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sábado, 31 de agosto de 2019

Talvez a vitória de Bolsonaro em 2018 tenha sido a melhor opção

Apesar de todas as críticas à psicologia do ego de Erich Fromm, admiro sua apresentação da ideia de liberdade, em O coração do homem: foi um marco na forma como passei a refletir sobre problemas que surgem. Grosso modo, diz ele que o último passo na tomada de um ato pouco tem de livre: há uma série de engajamentos prévios que tornam a desistência do ato, o passo derradeiro, de um custo tão elevado a ponto de ser difícil ao sujeito mudar de rota, uma vez que seria negar tudo o que foi feito até então e que levou até àquele ponto - contudo, o mais comum é nos atermos a esse último instante e acreditar que ali se tomou toda a decisão, que ali ainda havia plena liberdade de fazer ou não.
Fromm me veio à mente com o tal "dia do fogo", organizado e posto em prática por criminosos disfarçados de fazendeiros e ruralistas, apoiadores de Bolsonaro na Amazônia, com as reações grotescas do mandatário da nação, e com os alertas de "eu avisei" dos que mantiveram um mínimo de bom senso ano passado - o que exclui pretensos isentões do segundo turno.
O que ficou evidente para mim neste mês de agosto foi que, diante do que tínhamos em setembro de 2018, a vitória de Bolsonaro pode ter sido a melhor alternativa - claro, isso vai depender de como as esquerdas e as forças progressistas estão se organizando e vão se organizar. O ponto principal é que o clima de ódio provocado pelo consórcio mídia-PSDB-judiciário-ministério público e o estado de anomia no qual o país foi atirado pelo farsesco impeachment de Dilma foram instrumentalizados pelo ex-capitão e seus sicários, de modo que ganharam demasiado poder. Poder para além das urnas - e é o poder do estado que tem nas mãos que pode fazer com que desidratem.
Uma vitória de Haddad no segundo turno, além da hostilidade do congresso, teria que lidar ainda com oposição cerrada da mídia e constantes testes de autoridade por vários setores da sociedade, de organizadores do dia do fogo e milicianos a juízes e procuradores. Isso potencializado por crise econômica interna, boicote do empresariado, lawfare e crise comercial internacional. Dificilmente um candidato progressista - estou a incluir Ciro aqui, mesmo sendo de centro-direita - conseguiria encaminhar uma solução a todas essas crises: mais provável que o governo fosse uma tentativa de diminuir o caos estimulado por atores sociais importantes, com a mídia, o STF, Bolsonaro, sua família e suas milícias aumentando cada vez mais o tom do discurso e dos atos.
O "dia do fogo", arrisco dizer, aconteceria sim ou sim, fosse Bolsonaro ou Haddad o presidente. Se com o carioca aconteceu com beneplácito do líder, com Haddad as chances eram de que acontecesse para afrontar o presidente - eventuais prisões que impedissem o que foi feito na Amazônia seriam automaticamente vendidos pela mídia como "venezuelização" e arroubos autoritários, custariam muito de um sofrido apoio interno que ele pudesse ter.
A #VazaJato não teria a mesma repercussão e seria mais facilmente apresentada como "tentativa dos políticos corruptos do PT de impedir os arautos dos cidadãos de bens combaterem a corrupção dos políticos (do PT)". Qualquer sinalização de desmantelar a quadrilha que atua desde a República de Curitiba iria na mesma linha - e às favas o direito, a constituição, a humanidade. Seguiria o lawfare contra qualquer pessoa que pensasse diferente de Moro, Dallagnol e seus serviçais.
Esse clima de caos e desgoverno - ou de difícil governo - permitiria ao fascismo tupiniquim crescer sem oposição - talvez alguma amarra nos governos estaduais, uma vez que poderiam ser cobrados, mas governo estadual dificilmente tem o mesmo poder de ser teto de vidro que o federal. Bolsonaro pai poderia cometer seus festival de disparates sem nenhuma cobrança pela liturgia do cargo, já que não teria cargo oficial nenhum, nem nenhum confronto com a realidade, já que não possuiria poder efetivo nenhum. Seu poder seria paralelo, apoiado e estimulado por parte da mídia e do judiciário (sabemos agora, pela Lava Jato como um todo), no intuito de enfraquecer o PT e ainda crente de que conseguiriam domá-lo depois - uma espécie de Guaidó com mais respaldo. Isso permitiria um maior enraizamento das bravatas e do ideário fascista - com a complacência dos donos do poder -, e tenderia a dar uma enorme força e resiliência a esse espectro político em 2022.
Claro, o fato de Bolsonaro queimar parte do capital político da extrema-direita não anula todo o espectro. A vitória precoce do atual presidente incorreu no mesmo problema da extrema-direita europeia, onde tem sido um retumbante fracasso quando assume o poder, ainda mais sem o devido respaldo popular. É prepotência e incompetência. O Brexit talvez seja o melhor exemplo: é o putsch da cervejaria de Munique que deu certo e os bêubos tiveram que assumir sem ter a mínima ideia do que fazer ou de como o estado se organiza e funciona, daí tentarem recrudescer o golpe. O grande ponto: não tiveram tempo de se enraizar para além dos predispostos a abraçar o "movimento".
Não estou desculpando quem votou no capitão, ano passado, aceitando que era a melhor opção - não era. Estou aqui propondo que façamos nossas análises a partir de um pouco mais recuado, entender que o passo no abismo não foi dado na urna, em 2018, mas vem de antes, de uma série de fatores que foram negligenciados e/ou minimizados, que levaram ao ponto onde estamos. Seguir com essa de "eu avisei" é insistir no erro e achar que eleição é 45 dias de campanha mais a urna, e deixar a avenida aberta para o fascismo repaginado de um Doria Jr ou Luciano Huck tomar o imaginário popular e criar raízes na sociedade - além do que são mais vivos e tem total simpatia da mídia, poderiam atuar (como Doria Jr deveras atua) como tratores nas instituições democráticas sem serem confrontados ou incomodados.
Diálogo, mobilização e politização - se realmente queremos reverter o quadro político atual. Ou então vamos ficar esperando Godot, nos queixando aos astros e esterilmente gritando nas redes sociais "eu  avisei".

