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sábado, 27 de abril de 2019

Uma ópera que dialoga com o Brasil de 2019 [Diálogos com a ópera]

A escolha pode ter sido fortuita, não sei; se foi o caso, houve algo no inconsciente que certamente norteou a montagem da ópera La Clemenza di Tito, de Mozart, no Theatro São Pedro. 
Último remanescente dos teatros com nome de santo da capital (São Paulo, São José), ainda não foi consumido rapidamente pelo fogo, mas seguidamente está sob fogo estatal, que o queima lentamente (vide sua orquestra, pequena e jovem), sob permanente risco de corte drástico de verbas - quem sabe para transformá-lo em outra loja de cama-mesa-banho (como antigo espaço artístico no Brás), ou numa igreja evangélica, mesmo? -, fogo intensificado sob os atuais governos neofascistas e anti-intelectuais, anticultura (que não seja propaganda louvatória do poder e do líder).
La Clemenza di Tito a princípio é apenas uma ópera a falar de tempos remotos, composta para a coroação do rei Leopoldo II, da Boêmia. A montagem feita pelo Theatro São Pedro (direção musical do maestro Felix Krieger, e concepção, encenação e iluminação de Caetano Vilela), ao aproximar a Roma antiga do século XXI, busca certa sintonia dos elementos, mas também explora dissonâncias, coisas fora do lugar (ou do tempo), abrindo - principalmente no primeiro ato - uma possibilidade leitura política acerca do contexto brasileiro atual.
O cenário feito com andaimes sinaliza um império ainda em construção; há elementos de alguma imponência, brilhos e dourados, porém há algo roto, marcado do início até o fim no grande bloco de granito rachado que fica no centro do palco - sem que seja necessariamente decadência, ruína.
O grande ruído é o figurino. Na verdade foi tentando entender o porquê daquelas escolhas aparentemente infelizes que comecei a fazer a leitura política da ópera. Se o coro estava à romana, os soldados marcavam diversidade étnica, e também uma certa simplicidade no figurino, deixando de lado o realismo. Nos personagens principais, contudo, o ruído é evidente, incomoda, faz pensar. Vitellia com sua roupa vermelha e sua vasta cabeleira branca  parece rainha de cabaré. Sesto e Anio, gordinhos, barbudos, cabeludos, tererê no cabelo, algo meio hipponga, meio saído de Piratas do Caribe, meio saído da casa da mãe não faz muito. Tito com sua roupa cheia de dourado fajuto - se tem pose imperial, a roupa o desmerece.
Tito, quatro letras, como Lula. Um líder carismático, carinhoso, que evita grandes conflitos, preferindo sempre contemporizar e perdoar, deixar quieto (seja aceitando a recusa de Servillia ser esposa de Tito, seja como quando Veja publicou a fake news (então só notícia falsa) de que Lula teria contas na Suíça). Um líder talvez demais deslumbrando com um poder que mais reluzia do que deveras era - e a dificuldade em aprovar grandes mudanças estruturais, talvez mais que falta de vontade de Lula fosse falta de possibilidade, mesmo (como ficou evidente na facilidade com que se desfez, por exemplo, a vinculação de parte das receitas do pré-sal à educação). Pelo visto, nós que nos deslumbramos com o poder, Lula parecia ter mais noção de que o que reluzia ali era ouro de tolo.
Vitellia pode ser interpretada como a burguesia, sempre ávida pelo poder, ainda que não esteja apta para assumi-lo diretamente (por saber da sua incompetência; na ópera, por ser mulher). No fim, acaba por decidir por uma alternativa mais drástica e mais breve para tentar alcançar seu objetivo e acaba dando um tiro no próprio pé: Tito, ao aceitar a recusa de Servillia em casar com ele, escolhe Vitellia como segunda opção; mas nisso ela já havia ordenado Sesto matar Tito, o que significava que acabaria sem o trono.
Sesto é o estereótipo do povo que bate panela da laje de sua casa de bairro classe média. Maltrapilho que tenta imitar os brilhos do imperador, aceita matar Tito, a quem idolatra, para atender ao desejo de seu amor, Vitellia. Interpretado pela mezzo-soprano Luisa Francesconi, a voz muitas vezes mais fina que das mulheres dá um ar de impúbere ao rapaz - apesar das barbas -, e reforça a carência de autonomia. Ao fim do primeiro ato, se tudo indica que Vitellia perderá a chance de ser imperatriz, Sesto deverá ser condenado à morte.
O segundo ato encaminha a trama para um final feliz. Aqui a trama perde seus maiores contatos com o contexto brasileiro - ficando no plano do que poderia ser. É quando o cenário ganha mais ares de século XXI, com um tapume de metal pixado ao fundo - reforçando certo descompasso entre os elementos da montagem. Se na ópera a trama de Vitellia e Sesto acaba mal, mas Tito evita que qualquer um tenha final trágico, a vida real nos presenteia com um drama menos edulcorados: às mazelas do presente que boa parte da população suporta sequer há a justificativa de ser em nome de uma melhora no futuro - são apenas mazelas, como um ataque de gafanhotos, ainda que produzidas pelos donos do poder. A burguesia que fez festa com sua sagacidade desde 2014, se não está tão mal quanto povo, não tem o que comemorar. E Lula/Tito não aparenta ser mais o mesmo paz e amor de pouco tempo atrás - porém tampouco tem posição de poder na estrutura burocrática do estado para começar alguma mudança significativa desde de dentro. Sobra ao povo, Annios e Sestos, se mobilizar, buscar alguma brecha que permite respirar no presente e voltar a sonhar com algum futuro. Vivemos mais que uma crise econômica, e a ópera regida desde Brasília (ou seria Washington?), se se seguir nesse andamento, não terá final feliz para quem está no palco - e na plateia.

