sábado, 13 de abril de 2024

Nós, Cidadãos-Medusa [Diálogos com o teatro]

“Medusa, me transforme em pedra e me use”, grita o ator, pintado de prata. Uma forma de gritar mais forte a desumanização sofrida pelas pessoas que vivem na região central de São Paulo conhecida como Cracolândia. "Cracudos", "nóias", "zumbis das drogas" são termos que corriqueiramente se usa (muitas vezes em tom de piada em conversas de amigos, a mostrar a seriedade com que se olha para essa questão) para destituir essas pessoas em situação de extrema vulnerabilidade de sua humanidade, para não ver nesses outros a mesma matéria que nos constitui, para não ver nessas vidas a culminância do nosso modo de vida - nosso quotidiano louvor do capital que tem como “externalidade negativa” de todo o ouro reluzente o prata aquecido em cachimbos improvisados. Com quantas pedras de crack se faz uma carreira de cocaína na Faria Lima?

Porém, Cena Ouro - Epide(r)mias, da Cia Munguzá, mais que denúncia de desumanização sofrida pelos usuários de crack da região, vem nos mostrar que essa desumanização também nos afeta. E o faz nos mostrando um pouco de algumas vidas que habitam a região. Histórias de pessoas, de vidas comuns, como a minha, como a sua que lê este texto, com diferenças dadas antes pela classe social, cor e gênero que pelo uso mesmo da droga. É nessas histórias de vida que vem a verdadeira denúncia da desumanização: a nossa própria, feita da nossa cegueira, do nosso preconceito, do nosso egoísmo, da nossa resistência ao assumir que a condição daquelas pessoas nos tem como corresponsáveis.

Na ótima tessitura do texto, ao dar vez e voz a seis personagens da região, o espetáculo permite que nos miremos também no espelho - quem sabe mesmo não nos mobilize a de fato mudar esse estado de coisas, ao invés de simplesmente aplaudir ao cabo. 

Afinal, somos nós a Medusa a quem o ator evoca, somos nós quem petrificados essas pessoas, que as estigmatizamos, que tornamos em pedra esses corpos - sequer a personificação do crack, antes uma metonímia, a própria droga. Pergunto aos meus concidadãos-Medusa: depois de reduzi-las a pedras, o que temos feito com elas?


12 de abril de 2024


PS: Aos que não puderam assistir ao espetáculo, há um podcast com a história em mais detalhes das pessoas frequentadoras da região envolvidas na peça: https://youtube.com/playlist?list=PLUNX2xPu9iqvxUVDriu77rIfsM7rt1CL9&si=4vJK11vvGJVTAVoG

terça-feira, 9 de abril de 2024

Tilt Test [por Sérgio S., ex-Trezenhum. Humor Sem Graça.]

Dia desses andei tendo umas vertigens estranha. Uma vez, vá lá, acontece. Duas, a gente fica alerta. Quatro, aí a preocupação aperta - ainda mais depois de consultar o Google. Porque se as vezes que tive essas vertigens foram em casa, sem maiores riscos, imagina se a tenho na rua, se desmaio no meio do centro de São Paulo num início de noite ermo. Ou, então, acontecer de eu ir num restaurante caro e logo em seguida ter a tal vertigem e devolver a comida, como aconteceu na terceira vez - em que acreditei que a tontura era por conta de algo que comi, mais especificamente um gorgonzola com nozes, macadâmia e damasco, turbinado por fungos outros, que só vi depois de vários pedaços -, seria muito frustrante e uma grande perda de um dinheiro que não me sobra tanto assim.

Após a quarta vertigem em menos de um mês, como disse, fui perguntar ao Google o que mais poderia ser, além da óbvia labirintite com a qual eu já havia me auto diagnosticado. As opções iam de estresse e ansiedade a tumor no cérebro em estágio avançado - e eu estou com uma pinta estranha nas costas, já faz um tempo, que temo poder ser um melanoma, vai que já se espalhou...

Conto para o Brotinho, que praticamente me obriga a marcar médico - o que eu já ia fazer, a diferença é que por influência dela acabo indo para um neurologista e não para um oncologista, como pretendia.

O médico me faz uma série de perguntas, descartando logo de cara minha nova certeza (de início, achei que era só porque não é a área dele): tem dormido bem? Não. Se exercitado? Não. Tem andado estressado? Muito - afinal, nos encarregaram de preparar pequenos cursos de apresentação do setor aos novos contratados, o que já me desagradou, mas tudo piorou quando Desembargador propôs que sejam teleaulas, proposta aceita com entusiasmo pelo chefe, que anunciou esses dias que já tinha alugado o estúdio.

Até a labirintite ele praticamente descartou de cara, centrando no estresse. Por via das dúvidas, preferiu que eu fizesse alguns exames. Um deles, que necessitava de acompanhante, era o “Tilt Test”. Chamei Macedo para me acompanhar, e ele concordou que o exame soava assaz interessante pelo nome.

Sabe como é?

Segundo o médico, me amarram numa mesa e medem minha reação às inclinações dela.

Achamos muito pouco para um exame de nome tão convidativo. E enquanto esperávamos eu ser chamado, ficamos imaginando o quão interessante não seria.

Lembramos dos tempos do fliperama, quando chacoalhávamos demais a mesa de pinball e vinha o aviso de tilt. Nos pareceu razoável, chacoalha pra lá, chacoalha pra cá, tipo o brinquedo samba dos antigos parques de diversões, mas em versão compacta, e vê como o sujeito lida com todo o sacolejo: se só fica tonto, se passa mal a ponto de querer devolver o que poderia ter no estômago (fica como caso hipotético porque eu estava em jejum, inclusive de água), até o ponto de desmaiar - daí a necessidade do acompanhante. Achamos que um chapéu mexicano compacto seria pouco provável, pois exigiria uma sala muito grande - mas não deixaria de ser interessante, a pessoa presa pelos pés, sendo rodada alucinadamente, ver se reagem bem a esse teste, ao que eu lembrei que aí não seria tilt.


Entrei na sala, colocaram o eletrocardiograma em meu peito e o medidor de pressão no braço. Me amarraram numa maca simples. Fiquei a me perguntar se seria manual o tal tilt test, um enfermeiro bombado dando trancos na maca, sacolejando-a e inclinando-a até eu passar mal - não seria um emprego tão chato assim, além do mais. Mas, quê?! Eu imaginando que seriam poucos minutos sem fim de angústia e sensações diversas no meu corpo, mas nos quarenta minutos que durou, tudo o que passei foi tédio. Vinte minutos inclinado a vinte graus, outros vinte a quarenta graus, depois volta. Me perguntei se o jejum antes de evitar sujar a sala toda, não era para evitar refluxo, mesmo.

Está tudo bem? Não está passando mal, muito enjoado?

Me pergunta a enfermeira, como se eu tivesse passado por um teste pesadíssimo.

Do lado de fora, Macedo me esperava ansioso pra saber como foi.

Todo esse tempo, deve ter sido sofrido, não? Ou essa demora foi para conseguir ficar bem até conseguir se levantar de novo?

Como a desocupada leitora, o desocupado leitor que chegou ao fim deste texto, Macedo também murchou com todo o sem graça do tal "Tilt Test". E, sim, era só estresse, mesmo.


09 de abril de 2024


PS: Este é um texto ficcional, teoricamente de humor. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. A imagem também é ilustrativa.