31 de agosto de 2019

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

O Sesc e a oportunidade de estimular uma cultura democrática neste tempo que flerta com o fascismo

Por conta do artigo “Precisamos falar (criticamente) sobre o Sesc” [bit.ly/cG171010], que escrevi em 2017 e foi republicado na página do Luis Nassif, no Jornal GGN, recebi o convite para compôr uma mesa sobre “qual o papel do Sesc na promoção de cultura”, no Fórum Políticas Culturais, promovido pelo Centro Acadêmico Lupe Cotrim (CALC), da Escola de Comunicação e Artes da USP, dia 21 de agosto. Na mesa estaria também João Paulo Guadanucci, gerente de estudos e desenvolvimento do Sesc.
Surpreso pelo convite, uma vez que não sou estudioso ou especialista na área, pensara, de início, em fazer uma fala colada no que escrevera de 2017, salientando que muito daquilo não valia MAIS para 2019, visto que nele eu criticava o Sesc São Paulo dentro do que chamei de “sistema de financiamento, produção e circulação cultural do Brasil”, e não há mais nada parecido no Brasil de Bolsonaro, Moro, Doria Jr, Malafaia e tantos outros inimigos de toda arte que não seja propaganda do poder. Seria uma fala para pensarmos quando a onda fascista passasse, se ainda sobrasse algo. Foi o questionamento de um amigo sobre o porquê de eu não abordar a questão da segregação e a da cultura democrática que me fez repensar minha fala: ao invés de falar do passado e em um futuro do pretérito, era mais conveniente falar de algo que ainda cabe no presente e permite devires: se chuvas são fenômenos naturais que fogem ao nosso controle, as partículas das queimadas da Amazônia que baixaram sobre São Paulo esta semana é antes fruto da ação humana e por isso passível de ser alterada.
Ao cabo, diferentemente do que imaginei, João Paulo não foi à mesa para tecer exclusivamente loas ao Sesc – assim como eu não fui para falar mal, ainda que estivesse lá para reforçar alguns aspectos negativos que geralmente passam batidos. O texto a seguir é baseado em minha fala.
Como o próprio João Paulo havia dito, o termo “cultura” é bastante amplo e aberto a diversas interpretações. Foi usando dessa abertura que desisti de falar especificamente do que gira em torno de bens culturais para falar de “cultura democrática”, visto que democracia não é só um sistema de votação, mas é um sistema valorativo de ações, uma cultura, que implica em certa forma de ver e estar no mundo, de se relacionar com o outro e com seu entorno, de se engajar no simbólico e no real.
Quando estávamos sob governos democráticos, o Sesc florescia graças à disfunção do sistema de produção cultural brasileiro. Florescia e o retroalimentava. Nesse sistema estavam Sesc, leis de fomento, editais, Rouanet, equipamentos públicos, tentativas autônomas de espaços culturais, grandes grupos, etc. O Sesc, com muito dinheiro e bom trabalho, conseguiu o que eu chamei de "padrão Sesc de qualidade": bons espetáculos a preços módicos, que forma um público cativo. "Se tá no Sesc é porque é bom", foi uma expressão que ouvi muitas vezes. Tentativas independentes, como pequenos teatros, ou dependiam de alguma forma de estímulo público, ou corriam o sério risco de serem experiências efêmeras, pois não tinham como competir com uma instituição que não depende de bilheteria [João Paulo comentou do artigo de André Barcinsky que trata especificamente desse ponto: www.j.mp/30Bc1QD].
Desde 2016, contudo, a cultura tem sido atacada impiedosamente pelo avanço fascista e fundamentalista religioso (cujas portas foram escancaradas pelo PSDB de José Serra). Quando falo de avanço fascista, me refiro não apenas a Bolsonaro, mas também a Zema, Witzel, Doria Júnior e outros - não esquecemos o horror que foi Doria-Sturm na prefeitura de São Paulo, um verdadeiro Bolsonaro com complacência da mídia; assim como não esqueçamos o que foi o Sérgio Sá Leitão, atual secretário de Dória, no governo Temer. Esses ataques dos fascistas à cultura tem buscado ou a destruição pura e simples de políticas públicas para a cultura, ou o aparelhamento de equipamentos públicos, editais, fomentos (aquilo que acusavam os petistas ou esquerdistas de fazer, sem que conseguissem comprovar, até porque nunca houve de fato). A própria iniciativa privada passou a ficar temerosa de patrocinar espetáculos, com medo do patrulhamento ideológico da extrema direita associada a religiosos, como o caso do Queermuseu, por exemplo. Dessa catástrofe uma das poucas coisas que tem sobrevivido sem maiores traumas é o Sesc. Que agora também está sob ataque do ultraliberalismo de Guedes. Se isso se efetivar, destruído todo o sistema de cultura, o que sobraria? Produção cultural evangélica (pois há dinheiro de sobra e sem qualquer controle) e musicais enlatados para entretenimento rápido e que não incomodam ninguém.
O Sesc, em alguma medida, tem seu pingo de responsabilidade na situação em que nos encontramos - como diversos outros atores sociais, inclusive os movimentos sociais, inclusivo aquele do qual eu faço parte. Um dos pontos que os usuários dos equipamentos culturais do Sesc mais gostam de se enganar é que ele é democrático e popular. Não é. Ingresso caro é elitista, mas ingresso barato não é necessariamente popular: há uma série de fatores que influencia que certos grupos sociais se sintam bem vindos ou não num lugar - por exemplo, seguranças engravatados olhando de alto a baixo quem entra. Já presenciei usuário do Sesc ser barrado na entrada, foi na Vila Mariana, porque não se encaixava no seu tipo padrão, e precisou apresentar sua carteira de comerciário para poder entrar. Isso é um muro. Um muro invisível para que não é barrado, um muro não-dito, mas um muro maldito para quem é "público-alvo". Não é exclusividade do Sesc, é toda uma cultura antidemocrática, antipopular que vigora no país – o Sesc talvez seja até um dos locais mais amenos nisso, perto de baladas, shopping centers ou mesmo parques públicos.
O Sesc 24 de maio agora diminuiu um pouco, mas quando a unidade foi inaugurada tinha muitos seguranças no térreo, num claro desconvite para que a população que ocupa aquela região não entrasse - o próprio Paulo Mendes da Rocha, numa entrevista sobre o prédio, deixou escapar que o público a ser atraído para ali não eram comerciários da região, mas detentores de capital cultural: universitários, classe média alta, brancos ou "embranquecidos". Nas últimas vezes que passei em frente, inclusive, notei que cercaram a marquise onde as pessoas se sentavam para passar o tempo – melhor grades a povo. Não sei se é temporário, tomara que sim.
A programação também acaba, muitas vezes, por reforçar esse caráter "elitista a preços populares" - ao menos até início de 2018. A unidade Pinheiros, por exemplo. Está numa região onde confluem engravatados da Faria Lima, universitários descolados, "meio intelectual, meio de esquerda", como dizia Antônio Prata (que escrevia para a revista do Sesc), e pessoas de classes mais baixas - tanto que o Largo da Batata, antes da gentrificação dos últimos anos, era um dos principais pontos do forró de São Paulo. Pergunto: qual é a proporção de shows de forró para shows de bandinhas de rock alternativo no Sesc Pinheiros? Ah, mas no Sesc Itaquera, no Sesc Interlagos... Sim, nas unidades da periferia, há uma arte condizente com o que o preconceito diz que a periferia gosta. Um reforço à lógica segregacionista do espaço - que esteve bem presente no governo Haddad-Bonduki, por sinal. Resultado: eu vejo pouca diversidade social. Se você for na Oswald de Andrade (sob ameaça de Doria Jr), na Casa do Povo, no CCSP (que sem explicação barrou a realização da CryptoRave quando Doria Jr. era prefeito), você vai ver um público bem diferente, mais heterogêneo, daquele que se senta nas poltronas do Sesc.
Aqui eu entro em outro ponto da defasagem democrática do Sesc: não apenas no público que atrai para suas unidades centrais, mas a forma como gere suas unidades. Nunca li em uma revista de programação, nunca recebi um e-mail, nunca soube de um conselho composto por moradores e trabalhadores da região, ou de quem for, que não seja programador do Sesc, ser chamado para decidir os rumos das unidades. Não digo as atrações específicas, mas as diretrizes do semestre ou do ano – que seja algo consultivo. Conforme João Paulo, há um conselho geral, com participação (minoritária) dos trabalhadores. De qualquer modo, as unidades funcionam funcionam no esquema empresarial, sem chamar a uma participação efetiva da sociedade – por mais que os técnicos de programação encontrem brechas para trabalhar democraticamente com agentes culturais.
Eu vejo esse déficit de participação na forma como o Sesc tem sido defendido na minha bolha de usuários do Sesc: avatares na foto de perfil do Facebook. Comparo com o que ocorreu na Vila Itororó, e seu Canteiro Aberto: uma participação efetiva da comunidade na decisão dos usos e rumos do espaço cultural. Tanto que quando o acordo com o Instituto Pedra foi encerrado, em meados de 2018, pela gestão Doria Júnior, muitos temeram pelo fim da experiência. Porém, o resultado foi um aprofundamento da proposta por parte da população, eles dobraram a aposta e houve uma maior gama de atividades e maior difusão. É uma experiência fantástica.
Se abrir a experimentos, experimentações, se abrir à construção democrática, pode pôr em risco o "selo Sesc de qualidade", que ele conseguiu imprimir a tudo o que aparece no seu guia de programação. É uma perda, sem dúvida. Contudo, diante do contexto atual, dos ataques que a cultura tem sofrido, talvez caiba ao Sesc repensar urgentemente sua inserção e sua forma de relação com a sociedade, não apenas para ser numa futura sociedade efetivamente democrática - de cultura democrática - um farol a guiar outras iniciativas, na área de cultura e fora dela, e sim para desde já contribuir para romper as trevas que nos tomam - junto com restos das queimadas amazônicas.