27 de abril de 2019

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Uma discussão banal

Esperando a importante discussão se a
bola é redonda ou triangular começar
Caminho apressado - estou atrasado para minha aula -, passo por dois ambulantes que discutem. A mulher que vende não sei que tipo de comida nega energicamente a fala do ambulante do milho verde: "não é de esquerda!". "É claro que é", responde o homem com a calma dos que não apenas acreditam na verdade como creem serem possuidores dela, "eles são do mal, os nazistas. Eles mataram seis milhões de gentes. Isso é coisa de esquerdistas". Eu sigo meu trajeto, a conversa segue às minhas costas, as palavras chegando embaralhadas em meus ouvidos tanto quanto as ideias expostas. Sei que é uma conversa banal para estes tempos surreais de diluição da verdade e da própria realidade, porém ganha uma simbologia extra pelo local onde ocorre: rua Itapeva, no portão da Fundação Getúlio Vargas - provavelmente são seus alunos, talvez alguns funcionários, que compram o que aquelas duas pessoas vendem.
É sintomático esse tipo de conversa acontecer na porta de uma universidade de elite - e elite não apenas porque nela estudam os filhos dos endinheirados, mas por ser uma instituição universitária de excelência, produtora de conhecimento, e conhecimento não na engenharia de materiais ou de microbiologia, mas de ciências sociais aplicadas: economia, administração, direito. É na porta dessa instituição onde ouço um homem afirmar o disparate do nazismo de esquerda: três passos fora de onde se produz pesquisas de excelência, a excrescência das ideias floresce feito mato, feito as saúvas nas terras de Policarpo Quaresma.
Há uma dose muito grande de responsabilidade por parte da academia para esse antagonismo: não aceita dialogar de igual com conhecimentos produzidos fora de seus limites, ao mesmo tempo que restringe quem serão os eleitos a adentrarem seus muros. Na base de todo este absurdo, a existência dos muros. Do que se defendem as universidades para precisar de guaritas nestes Tristes Trópicos? Vale ressaltar que se hoje os muros são palpáveis, feitos de concreto e vidro, é porque cercas mais sutis - como a distância de onde residem as pessoas "normais" - perderam eficácia. Que privilégios teme perder nossa elite intelectual para precisar afugentar dessa forma o povo? Medo de descobrir que o povo (preto pobre periférico, losers da meritocracia) que ela crê limitada é tão ou mais capaz que ela - como provaram as quotas nas universidades públicas, ou como atesta uma fala do Mano Brown frente 90% dos sociólogos tupiniquins?
Comentário de dia desses do historiador Fernando Horta sobre Olavo de Carvalho, astrólogo autoproclamado filósofo, é tão sintomático quanto à discussão que presenciei. Diz ele:
"Querem saber o motivo de todas as defesas de mestrado e doutorado serem públicas? De todos os artigos serem analisados 'pelos pares' e de toda a produção acadêmica ser livre, pública e necessariamente se submeter às críticas ao contraditório?
Para evitar que um idiota passe 30 anos dialogando consigo mesmo, sem nenhuma capacidade de crítica, se achando tremendamente inteligente e depois venha a se chamar de 'filósofo' e encontre um presidente que nunca leu um livro na vida que o chame de 'guru'."
Horta não está errado, de modo algum! Ocorre, porém, que esbarra no limite de crítica que a academia se põe: enquanto produz ciência excelsa é incapaz de dialogar com quem não cumpra seus requisitos, não é parte dos seus "pares" - uma espécie de religião laica (meio laica, vá lá) incapaz de se assumir como tal. Nisso, "um idiota sem nenhuma capacidade de crítica" é louvado pelo presidente da república, impõe um debate surreal à nação, e a academia trata de reagir se autoelogiando, reafirmando que dentro de seus muros tudo é melhor - e a culpa, fica subentendido, é do povo, dos ignorantes, boa parte deles que não puderam entrar e não entendem o que nunca tiveram a chance de aprender, e agora seguem o primeiro picareta capaz de ouvir suas queixas e dar respostas que as satisfizessem (é Olavo, mas poderia ser Silas ou Edir). E o pior: a academia não é capaz de perceber que os apoiadores de primeira hora, assim como os que até agora permanecem com o capitão são os egressos de suas salas de aula!
Se o pensamento racional é capaz de fazer avançar as ciências e as tecnologias a passos céleres, a política é capaz de fazer todo essa avanço retroceder ainda mais rápido - daí a necessidade de usar e valorizar todo o potencial humano e não apenas o racional-utilitário. Se a academia seguir insistindo apenas no discurso racional duro, pretensamente desapaixonado (a ilusão dos intelectuais frígidos), a extrema-direita seguirá ganhando corações e mentes - e eleições! -, insistindo nesse caminho do sucesso, bem resumido pelo atual ministro da educação: "quando você for dialogar, não pode ter premissas racionais". E a história nos mostra: a negação da razão não é a recusa de seus frutos tecnológicos, é apenas sua instrumentalização para a barbárie.

11 de abril de 2019

sábado, 26 de janeiro de 2019

Bolsonaro, Mourão e a disputa interna do fascismo no governo

Robert Paxton enuncia os estágios do fascismo em seu artigo "Five stage of fascism": começa como um movimento de revolta contra a democracia liberal em crise, se sedimenta em um partido político, alcança o poder em aliança com "forças exógenas" (como dirá João Bernardo), tem o exercício do poder (influenciado pela forma como e com quais apoios atingiu o poder, que influencia se se vai além de um mero autoritarismo) e, finalmente, radicalização ou entropia, com o consequente fim do regime. 
João Bernardo, por seu turno, apresenta esquematicamente dois polos nos quais o regime fascista se equilibra e os quais tenta equilibrar: de um lado, o polo endógeno: partido e milícias, sindicatos e milícias; do outro, o polo exógeno: exército e igrejas. Para o ativista lusitano, ainda que acabe por vingar o polo exógeno no poder - como Salazar em Portugal -, não é isso que o exclui de ser um regime fascista, e não um "autoritarismo comum".
Não se trata de transpor os fascismos do século XX para o século XXI e aplicar as mesmas análises. Contudo, há elementos que se repetem - daí porque chamar a extrema-direita de neofascista, e não por algum nome mais original.
Pensando nas experiências atuais, uma primeira mudança a ser notada é no "sindicato e milícias" da tipologia de Bernardo: com a desarticulação do movimento obreiro, graças às reformas neoliberais (ainda que a ênfase com que o capital siga lutando para desmantelar os sindicatos, seja em ataques diretos, seja no estímulo a movimentos identitários isolados, indica o quanto teme sua organização), o neofascismo passa a disputar não mais a representação junto às bases via sindicatos, mas via movimentos - MBL, surgido de afogadilho com o sucesso do MPL, em 2013; o Tea Party, nos EUA, os coletes amarelos na França, etc -, com os quais organiza suas milícias - reais e virtuais. Eu acrescentaria ainda três elementos, ausentes da análise histórica de Bernardo: a burocracia estatal, o capital internacional/transnacional, e o quarto poder, a mídia.
A burocracia estatal pode ser força suficiente para barrar ou acelerar dado movimento: em meu estágio na prefeitura municipal de Campinas pude ver como o corpo mole da burocracia, atuando em passo de tartaruga, é capaz, sem fazer alarde, de queimar o capital político de um secretário; a trinca Moro-TRF4-STF na farsesca condenação do Lula é uma mostra do quanto a burocracia azeitada com certos interesses trabalha feito trator e em tempo recorde.
O capital internacional, apesar de ainda ter país de origem e se apoiar em proteções desses governos, graças à desregulamentação financeira, está cada vez mais livre e forte para mudar de residência, conforme lhe for mais vantajoso - vide o caso do empresário James Dyson, um dos mais entusiastas patrocinadores do Brexit, que decidiu mudar sua empresa para Cingapura, diante do quadro desfavorável para seus negócios na terra da Rainha, por conta do... Brexit. Ao que tudo indica, há uma articulação global desse capital - pensada e organizada, e não apenas por influência do espírito da época -, de modo a enfraquecer ainda mais governos nacionais e garantir suas margens de lucro - por mais que posem de cosmopolitas e liberais, se a promessa de lucros for maior com a extrema-direita, adotam esse figurino sem qualquer titubeio.
A mídia talvez não entrasse nos polos de Bernardo por conta de que na primeira metade do século XX ela ainda estivesse se organizando, dependente do poder estatal e vinculada direta e claramente a ele. Nos tempos atuais, ainda que a dependência estatal exista, há um campo de "liberdade" para a mídia, utilizado como contrapoder a reivindicações sociais, que serve para pressionar governos a seguirem uma linha mais afim aos seus interesses - menos "populista": essa dissociação entre imprensa e Estado é falsa (salvo em governos de esquerda), uma cortina de fumaça para o estado seguir com sua gestão totalitária da sociedade em favor do modo capitalista de produção e especulação. A impressão que tente passar seja no sentido inverso, a mídia é a correia de transmissão do poder entre o líderes e as massas - antes disso, o veículo garantidor das massas enquanto massas.

