quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Carrinho de picolé

Há quatro anos minha mãe veio a São Paulo para meu aniversário - e, de quebra, conhecer o apartamento para o qual eu havia recém mudado. Chegou no fim da tarde e no outro dia pela manhã, tão logo acordei, me perguntou, perplexa:

Dani, eu meio que acordei de madrugada com galinhas cantando, como acontecia quando eu era criança. E não deu a impressão de que foi um sonho.

De fato, não havia sido um sonho: no pátio da escola em frente havia várias galinhas, que faziam barulho o dia todo - que eu adorava, diga-se de passagem.

Mas não estamos a um quilômetro da avenida Paulista?

Em Pato Branco, minha mãe só voltaria a ter esse tipo de experiência no fim de sua vida, quando voltamos a morar com ela e meu irmão pegou quatro galinhas para criar no quintal.

Somado a isso, o fato da rua ser muito silenciosa fazia com que eu me sentisse em outro lugar, no interior ou em outro tempo, ainda que pudesse desfrutar das vantagens da maior cidade das Américas em vinte minutos de caminhada. As galinhas, infelizmente, sumiram no meio da pandemia. Restou a escola, cuja algazarra dos alunos todas as manhãs remete à minha infância: na esquina de onde morava, estava a escola Dona Frida, a segunda escola da cidade, e a hora do recreio a gritaria era tanta que abafava até mesmo o som da serraria que ficava a uns cinquenta metros (sentido centro da cidade). Esse fuzuê foi muitas vezes meu despertador. Foi a destruição dessa escola, que era também a casa da dona Frida, uma das pioneiras da cidade e então com Alzheimer, que fez com que eu deixasse de reconhecer Pato Branco como minha cidade - se reduzindo, então, à casa de meus pais.

Hoje, sem galinhas na escola e um ano a mais para pôr nos formulários, acordo cedo e tomo café com Lia. Ela sai para o trabalho e eu volto a dormir. Era para eu estar no início de minhas férias, mas o burnout chegou antes e com ele a licença médica. No meio da manhã, tal qual minha mãe quatro anos atrás, acordo com sons familiares, e me questiono se sonhei ou não. Apuro os ouvidos e novamente toca o “apito de picolé”, que me leva à casa de meus avós maternos, na periferia de Ponta Grossa (em Pato Branco os vendedores com carrinhos ainda não tinham incorporado essa tecnologia). 

Havia os picolés de água, que eram doces, mas perdiam o gosto muito cedo e eu ficava incomodado de jogar fora o gelo que sobrava (meu pai toda refeição ressalva o “com tanta fome no mundo, nunca desperdice comida!”), havia os de leite, que eram melhorzinhos, e havia os de massa, meus favoritos, mas além de serem caros, segundo minha mãe, eu só comprava se fosse comer em casa, com uma colher de verdade, porque o sorvete vinha com uma colherzinha de pau e desde cedo eu tenho ojeriza a esse tipo de artefato na boca - mesmo que seja ver outra pessoa: meus amigos e colegas de trabalho sabem, já presenciaram meu escândalo involuntário quando essa cena aterrorizante acontece em minha frente.

A recordação é nostálgica e gostosa. Apita novamente. Sinto falta o barulho das galinhas de meus avós para a lembrança ficar completa - Ponta Grossa era um permanente domingo para mim, mesmo eu já crescido. Vou até a janela, não vejo nenhum sorveteiro. Será algo na escola? Ouço outras duas apitadas até que surge em meu campo de visão um homem oferecendo amolação de facas e outros objetos cortantes. É então que noto que a lembrança é boa porque meus pais tinham emprego, salário, podiam pagar um sorvete desses; não eram eles a empurrar esses carrinhos baixos, todos os dias, debaixo do sol, no calor, assoprando o dia todo as mesmas notas, contando trocados para ver se pagavam as contas básicas do dia.

A memória é traiçoeira. O que para mim é algo gostoso, no fundo é só o apito da precariedade na qual vive a maior parte da população, situação piorada desde 2015, quando foi empurrada para uma sobrevivência indigna pelas nossas elites  - coloniais, mesquinhas e pusilânimes -, e justificada a quem sofre esse açoite desnecessário por uma mídia sem escrúpulos e por mercadores da fé que fazem da religião uma droga - mas não o ópio apontado por Marx, e sim aquela entregue às crianças-soldado, descrita por Ahmadou Kourouma.

O apito do picolé passa. A lembrança dos cheiros e texturas da casa de meus avós também se esvai. A exploração e as injustiças sociais perduram.


19 de outubro de 2023


sexta-feira, 21 de julho de 2023

Banheiro interditado, 2 - o desvelar de um mistério [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor sem graça.]