23 de agosto de 2019

PS: claro, resta saber o que resta do empresariado brasileiro ao talho de Simonsen e outros, ou se o que nos sobra é gente ao estilo "Véio sonegador da Havan".

quarta-feira, 17 de julho de 2019

A grande imprensa e sua condescendência com atos fascistas

Começo falando o óbvio: diante do fascismo, ou você o afronta abertamente, ou você está pactuando com ele, na medida que dá brecha para que seja naturalizado como uma posição aceitável - até mesmo razoável - dentro do espectro político e das diversas formas de sociabilidade que uma sociedade moderna comporta. Por ser uma posição extremista, exige uma contraparte extrema também. A mídia brasileira já tem um débito enorme com o país por seu apoio ou sua omissão diante da ascensão de Bolsonaro e Moro (para não falar no golpe de 2016). Era sabido quem eram, de onde vinham, havia razoáveis indícios de por quais caminhos obscuros trilhavam suas trajetórias. Se calaram foi por não acharem tão grave, por acharem que controlariam os fascistas depois de assumirem o poder - assim como a direita liberal europeia confiou nas suas instituições, no século XX. A história não se repete, mas isso não quer dizer que não vá por sendas semelhantes.
Feita a desgraça de esgarçamento do pacto social de 1988 e da fraude nas eleições de 2018 (depois de quatro tentativas frustradas de golpes brancos), parte da mídia pula fora do barco fascista e finge criticidade - e ignora de que lado estava até um mês atrás. Não que não seja válido esse movimento, porém não se deve aceitar como um dos nossos, dos anti-fascistas, dos progressistas, apenas como aliados de ocasião, cujo apoio é importante agora e cabe abandonar tão logo não sejam mais úteis - sim, estou pregando uma ética estritamente utilitária (como defendem os neoliberais, ou seja, eles próprios) nestes casos.
Folha de São Paulo talvez seja o veículo mais avançado na oposição light a Bolsonaro. Já se fez de virgem no bordel quando o mandatário da nação disse que cortaria sua verba publicitária (e alguns amigos, infelizmente, caíram, fazendo assinatura digital, ao invés de apoiarem o jornalismo independente e deveras crítico); trocou críticos mais agudos por outros suaves, que batem em Bolsonaro mas contemporizam com parte da elite que apoia o governo, e atualmente tem publicado trechos da #VazaJato, o que mira o coração do projeto neofascista de periferia que as elites nacional e internacional têm para estes Tristes Trópicos. 
Contudo, o caminho para a integração do fascismo como norte político razoável persiste. Como já disse em outro texto, o fascismo entra pelas frestas [http://bit.ly/cG170601], está oculto no que nos pareceria, à primeira vista, uma afronta a ele [http://bit.ly/cG170315]. A forma como o jornal mancheteou as recentes investidas fascistas contra a cultura, na Flipei, em Paraty (RJ), e na feira do livro de Jaraguá do Sul (SC), mostra como nem mesmo a Folha faz oposição séria ao fascismo - talvez por não considerá-lo tão perigoso quanto o petismo conciliador de soma positiva (para usar jargão econômico) de Lula.
Sobre o cancelamento de Miriam Leitão e Sérgio Abranches no evento catarinense, a Folha, dentre os grandes veículos de fake news autorizada, digo, grandes veículos de mídia corporativa, é quem mais se preocupou em dar nome aos bois, mas fez isso discretamente, longe da manchete ou do texto de destaque: “Após protestos, feira do livro em SC cancela presença de Miriam Leitão - Evento em Jaraguá do Sul recebeu mensagens contra a participação da jornalista e do sociólogo Sérgio Abranches”. Mensagens de quem? É preciso ler a notícia para saber. Os outros veículos foram ainda piores. O Zero Hora, de Porto Alegre, por exemplo, tem como manchete: “Após receberem ameaças, Miriam Leitão e Sérgio Abranches são cortados de evento literário“. Sabendo quem é Miriam Leitão, um leitor desavisado mas não de todo desinformado, pode muito bem achar que a pressão se deu por “esquerdistas” - afinal, a esquerda que é violenta, vide a facada em Bolsonaro,e Miriam é uma reconhecia antipetista. A Folha, no trecho que a salva, comenta: “Ela é vista como oposicionista ao governo Jair Bolsonaro (PSL), presidente que teve na cidade 83% dos votos válidos na última eleição”. As demais publicações não foram além de divulgar o tom da petição online que barrou a jornalista, sem especificar de onde vinham as ameaças: “Por seu viés ideológico e posicionamento, a população jaraguaense repudia sua presença, requerendo, assim, que a mesma não se faça presente em evento tão importante em nossa cidade”. Ou seja, uma petição que pode ser tanto dos extremistas fascistas quanto dos "extremistas" "esquerdistas" - a mesma estratégia errada para a eleição de 2018, de pintar o PT e a centro-esquerda como extremo.
O caso da tentativa de atentado a Glenn Greenwald, em Paraty, também teve uma cobertura vergonhosa. O jornal dos Frias fala em “protestos”, “atos” e fogos para atrapalhar. Nada de atentado, de fogos para impedir de falar e tentar machucar [http://bit.ly/32pRjV4]. Pior foi o UOL, portal do grupo, que tinha como manchete: “‘Gringo de m...' e 'Lula Livre': Glenn leva gritos à Flip e polariza Paraty” [http://bit.ly/2YWYQsr], pondo o jornalista estadunidense como culpado pelos transtornos causados pelos fascistas: não fosse Greenwald e Paraty não teria polarização, seria o perfeito éden da harmonia social - faltou também dizer que os agressores eram cidadãos de bem agindo dentro do seu direito de tentar calar, ferir e, por que não?, matar alguém.