Trazendo esses esquemas para a eleição de Bolsonaro. O neofascista se elegeu por um partido-milícia, escudado por movimentos-milícias (e por milícias-milícias, estamos nós, reles mortais de fora do Rio de Janeiro, sabendo agora) e financiado pelo capital internacional e considerável fração do capital nacional. Teve ainda forte respaldo de parte do exército (garantido por seu "vice-caução"), de parte da igreja (católica e, principalmente, das evangélicas), da mídia (foi adotado pela Record da Universal do Reino de Deus ainda no primeiro turno, num passo simples mas esperto do bispo Macedo) e por parte da burocracia estatal (evidenciado, por exemplo, nos casos de juízes proibindo manifestações antifascistas nas universidades, sob argumento de propaganda eleitoral contra seu candidato). Outra parcela da grande mídia também o apoiou, antes movido pelos sentimentos de antiesquerdismo e antinacional (e pelo vice-caução), sem grande entusiasmo, como a Globo e a Folha, que desde o início deixaram claro que cobrariam caro não necessariamente por apoio ao governo, mas por uma postura "neutra" (leia-se apagada, sem fazer jornalismo de verdade, coisa que raramente fazem, tampouco sem fazer a publicidade disfarçada a que estão habituados).
Do outro lado, se opuseram os partidos de esquerda (ou parte deles), movimentos sociais, políticos tradicionais (cientes das mudanças nas correlações de forças com a ascensão desse "movimento"), alas minoritárias das igrejas e da burocracia estatal, e parte da imprensa internacional.
Ainda que certamente não faça ideia de quem seja Lampedusa, a proposta de Bolsonaro ia na linha da explicitada pelo autor italiano n'O Leopardo: é preciso que tudo mude, para que (quase) tudo siga como está. O que seu governo prometeu entregar foi a aniquilação da esquerda, o silêncio dos movimentos sociais e as riquezas e empresas nacionais. O uso de ilusionismo para entreter as massas (que não é irrelevante, diga-se de passagem), como a guerra ao "marxismo cultural", à "ideologia de gênero", a adoção do Escola sem Partido, o fim da transparência do Estado, conforme lei assinada pelo Mourão, garantiria que na economia tudo andaria da melhor forma possível.
Alguns erros de planejamento, entretanto, ocorreram: o Febeapá para distrair a atenção das tenebrosas transações começou a prejudicar a sacrossanta economia - os direitos humanos ainda passam como nota de rodapé na mídia internacional, porém a preservação do meio ambiente é tema bastante sensível -; a ingenuidade na lida com os profissionais da política tem sinalizado dificuldades na aprovação de sua agenda; e ao avaliar mal o jogo de forças da comunicação - subestimou o poderio da Globo e superestimou o poder de mobilização permanente da internet aliado à Record, SBT e Rede TV -, comprando briga aberta com a Rede Globo na distribuição das verbas estatais, pode ter cavado a cova de seu governo (está cada vez mais difícil dizer que o envolvimento de Flávio Bolsonaro com milicianos é algo só de Flávio e não de todo Bolsonaro, além da carta na manga da facada fake durante a campanha). Ao mesmo tempo, o vice Mourão posa de estadista democrata, adepto ao neoliberalismo, e já esquenta o assento no Planalto - FHC logo deve vir a público dizer que é o homem público "melhor preparado" para o "Brazil".