Nos anos 90, as pessoas mais antigas vão se lembrar (não que eu tenha como me lembrar disso! Foi uma dessas que me contou, me falha a memória se foi o nobre colega Carnegie ou a nobre colega Meireles), havia uma propaganda de refrigerante em que, num primeiro momento, um líquido verde insinuantemente refrescante era despejado num copo; no momento seguinte a câmera abria o plano e no vasilhame do qual tal líquido saía e lia-se “óleo de fígado de bacalhau”; a seguir a voz em off recitava o slogan: “imagem não é nada, sede é tudo. Respeite sua sede”. Moral da propaganda: podemos ter sede do que for, inclusive de óleo de fígado de bacalhau, e isso merece ser respeitado por todos. Havia também quem interpretasse a mensagem como um alerta de que as imagens enganam, mas não acho que uma propaganda teria interesse em ludibriar alguém.

De qualquer modo, vou utilizar essa segunda interpretação para falar de criança: aparências enganam. Crianças bem comportadas, ou costumam ser pobres crianças reprimidas e infelizes; ou não são tão bem comportadas assim. Falo por experiência própria: sempre fui essa criança exemplo para professores e pais de amigos: artes fazia algumas, claro, mas eram coisas simples e não mereciam nem uma bronca de verdade. As artes mais espoletas, que mereciam ir para direção, tomar bronca, chamar os pais, quando não faziam a coordenação quase ter um chilique, essas eu nunca fiz - apenas era o mentor intelectual para meus coleguinhas com menos tino (e menos ideias).

Uma das grandes estratégias que criei quando criança foi sugerir que dois colegas arranjassem qualquer pretexto para serem levados pela professora para a coordenação, deixando livre até sua volta ou a chegada do bedel para outro colega aprontar alguma, como esvaziar o extintor de pó no corredor (outra ideia minha). Deu muito certo! O problema foi que meu colegas adoraram a estratégia e depois de três vezes ficou evidente o estratagema. Houve outros casos, mas não me lembro agora - nem depois, e se alguém lembrar, não é verdade!

Em meu último texto acerca do ambiente laboral no qual me encontro, comentei do banheiro, o aviso de interditado numa das cabines, ainda antes dos efeitos se fazerem sentir pelas vias olfativas, a estranheza de tal aviso estar escrito em giz de cera, e as marcas na porta da outra cabine - não sabíamos se de um rato (ou outro animal) ou de alguém com prisão de ventre violenta. Terminava as referidas linhas com um serviço de utilidade pública, sugerindo ao dono do intestino com sérios problemas de tráfego que comesse mais fibras. 

Se essa sugestão foi útil, não sei - creio que não -, porém o texto não deixou de ter suas utilidades. Duas, para ser mais específico.

Isso graças à colega Nudd (sim, tenho uma colega a uma letra de ser uma Ludd, e nem isso a sensibilizou a se tornar uma ludista). Ela leu meu texto e o pavor do rato no banheiro se espalhou agora também entre a ala feminina do setor. A tese de Macedo, o nobre colega, das marcas serem de alguém com prisão de ventre, não convenceu - também ninguém se apresentou como sendo o autor daquelas marcas de unhas na porta da cabine. 

Eis a primeira utilidade pública: agora temos todo um setor com medo de se sentar no trono durante o expediente. Provavelmente os chefes, se ficarem sabendo da minha existência e destas mal traçadas linhas, vão me agradecer, pois isso significa menos tempo ocioso. Claro, como bons liberais que são, tem suas limitações cognitivas, e nenhum momento em seus MBA de gestão de pessoas e negócios eles devem ter se questionando se uma pessoa com vontade de ir ao banheiro renderá mais que uma pessoa com suas funções fisiológicas elementares satisfeitas - o importante para eles é que seus subordinados fiquem o maior tempo possível na posição de trabalho, mesmo que não estejam trabalhando (para um liberal, imagem é tudo; e sede dos outros, ou qualquer outra necessidade que não lhe renda lucro, não é nada).

A segunda utilidade pública foi saber que nosso estranhamento com o cartaz não era sem motivo - a começar pelo fato de que a cabine não parecia estar com problemas naqueles dias. Estamos em julho, ou seja, férias escolares. Consequência lógica: volta e meia algum colega traz seu pimpolho para passar oito horas aqui, por falta de para onde despachá-los e não terem ainda idade para ficarem sozinhos em casa. A colega Nudd foi uma que trouxe a filha algumas vezes - uma garota de uns dez anos, muito bem comportada, ainda que faladeira, se lhe derem atenção. Pois ao se deparar com a foto que ilustrava o texto anterior, com o aviso de banheiro interditado escrito em giz de cera azul, de pronto a colega Nudd reconheceu a letra da filha - ou seja, não havia interdição alguma na cabine. 

Sim, uma criança bem comportada - como eu era.


21 de julho de 2023

PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.