Não adianta Folha publicar reportagem contra a Lava Jato e seus métodos mafiosos, eventualmente se posicionar contra o governo Bolsonaro, se anunciar favorável ao diálogo e à razão, se ela tolera ações fascistas e as trata como expressões de que a democracia no Brasil vigora, de que “as instituições estão funcionando normalmente”. Mas falta à Folha sinceridade, coragem e boa fé (e vergonha na cara, também). Se tivesse, ela teria que assumir que não apenas se "equivocou" ao apoiar Bolsonaro, como mentiu ao tratar a esquerda brasileira como disruptiva da democracia ou das instituições - o único risco que PT e congêneres trazem é de diminuição dos lucros dos seus patrocinadores. O que a Folha segue a ignorar é que ou ela combate abertamente o fascisco - e isso significa, sim, "Lula Livre" -, ou não adianta depois ficar #chateada porque o fascista no poder não quer lhe abrir os cofres, ou resolver fechá-la de vez. Com fascista não se dialoga, não se pactua, a não ser que você seja um também.

17 de julho de 2019


quinta-feira, 11 de julho de 2019

A esquerda precisa mudar o discurso

A esquerda precisa repensar sua estratégia de comunicação, convencimento e mobilização social - constatação óbvia, contudo, que precisa ser repetida. Precisamos deixar para segundo plano a análise de como chegamos no ponto onde estamos e traçar estratégias para sair da rota na qual seguimos, e isso inclui a forma de comunicar e angariar simpatizantes e militantes.
Apelar para cenários catastróficos inexoráveis é eficiente se se está em posição de vantagem. Não é o caso das forças progressistas no momento. E ao pintar o pior dos cenários, e de uma forma tão definitiva, em um contexto onde a derrota é muito provável, a tendência é desanimar cada vez mais a militância, afastar pessoas que poderiam se sensibilizar em um segundo momento e se unir à nossa luta. A estratégia catastrofista lembra muito as propagandas de prevenção da Aids, no início da década de 1990, em que pintavam a doença como um atestado de morte e acabavam por minar o psicológico de quem havia sido contaminado, piorando sua qualidade de vida e dificultando a convivência com a doença.
Tomo o exemplo da reforma da previdência aprovada neste infeliz dia 10, uma reforma de interesse exclusivo dos plutocratas nacionais e internacionais, uma volta a mais no  parafuso de hiper exploração do trabalhador, iniciado com a reforma trabalhista. Os 379 votos favoráveis demonstram a força de "persuasão" do governo e dos patrocinadores dos deputados (como a emblemática Tábata Amaral e sua “convicção individual” que nunca se opõe à de Huck e Lemann). Pintar o inferno na terra, sem chance de remissão, é afastar a população de mobilizações futuras, caso não alcance o intento (como foi o caso): mobilizar para quê, se está acabado? Acaba se tornando um discurso indutor do conformismo mais resignado - e não adianta depois, como Mino Carta, dizer que o “povo brasileiro” é que é passivo.
Passamos os anos do PT no governo federal dormindo em berço esplêndido, não será de uma hora para outra que conseguiremos novamente mobilizar setores amplos das camadas populares. Nada mais lógico que as forças reacionárias avancem vorazmente diante da resistência tíbia e diminuta: quanto mais ganharem agora, mesmo que percam parte no futuro, maiores as chances de, ainda assim, saírem com saldo positivo - para eles, em detrimento da população mais necessitada. 
Manter a resistência agora é imprescindível, se servir para barrar esse tipo de medida, ótimo, se não, que seja para marcar posição e começar a reconstruir um trabalho de base - que não cabe mais ser nos termos que foi no século XX. Uma coisa, porém, é preciso retomar fortemente da década de 1960 (ainda acho que o cerne de nossas questões e parte das nossas respostas estão neste período) e seu legado: o devir histórico. O futuro, ainda que possamos fazer previsões e ainda que as possibilidades de mudanças sejam maiores ou menores a depender do presente, não está fechado, de forma alguma - a não ser para quem concluiu sua passagem neste mundo (e não há como não lamentar a perda do Paulo Henrique Amorim neste momento da nossa história). Enquanto os seres humanos estão vivos, a história também pulsa, também está viva, e o futuro, em aberto. É possível reverter no médio prazo essa maré que nos afoga; as reformas aí enfiadas goelas abaixo via um simulacro de democracia não são leis divinas e podem ser alteradas - é possível que os próprios donos do poder queiram revê-las em parte, num futuro próximo, dado o grau de catástrofe que prenunciam, e o que a esquerda fará então? começará a discutir o que fazer? De qualquer modo, se não vier de cima, é possível que pressões de baixo obriguem a sociedade a refazer seu pacto social, como foi feito em 1988 - não estava vivo na época, mas não creio que uma Carta como a de 1988 parecesse muito factível dez anos antes.
Um primeiro passo que as esquerdas precisam, junto com essa afirmativa do devir, é construir uma narrativa de planos, propostas, e não apenas de denúncia. Acolher e ouvir as pessoas, e a partir de então construir coletivamente possibilidades, devires, novas utopias - é curioso que a própria ação pastoral social da igreja católica também tem tido dificuldade em fazer esse movimento (falo por experiência própria, pois participo de pastoral social, apesar de ateu). Talvez o que falte à esquerda seja se reconciliar com a religião - as boas religiões, os bons religiosos -, redescobrir essa “dimensão religiosa”, de arauto de alguma boa nova - precisaria, para isso, descer do seu pedestal hiper racionalizado (estéril). Num contexto de desalento e desespero, pouca gente vai se dispor a somar num movimento, num partido, numa organização que não sinalize algum caminho positivo, em que não se vislumbre algum tipo de melhora, que não traga uma mensagem esperança. A esquerda precisa trazer luz, porque as trevas já nos cobrem.