Admito que não imaginava um governo tão incompetente, que não conseguiu sequer aproveitar os famigerados "cem dias de lua de mel": Bolsonaro está pior do que Dilma em seu segundo mandato (e segundo mandato já é um pouco mais crítico, ainda mais aliado à vergonhosa inaptidão política da burocrata/tecnocrata Dilma). O que de início seria uma tática de parte da imprensa e do capital nacional para manter o governo acuado, por inoperância de Bolsonaro e seus cupinchas, se tornou em tiroteio aberto atingindo as janelas do Palácio do Planalto a cada edição do Jornal Nacional. Que Bolsonaro seria uma vergonha internacional, isso era evidente (durante as eleições, eu já comentava que ele seria engolido por Cabo Daciolo, caso os dois tivessem participado de todos os debates). Surpreende que não saiba o mínimo de negociação parlamentar, depois de três décadas como deputado e, principalmente, que não tenha conseguido manter a mobilização de suas milícias nem mesmo três meses, finda a corrida eleitoral. Cumprir sua (única) promessa de campanha, de liberar a posse de arma, logo no primeiro mês, queima boa parte do capital político que teria junto a seus eleitores mais fiéis, pois o antipetismo qualquer um abraça. Não foi capaz sequer de imitar Trump, que preferiu tensionar seu muro até o último ano, e tenta agora atribuir seu fracasso aos democratas: Bolsonaro poderia ter tentado via congresso aprovar nova legislação para armas e culpar a "velha política" por não conseguir, só então apelando para um decreto presidencial.
Em suma, Bolsonaro fica na presidência enquanto conseguir entregar as reformas econômicas, não vão esperar uma segunda fraquejada para ejetá-lo. Para tentar fugir das cordas, poderia tentar uma guerra na Venezuela - uma guerra costuma ser um bom instrumento de união nacional e calaboca geral de toda oposição. Porém não apenas o movimento foi abortado pelos EUA, até segunda ordem, depois do recado de Rússia e China, como não encontra respaldo da maioria das forças armadas do Brasil, nem da diplomacia - e os pretensos "falcões" do seu governo não chegam a galinhos garnizés trocando a primeira penugem. Não há sequer clima para forçar um atentado terrorista fake, para mobilizar a opinião pública. Ou seja, as elites já tem o botão de ejetar pronto para ser usado, com um bilhetinho de obrigado pelos seus serviços ao ex-capitão.
Cai bem a dúvida: como é possível esgotar seu capital político tão rápido? Além dessa incompetência geral sua e dos seus com política (e história, e matemática, e economia, e forças armadas, e geografia, e português, e por aí vai...), a forma como esse movimento neofascista se fez foi muito rápido e pouco enraizado: se aproveitou de uma crise do capitalismo, uma crise social, uma descrença com a política e um ambiente antiesquerda fabricado pela grande mídia para, via redes sociais, entrar com seu discurso e inchar rapidamente - impulsionado por erro de estratégia da direita e da mídia, que o pintaram como o candidato oficial do antipetismo, o extremo oposto a essa besta fera da estrela vermelha. Bolsonaro nunca foi líder (que não, talvez, de sua família e de alguns auxiliares muito suspeitos), foi um cavalo de Tróia que apareceu sem querer e a extrema-direita embarcou primeiro, com a direita uspiana indo logo em seguida, quando viu que era isso ou PT.
Há um ambiente propício ao neofascismo - no contexto mundial e nacional -, contudo Bolsonaro não está estabelecido nele, apenas se aproveitou de certo vácuo de lideranças e uma avenida aberta. O MBL e seus desdobramentos no mundo real talvez venham a se constituir efetivamente numa milícia do polo endógeno do fascismo, algo um pouco mais "orgânico", mas eu não apostaria nisso: são marionetes muito fracas, incapazes de se adaptar conforme o contexto vir a exigir. Mais provável que o papel de milícia, caso chegue a se formar, caiba a agentes do próprio Estado. Essa talvez a grande falha do bolsonarismo, motivo para sua rápida queda: não conseguir manter as milícias ativas e, consequentemente, manter o caos (inclusive, é de se questionar os porquês de não conseguir manter sua base ativa). Como alertou Marcos Nobre: Bolsonaro cresceu no caos e só sobrevive no caos. Sem milícias e sem casos de violência aleatória, cometida por mascus se sentindo legitimados pelo presidente, e sem acobertamento de forças de segurança e do judiciário, a chance de um caos onde ele possa surfar diminui drasticamente.

Com Mourão, ascenderia ao poder o polo exógeno do fascismo, o exército. Bem relacionado com os poderes estabelecidos, é de se acreditar num governo menos errante, mais racional, previsível, que vai buscar mesmo a ordem, e não apenas discursar sobre sua necessidade - é de se acreditar que milícias amalucadas não tenham vez e as perseguições a opositores sejam organizadas: quem deve ser perseguido e com quais meios (judiciário, milícia, polícia). Será uma espécie de Alckmin de farda: verniz democrático, fala para ser bem recebido nos meios ingênuos e na mídia internacional, e porrada em opositor, tiro em quem eu não gosto (não convém esquecer que Alckmin foi o primeiro a autorizar e estimular execuções extra-judiciais por parte de seus subordinados com o "quem não reagiu está vivo", Doria Jr e Witzel são apenas a reedição grosseira desse absurdo), panos quentes para os amigos e familiares - corrupção? Só se for de petista! -; o mesmo plano econômico, boas relações com o status quo, bons contatos com os mercados, as elites nacionais e internacionais, e o antiesquerdismo mantido aceso, porém sem se envolver diretamente.
Se Bolsonaro traz risco de vida às pessoas identificadas com a esquerda e os movimentos sociais, Mourão pode ser o cara a abrir a rota para o desmantelamento efetivo dos partidos de esquerda e movimentos sociais, por sair da linha de frente de ataque, e permitir que outras instâncias ajam nessa tarefa, em consonância com as leis do país ou conforme qualquer rito jurídico formal (vale lembrar que Gilmar Mendes - que com Bolsonaro pode ser visto como um aliado, mas apenas nesse caso, e olhe lá - já propôs a cassação do registro do PT). As esquerdas precisam urgentemente de uma análise de conjuntura ampla (para além de quem tem culpa na eleição e se deve ou não apoiar Maduro) e dos seus possíveis desdobramentos, e desde já se anteciparem na sua articulação, na retomada dos trabalhos de base e na construção de uma contranarrativa preventiva, tentando impôr determinadas pautas no debate público - caso não queiram, outra vez mais, ser atropeladas pelas elites e pelo neofascismo ascendente.

26 de janeiro de 2019

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

O judiciário como linha de frente no avanço neofascista [Zeitgeist 2033]

