tecido me trouxe de pronto a lembrança do banco do ônibus que ia com minha mãe visitar meus avós. Chegávamos em Ponta Grossa meio da madrugada, eu só com meio olho aberto. 

Anos mais tarde, eu parava para visitar meu avô quando ia de Pato Branco para Campinas. Indicava ao taxista o caminho do asfalto, tal qual minha mãe fazia quinze anos antes, e de olhos bem abertos eu presenciava seu sorriso se multiplicar em dezenas pelo vidro da porta da sala, quando me via, enquanto ele tateava o molho de chaves atrás da certa para abri-la. 

O guarda-louça onde estavam as bolachas que eu comia ao chegar na casa deles, depois de ter ficado em minha casa de Pato, quanto meus pais eram vivos, hoje ocupa minha casa em São Paulo - mas a então criança pouco sabia da morte e das perdas, ou melhor, conhecia, mas não conseguia apreender, por mais que o adulto tampouco saiba lidar direito com elas.

O olhar de criança, de quem está descobrindo o mundo, sugerido pelo Paulo, fez aflorar também uma criança ansiosa por pôr ordem nessas descobertas todas, sem notar o ridículo de sua pretensão de toda uma vida. Uma criança que sofria bullying na escola e que aprendeu a evitar toda demonstração de afetos em público, para evitar ser alvo de chacotas - sempre o menos vulnerável possível, com minha cara de paisagem. O que parece ter refletido naquele nariz foi uma criança apolínea, irritada com todos aqueles palhaços falando fora da ordem, quando dava para se organizar, todo mundo assumir a ribalta na sua vez e a seguir dar a vez para o coleguinha.

O que esse palhaço precisa aprender é que essa criança, agora já adulta, pode entrar na brincadeira, sem medo do ridículo, porque tem repertório para entender a situação que está por trás de nossas ações, medos e anseios - e por saber o quão ridículo, o quão palhaços, somos todos.

 

29 de junho de 2023