11 de junho de 2019

PS: penso depois: talvez essa seja uma das chaves do discurso do Lula​, que persiste nas suas entrevistas na masmorra curitibana: conciliar denúncia e esperança assertiva.

sábado, 6 de julho de 2019

João deixa a porta aberta

Sobre a partida de João Gilberto, dois comentários me chamaram a atenção, não exatamente sobre o mestre da bossa nova, mas sobre o que são estes tempos - e quem somos nós. 
Bob Fernandes comenta que sua partida neste 2019 inglório é um epitáfio para nosso país, nestes tempos em que vaia de bêbado - rico - vale; vaia transformada em panelas, patos, camisas da seleção brasileira, rezas de pastores endinheirados e editoriais sisudos de William Bonner ou entrevistas descontraídas com o Ratinho. A vaia que cala a arte, a política, o amor, o futuro.
Um dos meus bons amigo de São Paulo, restaurador de móveis, conta no seu Instagram [https://www.instagram.com/luizhansted/] quando, no início dos anos 1980, com seus seis, sete anos, ouviu pela primeira vez João Gilberto, e se encantou com "Falsa Baiana". Estava na casa da tia, que saíra para comprar cigarros e deixara o disco tocando: “Eu não mexia na vitrola de casa, imagine na da casa dos outros. Mas fui até ela e, com muito cuidado e medo de riscar o disco, voltei o braço para o início da faixa. Ouvi muitas vezes até minha tia voltar. É curioso e belo como as artes agem na nossa vida”. Eu vou além: é revelador como a arte é algo que exige e insufla coragem. 
Fazer, contemplar, desfrutar a arte é algo impossível de ser feito sem sair do lugar. Toda arte digna de ser chamada assim tem algo que incomoda, que perturba, que desloca - uma obra que deixa tudo como está é publicidade, usa elementos artísticos, não é arte. E o fascista, o reacionário, é um medroso, um pusilânime, alguém em pânico que se recusa a sair do lugar, a rever quaisquer das suas posições e atitudes. Para esconder essa covardia toda é que grita, se junta em grupos e milícias, ameaça, é por isso que é tão visceralmente contra a arte: porque a arte é para os corajosos. 
O artista, diante da grosseria, da barbárie, não se intimida, não pede desculpas, ele afronta, ele retruca: “vaia de bêbado não vale” - seco e direto, sem poesia, se o momento exige. A partida de João Gilberto talvez não seja um epitáfio, seja um aviso: não esperemos salvadores, sejamos artistas!

06 de julho de 2019

terça-feira, 5 de março de 2019

Cabeças que sangram (é carnaval)