O ativista português João Bernardo, em seu Labirintos do fascismo: na encruzilhada da ordem e da revolta, se nega a apresentar uma unidade coesa nos diversos fascismos do século XX: identifica quatro eixos, que ora colaboram, ora disputam entre si pelo poder, tendo como base social um grupo bastante heterogêneo, de grandes industriais a camponeses, passando por funcionários de colarinho branco. Na página 216 ele cita que Maurice Bardèche, "o mais sábio dos fascistas franceses, prolongou a lição de Ledesma Ramos [um dos principais ideólogos do fascismo espanhol] chamando a atenção para 'a impossibilidade de o fascismo se desenvolver fora dos períodos de crise. Porque ele não tem um princípio fundamental. Porque não tem uma clientela natural. É uma solução heróica. [...] É o partido da nação em cólera. E principalmente [...] dessa camada da nação que usualmente se satisfaz com a vida burguesa, mas que as crises perturbam, que as atribulações irritam e indignam, e que intervém então brutalmente na vida política com reflexos puramente passionais, quer dizer, a classe média. Mas essa cólera da nação é indispensável ao fascismo'. É certo que aquela situação de crise colocava problemas distintos a cada uma das classes e das camadas sociais, mas o fascismo pretendia possuir uma solução comum para essa diversidade de questões". 
"Nação em cólera em período de crise". Para além do momento interno do país e suas disputas de classe, o fascismo do século XX dependeu de um contexto global - redesenho do mapa geoeconômico e geopolítico, hiperprodução e crise do capitalismo. Nesta segunda década do século XXI, novamente uma crise do capitalismo enceta soluções pela via fascista - ainda que guardadas as diferenças para as experiências do século passado, e com muitas variantes acerca de como tem despontado em cada país. A ilusão, com o colapso do socialismo real, de uma "ordem multipolar" controlada pelos Estados Unidos se vê seriamente ameaçada pela emergência chinesa, que busca redesenhar o mapa da produção mundial conforme seus interesses.
A disputa econômica entre os EUA trumpista e a China acerca de tarifas, e a prisão da executiva da Huawei, Meng Wanzhou, no Canadá, a pedido dos EUA, é apenas a face mais evidente desse rearranjo de territórios ainda em aberto. Petróleo e tecnologia 5G (que vai muito além de internet rápida, e na qual a China larga em vantagem [https://on.ft.com/2D4EPaN]) são os grandes motores do momento, e o principal veículo para consecução dos objetivos, neste estágio do conflito, está no uso aberto do judiciário como instrumento de perseguição política. Essa nova fase da guerra comercial entre Ocidente e China, atacando diretamente pessoas, não começou com a prisão de Meng Wanzhou: em dezembro, Patrick Ho Chi-ping, executivo de Hong-Kong que trabalhava para empresas chinesas,  preso desde 2017, teve sua prisão confirmada pela corte federal de Manhattan, por propinas pagas aos governos do Chade e Senegal, na África. Agora é a vez da prisão de Piotr D, um executivo da Huawei polonesa - o maior mercado da empresa chinesa no leste europeu [https://on.ft.com/2SPgYBv]. Isso para não falar nas acusações de espionagem por parte da Huawei, ou de hackers sustentados por Beijing.
A China respondeu à prisão de Meng Zanwhou detendo dois canadenses, acusados de atentarem contra a segurança nacional. O Ocidente reagiu dizendo que se tratam de prisões arbitrárias - deixando de lado a seletividade da justiça estadunidense, pois não me consta que o general Keith Alexander esteja preso por espionagem internacional -, ao que o embaixador chinês rebateu, acusando os críticos de "suprematismo branco".
Possuidora de três grandes reservas petrolíferas - México, Venezuela e Brasil -, e considerada quintal do Tio Sam, a América Latina parece ter sido o grande laboratório para novas formas de intervenção política - popularmente conhecidas como golpe de estado -, diante do fracasso da tentativa de "reformas" via "levante popular" no Oriente Médio. Essas novas formas passam pela instrumentalização aberta do judiciário na perseguição de inimigos internos e externos, atuando sob uma frágil base de ritos formais - seguidos conforme a ocasião -, e se utilizando do direito penal para produção de presos políticos - Jorge Mateluna, no Chile, Milagro Sala, na Argentina, Lula, no Brasil (Rafael Corrêa só não faz parte da lista por estar exilado na Bélgica). A atuação do judiciário tem sempre favorecido os EUA e as elites locais aliados aos interesses do Império. Nos casos em que não atua diretamente, o judiciário avaliza o desrespeito às leis e à Constituição, em nome da caça ao inimigo - como no caso dos impeachment farsescos em Honduras, Paraguai e Brasil.
Claro, a justiça sozinha não é capaz de manter o movimento, daí a necessidade de se ocupar o executivo para aplicar o receituário econômico conforme os ritos legais, e haver exército de prontidão para agir em caso de perturbação da ordem, e a mídia em permanente atuação - fator crucial para alimentar a cólera da nação e explorar bodes expiatórios.
Onde o judiciário pode ser um empecilho, intervem-se nele sem maiores pudores, como no caso da Polônia, Romênia e - exemplos bem mais complexos - Venezuela e Turquia. Aqui, Erdorgan talvez já conhecesse as novas técnicas de uso do poder via intervenção judiciária, e cumpriu a cartilha contra seus opositores antes que fosse feito contra ele - inclusive com o mesmo expediente usado por Moro contra Lula, de bloqueio/confisco de dinheiro dos "inimigos". Na Venezuela, o estado de guerra permanente não declarada contra o país, desde 2002, e intensificada nesta década, empurra o país para o colapso, e Maduro se sustenta como pode - diante de uma oposição que não merece qualquer voto de confiança (Gilberto Maringoni tem feito ótimas análises sobre o país) -, com apoio do exército e do judiciário. Isso, contudo, só é possível porque Chavez foi inteligente em repactuar os poderes do estado e desarticular as elites tradicionais, alinhadas com os EUA e o capitalismo de butim - ajudado por essas mesmas elites, de uma incompetência política invejável, talvez por nunca terem feito política -, reinstrumentalizando o judiciário dentro de sua "revolução bolivariana", o que lhe valeu, por não ser aliado dos EUA, a alcunha de "ditador" por parte de quem acha que os militares no Brasil eram um "movimento" ou uma "ditabranda". Tivesse mantido as estruturas herdadas quando assumiu o poder, teria caído há muito tempo, e seu sucessor, se viesse a assumir, já teria sofrido impeachment (não se trata de defender especificamente a reforma por ele feita, mas ressaltar que mudanças do tipo são fundamentais para garantir mudanças sociais e impedir contragolpes institucionais, feitos à revelia dos interesses do país e da maioria da população).
É para se observar como se comportará o judiciário brasileiro no governo Bolsonaro, em especial quando surgirem as crises: após intervir diretamente no resultado das eleições, com seu principal expoente integrando o governo, o judiciário deverá tentar manter a tutela do governo - como já havia ensaiado no governo Dilma. Contudo, essa mesma tutela é disputada pelo exército, que começou no julgamento de Lula e não deve ser aliviado agora que entrou de cabeça no governo fascista. Para fora das esferas de poder, o que podemos esperar é mais perseguição e sentenças arbitrárias contra opositores do governo - sejam da sociedade civil, sejam do próprio parlamento. 
A resistência, ao que tudo indica, deve vir de fora, num primeiro momento, via pressões de ONGs e da sociedade civil internacional. No plano interno, ainda carecemos de uma melhor organização - sociedade civil, movimentos sociais, partidos políticos -, e aceitar que precisamos abrir mão de purezas ideológicas em nome de acordos com aliados de momento - prontos para pular fora assim que não nos convier mais (e Rodrigo Maia não me parece um aliado de momento, diferentemente de Renan Calheiros e Gilmar Mendes). Bolsonaro já mostrou que fará um governo errático; os que se arvoram no poder já mostraram que logo começarão a disputar entre si, precisamos saber utilizar as brechas, antes que o regime se feche ainda mais.
No plano global, o judiciário deve aumentar sua atuação, não apenas arbitrando litígios econômicos, mas atuando na detenção e no indiciamento dos agentes econômicos "inimigos". Isso até o momento que não se puder mais agir apenas com essa carapuça e partirmos para conflitos abertos. A Venezuela parece ser o alvo da vez: enormes reservas petrolíferas, um governo encurralado e ampla crise econômico-social; Trump necessitado de recuperar popularidade para enfrentar a eleição ano que vem, o governo Bolsonaro precisando um bode expiatório para "calar democraticamente" as críticas e unir a nação, a China avançando sobre o petróleo venezuelano, e a Rússia pronta para fazer o que não conseguiu enquanto União Soviética - pôr os pés no quintal americano. Tudo isso, claro, em nome dos mais nobres valores dos direitos humanos, condoídos pela crise humanitária que assola os venezuelanos, como no Vietnã, no Afeganistão, no Iraque...

