A escolha pode ter sido fortuita, não sei; se foi o caso, houve algo no inconsciente que certamente norteou a montagem da ópera La Clemenza di Tito, de Mozart, no Theatro São Pedro.
Último remanescente dos teatros com nome de santo da capital (São Paulo, São José), ainda não foi consumido rapidamente pelo fogo, mas seguidamente está sob fogo estatal, que o queima lentamente (vide sua orquestra, pequena e jovem), sob permanente risco de corte drástico de verbas - quem sabe para transformá-lo em outra loja de cama-mesa-banho (como antigo espaço artístico no Brás), ou numa igreja evangélica, mesmo? -, fogo intensificado sob os atuais governos neofascistas e anti-intelectuais, anticultura (que não seja propaganda louvatória do poder e do líder).
La Clemenza di Tito a princípio é apenas uma ópera a falar de tempos remotos, composta para a coroação do rei Leopoldo II, da Boêmia. A montagem feita pelo Theatro São Pedro (direção musical do maestro Felix Krieger, e concepção, encenação e iluminação de Caetano Vilela), ao aproximar a Roma antiga do século XXI, busca certa sintonia dos elementos, mas também explora dissonâncias, coisas fora do lugar (ou do tempo), abrindo - principalmente no primeiro ato - uma possibilidade leitura política acerca do contexto brasileiro atual.
O cenário feito com andaimes sinaliza um império ainda em construção; há elementos de alguma imponência, brilhos e dourados, porém há algo roto, marcado do início até o fim no grande bloco de granito rachado que fica no centro do palco - sem que seja necessariamente decadência, ruína.
O grande ruído é o figurino. Na verdade foi tentando entender o porquê daquelas escolhas aparentemente infelizes que comecei a fazer a leitura política da ópera. Se o coro estava à romana, os soldados marcavam diversidade étnica, e também uma certa simplicidade no figurino, deixando de lado o realismo. Nos personagens principais, contudo, o ruído é evidente, incomoda, faz pensar. Vitellia com sua roupa vermelha e sua vasta cabeleira branca parece rainha de cabaré. Sesto e Anio, gordinhos, barbudos, cabeludos, tererê no cabelo, algo meio hipponga, meio saído de Piratas do Caribe, meio saído da casa da mãe não faz muito. Tito com sua roupa cheia de dourado fajuto - se tem pose imperial, a roupa o desmerece.
Tito, quatro letras, como Lula. Um líder carismático, carinhoso, que evita grandes conflitos, preferindo sempre contemporizar e perdoar, deixar quieto (seja aceitando a recusa de Servillia ser esposa de Tito, seja como quando Veja publicou a fake news (então só notícia falsa) de que Lula teria contas na Suíça). Um líder talvez demais deslumbrando com um poder que mais reluzia do que deveras era - e a dificuldade em aprovar grandes mudanças estruturais, talvez mais que falta de vontade de Lula fosse falta de possibilidade, mesmo (como ficou evidente na facilidade com que se desfez, por exemplo, a vinculação de parte das receitas do pré-sal à educação). Pelo visto, nós que nos deslumbramos com o poder, Lula parecia ter mais noção de que o que reluzia ali era ouro de tolo.
Vitellia pode ser interpretada como a burguesia, sempre ávida pelo poder, ainda que não esteja apta para assumi-lo diretamente (por saber da sua incompetência; na ópera, por ser mulher). No fim, acaba por decidir por uma alternativa mais drástica e mais breve para tentar alcançar seu objetivo e acaba dando um tiro no próprio pé: Tito, ao aceitar a recusa de Servillia em casar com ele, escolhe Vitellia como segunda opção; mas nisso ela já havia ordenado Sesto matar Tito, o que significava que acabaria sem o trono.
Sesto é o estereótipo do povo que bate panela da laje de sua casa de bairro classe média. Maltrapilho que tenta imitar os brilhos do imperador, aceita matar Tito, a quem idolatra, para atender ao desejo de seu amor, Vitellia. Interpretado pela mezzo-soprano Luisa Francesconi, a voz muitas vezes mais fina que das mulheres dá um ar de impúbere ao rapaz - apesar das barbas -, e reforça a carência de autonomia. Ao fim do primeiro ato, se tudo indica que Vitellia perderá a chance de ser imperatriz, Sesto deverá ser condenado à morte.
O segundo ato encaminha a trama para um final feliz. Aqui a trama perde seus maiores contatos com o contexto brasileiro - ficando no plano do que poderia ser. É quando o cenário ganha mais ares de século XXI, com um tapume de metal pixado ao fundo - reforçando certo descompasso entre os elementos da montagem. Se na ópera a trama de Vitellia e Sesto acaba mal, mas Tito evita que qualquer um tenha final trágico, a vida real nos presenteia com um drama menos edulcorados: às mazelas do presente que boa parte da população suporta sequer há a justificativa de ser em nome de uma melhora no futuro - são apenas mazelas, como um ataque de gafanhotos, ainda que produzidas pelos donos do poder. A burguesia que fez festa com sua sagacidade desde 2014, se não está tão mal quanto povo, não tem o que comemorar. E Lula/Tito não aparenta ser mais o mesmo paz e amor de pouco tempo atrás - porém tampouco tem posição de poder na estrutura burocrática do estado para começar alguma mudança significativa desde de dentro. Sobra ao povo, Annios e Sestos, se mobilizar, buscar alguma brecha que permite respirar no presente e voltar a sonhar com algum futuro. Vivemos mais que uma crise econômica, e a ópera regida desde Brasília (ou seria Washington?), se se seguir nesse andamento, não terá final feliz para quem está no palco - e na plateia.
27 de abril de 2019
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