Me aproximando de uma das entradas da estação Ana Rosa do Metrô, vejo um homem no chão e outro sobre ele. Há um grupo de pessoas que recém saiu do ônibus que dificulta minha visão. Imagino que o homem deitado no chão tentou algum furto e está imobilizado, enquanto esperam as forças da "ordem". Assim que o ônibus parte, reparo que há um carro da polícia e dois militares assistem impassíveis aos dois homens. O homem no chão tem a cabeça sangrando, uma poça de sangue ao seu redor, está bastante agitado e é amparado pelo que está sobre ele. Cabeças que sangram. A imagem me traz a lembrança de cena vista rapidamente do carro, em Florianópolis, em janeiro. Voltávamos do Pântano do Sul, próximo ao meio dia do dia mais quente dos últimos noventa e oito anos (segundo noticiou a imprensa). No acostamento da estrada, no meio do nada, um carro da polícia - dois militares conversam com um homem que sangra pela cabeça. Pode ser que o homem, diante daquele calor e daquele sol, tenha caído, batido a cabeça e os policiais estejam ali a auxiliá-lo. Igualmente possível é que o ferimento tenha sido causado pelos policiais. Cabeças que sangram. Uma polícia de confiança. Certa feita, passava em frente o Edifício Wilton Paes de Almeida (o que desabou em maio do ano passado), e um homem alcoolizado tinha um ferimento na cabeça que vertia sangue. Em desespero se esforçava para afugentar os conhecidos que tentavam facilitar a vida de um bombeiro que chegara para ajudar - "calma, não é a polícia", diziam, sem serem ouvidos. Cabeças que sangram. A polícia que mais mata e mais morre. E os policiais militares, presos em suas viseiras de guerra, não veem ligação alguma entre matar e morrer - e acreditam piamente que a paz dos cemitérios trará uma vida de paz, apenas não atentam que então estaremos todos mortos. Assim como creem que pôr medo é ter autoridade - tal qual fazem os "bandidos" que dizem combater. Com a sensível diferença que se os "bandidos" usam da força para se impor inicialmente, não raro ganham o respeito dos que vivem em seus territórios não por medo, mas por autoridade mesmo - a PM, em compensação, só consegue se impor pelo medo, pelo autoritário, nunca pela autoridade, nunca pelo respeito. Cabeças que sangram. Um Estado que exclui parte de sua população, tida como inimiga. As elites - políticas, judiciárias, midiáticas, econômicas - hipocritamente ignoram que uma polícia que mata é uma polícia que pede também para ser morta - PMs são bucha de canhão para proteger seu patrimônio e seus privilégios, e a violência dificilmente os atinge diretamente para terem com o que se preocupar. Quem não reagiu está vivo. Mirar na cabecinha... e fogo! Cabeças que sangram. Quase sempre as pretas pobres periféricas. Às vezes, mais recentemente, também sangram cabeças brancas - junto com braços que quebram (mas há punição para policiais que são pegos pela imprensa agindo tal qual bandidos: afastamento para funções administrativas; alguns preferem virar motoristas de deputados). É carnaval e é proibido Lula Livre. É proibido Lula. É proibido. Máscaras e Black Blocs no passado, fantasias e blocos carnavalescos no futuro? Mas seguimos livres para festejar a morte, com ou sem sangue, inclusive de crianças, seja de Arthur, seja de Marcos Vinícius - necrossociedade fascista (e ainda assim Marielle Franco vive e resiste!). Cabeças que sangram. Polícia que observa. Porque nossos militares são tão confiáveis no trato com a pessoa, no respeito à vida, que há lei que impede a PM de socorrer vítimas. Polícia sempre suspeita. Um dos militares se aproxima de uma mulher que acompanha a cena e pergunta se ela presenciou algo. São cinco da tarde, pela hora e local, descarto que o sangramento na cabeça do homem tenha sido causado pela polícia: pode ser que tenha sofrido algum ataque homofóbico ou mesmo de algum grupelho neofascista "empoderado" pelo "mito", atacando aleatoriamente quem encontrasse na rua - afinal, é neofascismo -, pode ter sido simplesmente que, muito bêbado, tenha caído e se machucado - afinal, é carnaval em tempos de neofascismo. O homem agita a cabeça como meu gato quando foi atropelado - a cena me perturba, eu sigo meu caminho. Nunca vi PM fantasiado de palhaço assassino portando machado para abordagem nos Jardins*. Cabeças que sangram. 


05 de março de 2019

PS: fiquei sabendo após ter publicado a crônica, mais um exemplo dramático de "cabeças que sangram" neste país do neofascismo bolsonarista-evangélico http://bit.ly/2EOWQKY

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

O discurso mais enfático da posse de Bolsonaro

Não acompanhei a posse do presidente da República, apenas li algumas repercussões na mídia e na minha bolha do Fakebook (e aqueles que usam em sua foto de perfil a frase de que Bolsonaro não é seu presidente, precisam aceitar que ele é, sim, nosso presidente, e atuar a partir desse dado de realidade).
O discurso (verbal) foi o esperado, sem nenhuma novidade. Se alguém imaginava qualquer movimento digno de estadista, de homem público, de mínimo de bom senso, que seja, por parte de Bolsonaro, precisa voltar dez casas e rever sua trajetória política, dos primórdios à transição, sem esquecer de rever suas estratégias de campanha. Se alguém ousou dizer que Bolsonaro, em seus discursos, "desce do palanque" e fala em "governar para todos" ou usou de ironia de maneira infeliz e mal utilizada, ou sofre de sérios problemas mentais, ou é um canalha a serviços dos patrões, temerosos de perder a teta estatal, como Josias de Souza.
O desejo de demonstração do triunfo da vontade fascista, com até meio milhão de pessoas, foi frustrada, e tiveram que se contentar com 115 mil espectadores - pouco mais da metade do número de pessoas que foram na posse de Lula, em 2003 (quer dizer, nas fotos que vi, esses 115 mil parecem iguais seus seguidores na internet, considerável parte não existe de verdade).
O que mais me chamou a atenção, contudo, foi o discurso não verbal em sua foto subindo a rampa do Planalto (ainda mais quando comparada à de Lula): tapete vermelho para o futuro presidente e ao fundo, uma linha de canhões, e o povo muito longe - a depender do enquadro, sequer aparece. Representa um bom retrato de nossas elites - que não tiveram pudores em abraçar (e financiar) o fascista - para consigo próprias: se julgam (naturalmente) merecedoras de recepcão com tapete vermelho, talvez por saberem não terem dignidade para tanto. Representa também seu ideal de democracia sem povo, seja pela ideia de "democratura" positivista - levantado por Alexandre Andrada, no The Intercept Brasil [bit.ly/2VpSSz4] -, seja pelo desejo de nulidade da política, de modo a garantir o bom andamento dos negócios - como denunciava Debord, em 1967. Ordem e progresso: o povo quietinho em seu lugar, feito gado em sua baia; e as elites gerindo o Estado no estilo mais tosco de "balcão de negócios da burguesia", sem disfarces e com a delicadeza de uma manada de búfalos selvagens. Democracia de fachada, sem povo, para os ricos: é por o que os donos da Havan, Riachuelo, Habbibs, Drogaraia/Drogasil e que tais pagaram; é o ideal ascéptico de FHC e parte do tucanato, é o que a grande mídia defende - abertamente em seus editoriais, ou disfarçadamente em seus programas humorísticos -, é a proposta vencedora em uma imagem: o povo sob ameaça de tiro, mantido longe do poder.
Para consumo da massa bestializada, entretanto, o presidente populista - pretensamente popular - despido do povo é o discurso do outro como perigoso, da multidão como local que não cabe aos cidadãos de bem - só em situações especiais, "protegidos" pelos militares -, a vida pública como local a ser esvaziado em favor de quem entende, dos técnicos, dos tecnocratas despidos de ideologia (e de interesses pelo bem comum, mas isso não é dito), para quem produz poder trabalhar sem outras preocupações que seu desempenho, seus rendimentos e suas contas a pagar. É também a imagem de um certo salvador da pátria, que agirá, se preciso, sozinho em favor do povo, que pode seguir sua vida de gado tranquilamente - no máximo denunciando um professor aqui, um colega acola, de modo a permitir a plena harmonia social, livre de toda "ideologia", de todo pensamento que não seja a submissão cega ao poder.