11 de janeiro de 2019

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

O discurso mais enfático da posse de Bolsonaro

Não acompanhei a posse do presidente da República, apenas li algumas repercussões na mídia e na minha bolha do Fakebook (e aqueles que usam em sua foto de perfil a frase de que Bolsonaro não é seu presidente, precisam aceitar que ele é, sim, nosso presidente, e atuar a partir desse dado de realidade).
O discurso (verbal) foi o esperado, sem nenhuma novidade. Se alguém imaginava qualquer movimento digno de estadista, de homem público, de mínimo de bom senso, que seja, por parte de Bolsonaro, precisa voltar dez casas e rever sua trajetória política, dos primórdios à transição, sem esquecer de rever suas estratégias de campanha. Se alguém ousou dizer que Bolsonaro, em seus discursos, "desce do palanque" e fala em "governar para todos" ou usou de ironia de maneira infeliz e mal utilizada, ou sofre de sérios problemas mentais, ou é um canalha a serviços dos patrões, temerosos de perder a teta estatal, como Josias de Souza.
O desejo de demonstração do triunfo da vontade fascista, com até meio milhão de pessoas, foi frustrada, e tiveram que se contentar com 115 mil espectadores - pouco mais da metade do número de pessoas que foram na posse de Lula, em 2003 (quer dizer, nas fotos que vi, esses 115 mil parecem iguais seus seguidores na internet, considerável parte não existe de verdade).
O que mais me chamou a atenção, contudo, foi o discurso não verbal em sua foto subindo a rampa do Planalto (ainda mais quando comparada à de Lula): tapete vermelho para o futuro presidente e ao fundo, uma linha de canhões, e o povo muito longe - a depender do enquadro, sequer aparece. Representa um bom retrato de nossas elites - que não tiveram pudores em abraçar (e financiar) o fascista - para consigo próprias: se julgam (naturalmente) merecedoras de recepcão com tapete vermelho, talvez por saberem não terem dignidade para tanto. Representa também seu ideal de democracia sem povo, seja pela ideia de "democratura" positivista - levantado por Alexandre Andrada, no The Intercept Brasil [bit.ly/2VpSSz4] -, seja pelo desejo de nulidade da política, de modo a garantir o bom andamento dos negócios - como denunciava Debord, em 1967. Ordem e progresso: o povo quietinho em seu lugar, feito gado em sua baia; e as elites gerindo o Estado no estilo mais tosco de "balcão de negócios da burguesia", sem disfarces e com a delicadeza de uma manada de búfalos selvagens. Democracia de fachada, sem povo, para os ricos: é por o que os donos da Havan, Riachuelo, Habbibs, Drogaraia/Drogasil e que tais pagaram; é o ideal ascéptico de FHC e parte do tucanato, é o que a grande mídia defende - abertamente em seus editoriais, ou disfarçadamente em seus programas humorísticos -, é a proposta vencedora em uma imagem: o povo sob ameaça de tiro, mantido longe do poder.
Para consumo da massa bestializada, entretanto, o presidente populista - pretensamente popular - despido do povo é o discurso do outro como perigoso, da multidão como local que não cabe aos cidadãos de bem - só em situações especiais, "protegidos" pelos militares -, a vida pública como local a ser esvaziado em favor de quem entende, dos técnicos, dos tecnocratas despidos de ideologia (e de interesses pelo bem comum, mas isso não é dito), para quem produz poder trabalhar sem outras preocupações que seu desempenho, seus rendimentos e suas contas a pagar. É também a imagem de um certo salvador da pátria, que agirá, se preciso, sozinho em favor do povo, que pode seguir sua vida de gado tranquilamente - no máximo denunciando um professor aqui, um colega acola, de modo a permitir a plena harmonia social, livre de toda "ideologia", de todo pensamento que não seja a submissão cega ao poder.

01 de janeiro de 2019


sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

O subtexto das medidas de segurança da posse de Bolsonaro

As notícias sobre as medidas para a segurança do futuro presidente da república, da compra de carros blindados ao "esquema inédito de segurança" na posse, incluído aí sua hesitação sobre desfilar em carro aberto, pode parecer, a leitores apressados ou ingênuos, fruto de sua falta de conexão com a realidade, visão excessiva acerca de si próprio (vulgo ego com elefantíase), gastos perdulários com o dinheiro público. Ocorre que todo esse esquema de segurança e seu anúncio pela grande mídia - sem um pingo de crítica, que seja saber quanto tudo isso vai a custar a mais aos brasileiros, visto que se trata de um governo que promete cortar tudo de todos (menos dos que tem dinheiro, dos membros do judiciário e dos militares e suas viúvas e órfãs eternas), fazer o "desmanche o Estado" (a imagem que me veio com a fala do vice presidente eleito é a de desmanche de carros roubados) - nada tem de inocente: trata-se da construção da narrativa de criminalização da esquerda e de opositores ao novo governo - na verdade, um elemento a mais nessa construção.
É o óbvio ululante, mas relembro que foi o próprio Bolsonaro - e ninguém mais - a proferir discursos de ódio e obscenidades como matar 30 mil, ser favorável à tortura, metralhar a petralhada. Vale recordar também que não foi o partido de Bolsonaro que teve dois de seus mais importantes quadros assassinados um ano antes da eleição. Também não foi do partido de Bolsonaro nenhuma vereadora ascendente a assassinada (o máximo que temos é integrantes da futura tropa de choque bolsonarista ameaçando servidora, se ela denunciasse a tentativa de estupro sofrida). Não foi Bolsonaro quem sofreu um ataque a tiros - ataque orquestrado por homens de bem e de bens - durante a pré-campanha de 2018. O que Bolsonaro sofreu foi uma suspeitíssima - mas muito bem vinda, no momento ideal para o então candidato - facada, que não o pôs em risco, mas permitiu que ele fugisse dos debates sem ficar com a devida fama de covardão. Porém, assim como a facada e seu autor não mereceram maiores investigações - a prisão do suspeito e a construção da narrativa como ex-filiado ao Psol bastaram -, os tiros na caravana de Lula, os motivos dos assassinatos de Mariele, Toninho ou Celso Daniel, tampouco merecem investigação - sequer merecem ser lembrados, pois a esquerda não pode ser vítima, apenas carrasca suspeita-portanto-culpada. Tiros na caravana? Foi alguém do próprio Lula quem atirou, para se fazer de vítima. Celso Daniel foi morto por ser corrupto, Mariele por ser casada com traficante. É importante à mídia e ao status quo construir uma narrativa perfeitamente coesa para dar a suas fantasias o máximo de aparência de realidade.
O esquema de segurança de Bolsonaro, para a posse e depois é um elemento a mais nessa grande fake news, nesse gigante fake world, construído por Globo, Folha, Record e quetais: no subtexto está sendo dito - dito, não, gritado - que o futuro presidente está em risco de um ataque iminente de algum esquerdista. Não apenas porque ele sofreu um (fake) atentado à faca, mas principalmente porque a esquerda é violenta naturalmente: vide a Rússia soviétiva, Cuba, Venezuela, Cesare Batisti, ou os atos menores, como obrigar crianças a aprender história; e esqueça a propria história, as milícias fascistas, as empresas de segurança especializadas em dissolução de greves na virada do século XIX para o XX nos EUA, os grupos de skinheads que atacam gays, pobres e esquerdistas; as empresas de segurança privada e os milicianos do Rio de Janeiro, a maioria dos atentados terroristas nos EUA, ou mesmo na Argentina: notícias desses grupos devem ser noticiados uma vez, se muito, para passar a impressão de imparcialidade da mídia, e esquecidos a seguir, soterrados pela repetição da violência e dos crimes da esquerda (que não é santa, antes que alguém queira me refutar com base nesse raciocínio precário, 0-1).
O esquema de segurança para a posse não serve para proteger ninguém, pelo contrário, serve para justificar num futuro breve um novo grau de arbitrariedades e violências (estatais, paraestatais-midiáticas e paraestatais-milicianas) contra as populações de sempre (pretos pobres periféricos) e todos aqueles que ousarem questionar o novo governo, como "nos bons tempos" da ditadura, digo, do movimento de 64, em que só apanhavam, eram torturados e assassinados "quem pedia". Fora isso, a harmonia social resplandecia, com cada um ocupando seu lugar sem discutir ou questionar.


28 de dezembro de 2018


segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Banca do Enem cava trincheiras na defesa da democracia e da educação

Os elaboradores do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) cavaram importante trincheira contra os retrocessos no país, em especial contra o Escola Sem Cérebro, conhecido popularmente como "Escola sem partido". Também é um tapa em quem acha que corrente de WhatsApp e meme no Facebook servem para se informar. Não apenas pelo conteúdo, mas pela forma, o Enem marca uma forte posição de resistência. 
Fiz o exame: foi uma prova pesada, cansativa, muito texto e grande exigência de interpretação - não se tratavam de pegadinhas, mas de pegar filigranas do texto. Não sei se em anos recentes era assim (o último Enem que fiz foi em 2011), mas cada questão se referia a um ou dois textos (no meu tempo, a ordem era inversa: duas ou três questões se referindo a um texto). Textos curtos mas densos, com questões pedindo interpretação fina do que estava exposto. Se a atual geração está acostumada a ler no tapa, passar o olho e achar que entendeu, o Enem foi um tapa na cara. Não eram questões difíceis, mas exigiam olhar atento e preparação de maratonista - ou os alunos reaprendem a ler com atenção ou falharão no Enem.
O conteúdo das questões também foi para não deixar dúvidas sobre se houve golpe ou movimento em 1964, se existe ou não gays no mundo, se feminismo é coisa de esquerdopata ou mobilização em favor de direitos sociais, que o racismo está presente na vida de milhões de pessoas e não é vitimismo (o poema "Quebranto", do poeta Cuti, foi uma porrada poética no meio da prova).
A redação me fez lembrar de Jânio de Freitas, e da Folha de São Paulo, numa época em que o jornal valia a pena, com a divulgação velada e antecipada dos vencedores dos leilões ferroviários no governo Sarney. Talvez a banca que elaborou a redação não imaginasse o vitorioso, porém já sabia dos métodos que seriam utilizados pelo candidato fascista.
Não sei como funcionam os contratos de quem faz o Enem, é certo que se a banca não puder ser substituída ou não forem usados meios pouco ortodoxos de pressão, o exame desponta como resistência ativa ao Escola sem partido, e põe as escolas que já aderem ao programa - por medo de represálias dos pais, má repercussão na mídia ou adesão ao fascismo, mesmo [https://bbc.in/2JEkQBo] -, em aporia: se aderirem ao revisionismo fascista, muitos de seus alunos fracassarão retumbantemente. O Liceu Jardim, de Santo André, por exemplo, que se orgulha de ser a 16ª escola no ranking nacional do Enem: se tivesse aderido no início do ano ao fascismo, teria despencado nesse ranking (furado, entretanto esse é outro assunto), com os pais revoltados por terem gasto dinheiro numa educação de segunda, que sequer prepara para o Enem. Para sua sorte, aderiu ao Escola sem partido e demitiu a professora de história que salvou seus alunos apenas neste fim de ano [http://bit.ly/2RCW6fL], na semana do Enem. É de se questionar como fará ano que vem, para não perder alunos nem a fama, talvez crie uma disciplina extra, "fake news para Enem", poderia ser EaD apresentada pelo próprio presidente da república bananeira.
É esse o xeque dado pelo Enem 2018: ou se modifica drasticamente o exame, e transforma numa prova de conhecimento de whatsapp e youtubers, ou as escolas (em especial as de classe média, média alta) se verão obrigadas a comprar a briga de professores e da parcela democrática da sociedade em defesa de uma educação plural e de qualidade.

05 de novembro de 2018


segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Eleições 2018: Balanço prévio de perdedores e vencedores.