01 de janeiro de 2019


sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

O subtexto das medidas de segurança da posse de Bolsonaro

As notícias sobre as medidas para a segurança do futuro presidente da república, da compra de carros blindados ao "esquema inédito de segurança" na posse, incluído aí sua hesitação sobre desfilar em carro aberto, pode parecer, a leitores apressados ou ingênuos, fruto de sua falta de conexão com a realidade, visão excessiva acerca de si próprio (vulgo ego com elefantíase), gastos perdulários com o dinheiro público. Ocorre que todo esse esquema de segurança e seu anúncio pela grande mídia - sem um pingo de crítica, que seja saber quanto tudo isso vai a custar a mais aos brasileiros, visto que se trata de um governo que promete cortar tudo de todos (menos dos que tem dinheiro, dos membros do judiciário e dos militares e suas viúvas e órfãs eternas), fazer o "desmanche o Estado" (a imagem que me veio com a fala do vice presidente eleito é a de desmanche de carros roubados) - nada tem de inocente: trata-se da construção da narrativa de criminalização da esquerda e de opositores ao novo governo - na verdade, um elemento a mais nessa construção.
É o óbvio ululante, mas relembro que foi o próprio Bolsonaro - e ninguém mais - a proferir discursos de ódio e obscenidades como matar 30 mil, ser favorável à tortura, metralhar a petralhada. Vale recordar também que não foi o partido de Bolsonaro que teve dois de seus mais importantes quadros assassinados um ano antes da eleição. Também não foi do partido de Bolsonaro nenhuma vereadora ascendente a assassinada (o máximo que temos é integrantes da futura tropa de choque bolsonarista ameaçando servidora, se ela denunciasse a tentativa de estupro sofrida). Não foi Bolsonaro quem sofreu um ataque a tiros - ataque orquestrado por homens de bem e de bens - durante a pré-campanha de 2018. O que Bolsonaro sofreu foi uma suspeitíssima - mas muito bem vinda, no momento ideal para o então candidato - facada, que não o pôs em risco, mas permitiu que ele fugisse dos debates sem ficar com a devida fama de covardão. Porém, assim como a facada e seu autor não mereceram maiores investigações - a prisão do suspeito e a construção da narrativa como ex-filiado ao Psol bastaram -, os tiros na caravana de Lula, os motivos dos assassinatos de Mariele, Toninho ou Celso Daniel, tampouco merecem investigação - sequer merecem ser lembrados, pois a esquerda não pode ser vítima, apenas carrasca suspeita-portanto-culpada. Tiros na caravana? Foi alguém do próprio Lula quem atirou, para se fazer de vítima. Celso Daniel foi morto por ser corrupto, Mariele por ser casada com traficante. É importante à mídia e ao status quo construir uma narrativa perfeitamente coesa para dar a suas fantasias o máximo de aparência de realidade.
O esquema de segurança de Bolsonaro, para a posse e depois é um elemento a mais nessa grande fake news, nesse gigante fake world, construído por Globo, Folha, Record e quetais: no subtexto está sendo dito - dito, não, gritado - que o futuro presidente está em risco de um ataque iminente de algum esquerdista. Não apenas porque ele sofreu um (fake) atentado à faca, mas principalmente porque a esquerda é violenta naturalmente: vide a Rússia soviétiva, Cuba, Venezuela, Cesare Batisti, ou os atos menores, como obrigar crianças a aprender história; e esqueça a propria história, as milícias fascistas, as empresas de segurança especializadas em dissolução de greves na virada do século XIX para o XX nos EUA, os grupos de skinheads que atacam gays, pobres e esquerdistas; as empresas de segurança privada e os milicianos do Rio de Janeiro, a maioria dos atentados terroristas nos EUA, ou mesmo na Argentina: notícias desses grupos devem ser noticiados uma vez, se muito, para passar a impressão de imparcialidade da mídia, e esquecidos a seguir, soterrados pela repetição da violência e dos crimes da esquerda (que não é santa, antes que alguém queira me refutar com base nesse raciocínio precário, 0-1).
O esquema de segurança para a posse não serve para proteger ninguém, pelo contrário, serve para justificar num futuro breve um novo grau de arbitrariedades e violências (estatais, paraestatais-midiáticas e paraestatais-milicianas) contra as populações de sempre (pretos pobres periféricos) e todos aqueles que ousarem questionar o novo governo, como "nos bons tempos" da ditadura, digo, do movimento de 64, em que só apanhavam, eram torturados e assassinados "quem pedia". Fora isso, a harmonia social resplandecia, com cada um ocupando seu lugar sem discutir ou questionar.