Reitero o que disse ao fim do primeiro turno: esta eleição é uma grande perda para todo o Brasil - e seria mesmo com vitória de Haddad. Porém, vou dar uma analisada em mais detalhes diante do resultado das urnas (não fraudadas, apesar do processo eleitoral fraudulento). 
Há quem veja alarmismo naqueles que dizem que a eleição de Bolsonaro é o fim do nosso breve interregno democrático (de baixa intensidade, mas ainda assim, algum respiro democrático). As instituições estão funcionando, dizem, e sou obrigado a concordar com essa constatação e por isso digo com mais segurança ainda: a democracia caminha célere para a tumba. Porém, como padeço de otimismo inveterado, creio que não é uma marcha inexorável. Se as forças democráticas (progressistas em especial, mas não só) souberem se organizar e agir com inteligência, a dominação neofascista-neoliberal, em alta atualmente, pode não conseguir se firmar: a experiência histórica, aliada às novas tecnologias, os novos meios de comunicação, permitem novas formas de articulação e resistência, em que comunidades solidárias micro podem caminhar juntas com articulações macro - a onda espontânea de escuta e diálogo que tomou os últimos dez dias de campanha me parece ser um ponto de partida importantíssimo: deixar uma parte da população sob aviso de que há pessoas dispostas a ouvir e acolher, para quando a decepção com Bolsonaro começar (e ela começará em breve, a não ser que haja uma guinada fascista na economia também, por ora descartada). Agir sorrateiramente, menos passeatas e mais "passeios": a possibilidade de construção de uma narrativa - ou das bases para uma narrativa - pró democracia é grande.
O PSDB, como eu já anunciara em 2016, acabou enquanto opção democrática. O murismo de FHC, o vai e volta de Huck, e a vitória do fascista de cashmere em São Paulo devem levar os tucanos a hastearem sem peias a bandeira fascista e à debanda de figuras históricas, mesmo as mais à direita. Doria Jr. se apresenta como o fascismo de bom gosto (sic), para desfilar no exterior, e tem tudo para ser a oposição a Bolsonaro dentro do mesmo campo.
Ciro Gomes caiu na armadilha que engoliu vários expoentes nacionais: a política baseada no ressentimento. Cristóvão Buarque, Marina Silva, Marta ex-Suplicy são alguns exemplos de políticos que abdicaram da personalidade pública pelo próprio ego e desapareceram. Ciro talvez consiga contornar essa sina - afinal, é um coronel -, mas terá dificuldade em recuperar sua imagem nacionalmente: se se apresenta como alguém bem preparado, ganhou também a pecha de fugir no momento decisivo, e deixar o orgulho se sobrepor ao espírito público - seu passeio pela Europa não vai poder ser vendido como estratégico (juro que de início tentei acreditar que articulasse algum apoio internacional, para um retorno triunfal).
Uma pena, Ciro poderia vocalizar parte importante do antifascismo, um público reformista, que sabe que as instituições faliram, mas creem que um "coronel esclarecido" saberia encaminhar uma reforma sem maiores traumas. Por ora temos Boulos, com ativismo mais de base; Haddad, com penetração em meios mais ilustrados e "moderados", "habermasianos", com possibilidade de se firmar como expoente do "pós-petismo", apesar de ser do PT; e Lula e o PT, em um universo mais popular e menos organizado - e um dos papeis do lulo-petismo atual seria marcar uma clivagem social "identitária", de modo a forçar novos termos do debate (para além de nordestinos, ou assistidos, e também mais complexa que questões de gênero). Há espaço, portanto, para um antifascismo mais estridente que Haddad mas menos chão de fábrica que Boulos (Requião, se tivesse sido reeleito, talvez; não sei qual seu apelo longe da tribuna). Nesta luta contra o fascismo, parte da esquerda vai ter que aprender que vencer vale mais que "vitória moral" (Freixo ganhar a prefeitura do Rio com apoio da Rede Globo, em 2016, teria sido muito melhor que permanecer imaculado mas deixar a cidade para o bispo da Universal). Identificar coronéis dispostos a resistir junto, e abraçá-los criticamente, mas abraçá-los (não que sejam confiáveis, mas pelas últimas movimentações, Renan Calheiros e Gilmar Mendes seriam duas dessas figuras importantes neste início de luta contra o fascismo).
Quem perde também é a igreja católica e a Rede Globo. Provavelmente a igreja será posta em aporia: ou extirpa seus ramos pastorais sociais, ou sofrerá perseguições. Se aceitar a chantagem, deixa a avenida livre para evangélicos assumirem a hegemonia religiosa; se resiste, tende a definhar mais lentamente (Juliana Cunha alertou que a educação básica à distância é um ótimo negócio não apenas para conglomerados educacionais, como para as igrejas evangélicas, que poderão abrir seus salões para os pais deixarem as crianças, doutrinando-as enquanto têm "aula"); talvez sua maior chance seja dobrar a aposta e incentivar o trabalho de base, mas a cúpula brasileira é conservadora demais, e prefere seguir o bispo Macedo ao Papa Francisco, como deixou claro o bispo do Rio de Janeiro, dom Orani Tempesta (que alega não ter declarado apoio ao candidato, mas os gestos de seus funcionários mostra bem o espírito que animou a visita de Bolsonaro), além de tantos padres de paróquias.
Já os irmãos Marinho tem tudo para seguir o destino de seu precursor, Assis Chateubriand, defenestrado pela ditadura cujo golpe apoiou. Não basta a perda de importância da mídia tradicional, o que já diminui seu poder, a Globo deixará de ser a rede oficial do poder - enquanto Lula deu sua primeira entrevista aos Marinho, Bolsonaro deu a Macedo. Tentarão ser mais realistas que o rei, na expectativa de não serem liquidados, porém é óbvio que a Record será a nova porta voz oficial, com consequente aumento nas receitas. É esperar para ver os próximos capítulos (inclusive o quanto suas novelas ganharão um ar mais recatado, do lar e evangelizador). Para agora, não consigo vislumbrar saídas à emissora, muito menos de ela caminhar para a oposição, uma vez que Guedes encampa todo seu ideário.
Quem perde também com a eleição são as forças armadas. Ainda que reassumam a ribalta por meio democrático, quem estará à frente da nação é um capitão obscuro, sem controle da tropa. Nomear uma série de ministros generais é a tentativa de ter alguma autoridade no exército. E mesmo que consiga essa autoridade, seu estímulo às milícias sem qualquer controle levarão ao caos, e não à ordem. Se, como disse Marcos Nobre, Bolsonaro cresceu e só sobrevive no caos social, isso acabará por respingar nas forças armadas, que serão vistas como incapazes de restabelecer a ordem - se restabelecerem, Bolsonaro será incapaz de se manter no poder. Ademais, os tempos são outros: assim como a resistência se faz mais firme e fluida que em 64, as novas mídias não permitirão que os casos de corrupção sejam escondidos. Haverá sempre o argumento de fake news, reforçado pela mídia tradicional - e é aqui que o trabalho de base, de corpo a corpo fará a diferença, e uma hora esse discurso não dará mais conta de desmentir a realidade mais óbvia no dia a dia de uma pessoa comum.
Quem realmente ganha? Talvez o 1%, ou uma parte dele, parte do exército, alguns grupos internacionais. Mineradoras, agronegócio, petrolíferas internacionais, bancos, evangélicos, alguns grupos do crime organizado, redes privadas de ensino, mercado de bens e serviços (como saúde, educação e segurança) de luxo. O Brasil deve perder ainda mais relevância internacional, e se os artistas internacionais (como Madonna, Bono, Cher, Waters e outros) começarem a vincular marcas ao regime de Bolsonaro, é bem provável que empresas abarquem a campanha antifascista, ao menos abdiquem de lucros em nome da imagem, já que o mercado brasileiro vai minguar com as políticas econômicas prometidas (vincular a Nike à CBF e o uniforme da seleção aos fascistas poderia ser um primeiro teste).
Disse que sou otimista? Sim, sem deixar de ser realista. É a oportunidade, aproveitando a onda "micro-ativista" do fim das eleições, de começar desde já a construir contranarrativas, a desmantelar a ditadura que se aproxima e, espero, não se firme.

29 de outubro de 2018.