28 de dezembro de 2018


quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

O espantalho de 2013

O movimento dos coletes amarelos na França têm feito muitos verem semelhanças com as ditas jornadas de junho de 2013 no Brasil, e torcem contra, por ser, pretensamente, um movimento de extrema-direita. Surpreende que muitos que fazem análises nessa linha são professores universitários - não raro marxistas -, que parecem presos demais aos livros para entenderem a história, que não quando contada a devida distância. Os "deve ser!", os "es muss sein!", das revoluções só são necessários porque aconteceram - até o momento derradeiro eram possibilidades em disputa, com infinitos devires de possibilidades -, e a pretensa pureza do movimento e de seus participantes é uma ideologia moderna que boa parte da nossa sociedade insiste em acreditar - mesmo os que denunciam ideologias mil mundo afora.
Já li acusações de que o MPL - Movimento Passe Livre - teria sido financiado com dinheiro da direita, para desestabilizar o governo petista. Se assim fosse, a direita não necessitaria criar um movimento cacofônico naquele instante, o MBL. Se o MPL ia de escola em escola agitar os protestos, o MBL foi um ensaio do uso das novas tecnologias - aliadas às velhas mídias - para mobilização popular. Também ignora-se que o MPL agia desde muito com a bandeira do - vejam só! - passe livre, e contra reajustes nas tarifas. O que houve diferente em 2013 foi o contexto, o caldo criado, insatisfações latentes que eram engolidas junto com o Big Mac e o refrigerante de dois litros, nos churrascos do fim de semana, nas prestações do carro e da casa nova. Como comentou Rosana Pinheiro-Machado no The Intercept_Brasil, as novas mobilizações - junho de 2013, rolezinhos, greve dos caminhoneiros, coletes amarelos na França - são mobilizações espontâneas, ambíguas, com sua direção desde sempre em disputa e seus participantes de forma alguma coesos [http://bit.ly/2zMeVqf]. O ponto é que a direita tinha alguma estratégia e muito dinheiro, e foi capaz de direcionar o movimento - inicialmente de esquerda -, enquanto a esquerda cobrava pedágio de pureza de ideias e ideais para acolher quem ia às ruas, se negava a ouvir e dialogar de fato com quem não aderia desde o princípio com suas teses, e acreditava demais na democracia liberal-burguesa e no determinismo histórico (ainda que sempre discurse no sentido contrário)
Junho de 2013 foi um ponto crítico, um catalisador de insatisfações, que tomou uma direção que a esquerda não esperava - o agir político para boa parte da esquerda, desde a ascensão petista, foi um esperar e assistir e publicar alguma análise crítica em revista indexada. E boa parte dessa esquerda segue achando que ação política é esperar, e os grandes momentos acontecerão quando tudo estiver pronto, e o que vier antes é farsa e manipulação. A esquerda perdeu a noção do tempo kairótico, talvez porque tenha desaprendido a enxergar o mundo diretamente, na angústia do sem sentido que se desenrola à nossa frente, sem controle e com mil possibilidades. De modo algum, contudo, as jornadas de Junho de 2013 foram inauguradoras do mal estar, criadoras de algo novo - no máximo ajudaram fomentar o que já vinha sendo cevado nos meandros da sociedade, sob nossos narizes. Falo isso porque reli recentemente três artigos da edição 12 da revista Casuística. artes antiartes heterodoxias, que fui idealizador e agitador, entre 2009 e 2012. São, portanto, quase um ano anteriores a junho de 2013, seis anos anteriores à emergência fascista das urnas de 2018. Nesses três artigos estão explicitados o neofascismo paulista (texto de Anna Coloda), as fake news (ainda nomeadas como mentiras) aceitas como mentiras, mesmo, sem necessidade de lastro com a realidade (texto meu); e o desejo de autoridade violenta, do juiz que quer ser general, "a justiça dos carrascos que punem antes de julgar" (texto de Cassio Correa); encerra o bloco uma foto de Natasha Mota, quatro crianças negras vislumbram um horizonte em aberto.
Parar as análises em 2013, como muitos doutores tem feito, é pedir para falhar fragorosamente novamente diante das urgências do presente. Os fatores que levaram à vitória (temporária) do fascismo vem de antes - e ouso dizer, os questionamentos da década de 1960 são os que tem emergido nestes anos 10: as resoluções do sistema aos problemas e insatisfações levantados naquela década caducaram e essas mesmas insatisfações e problemas ressurgem (num novo contexto, claro, mas no seu cerne, muito próximos). Ou abandonamos o espantalho de 2013 e partimos para um questionar profundo da produção, da sociabilidade e da mobilização política neste século XXI - acompanhado de tentativas de reorganização da mobilização política, com vistas a novas formas de sociabilidade e produção -, ou seguiremos em discussões acadêmicas beletristas e estéreis enquanto eles ganham as almas de trabalhadores e desempregados e fazem a guerra contra quem reagir à destruição do mundo que almejam.

05 de dezembro de 2018

Os textos da Casuística, páginas 24 a 30 (www.casuistica.net)

Neofascismo à Paulista (Anna Coloda)
O movimento de recrudescimento da direita fascistóide é visível em todo o país: militares queimam documentos enquanto a sociedade civil, Veja à frente, defende torturadores e, por conseqüência, a tortura – para não falar na “ditabranda” brasileira, conforme a Folha de São Paulo –, sob a desculpa de punição para os dois lados – o que significa punição dupla para torturados ou prescrição de crimes contra a humanidade.
No estado de São Paulo, sob a égide do PSDB, esse movimento ganha cores neofascistas, ao se tornar bandeira eleitoral e política de governo – a ponto de dar legenda para um jagunço disfarçado de policial. Fato para ser lamentado por todos os que defendem a democracia, dada as diretrizes que deram origem ao partido. Liderados pela dupla Serra-Alckmin – um dia antagonistas no partido –, o PSDB se tornou refugo do malufismo – a foto de Lula e Haddad com o próprio, assim como o discurso “tradição, família e propriedade” da propaganda petista, é mostra da tentativa de evitar a sangria desse eleitorado conservador-tosco, em nome de um projeto de poder.
As ações contra populações carentes – cujo exemplo mais simbólico é Pinheirinho –, os programas de assepsia social oficiais e extra-oficiais da cidade de São Paulo – Projeto Nova Luz, “limpeza” da cracolância dos nóia, reiterados e inexplicados incêndios em favelas –, para não falar no “atire antes, pergunte depois”, prática que se inspira no velho bordão “Rota na rua” – apenas prescindindo da Rota, ao se tornar ação corriqueira e banal de toda a PM do estado –, mostram que o partido caminha para agradar um nicho eleitoral que, a princípio, pretendia acabar. O discurso eleitoral de Serra e seus apêndices jornalísticos – em especial o mentiroso Folha de São Paulo –, em 2010, é prova que o PSDB, perdido com a reorientação conservadora na política econômica do PT, aceitou se diferenciar dele no quesito direitos humanos.
Se enquanto política de governo isso assusta – e quase chega a surpreender, mas não esqueçamos da criminalização dos movimentos sociais durante os anos FHC –, enquanto ideologia é velha conhecida dos paulistas. Talvez o que tenha mudado ao longo dos anos, que dê uma cara mais moderna a esse neofascismo seja a troca do discurso contra “raça” em nome de discurso (e atitudes) contra “escolhas”: não se discursa mais sobre a incompetência de negros, mas dos favelados; não são mais os nordestinos que emporcalham o Estado e a cidade, são os homossexuais. Persiste, de qualquer modo, o velho orgulho paulista, da locomotiva do Brasil (mesmo que já tenhamos visto o Concorde ser aposentado e planejarmos um trem em alta velocidade, São Paulo segue sendo uma locomotiva. Emblemático), em que “nove de julho é dez”. Para além das práticas políticas e policiais, o neofascismo paulista é visível em algumas representações artísticas.
No coração financeiro da capital, próximo ao Masp, se levanta em sua sisudez que lembra o neo-clássico-nazista – uma releitura racional dos modelos classicistas – o prédio do Bradesco. Pela ideologia ensinada nas escolas do grupo, em que crianças são submetidas à ética do trabalho, à anulação de demonstrações de personalidade e execrados em qualquer demonstração crítica, a arquitetura do prédio da Avenida Paulista é o que menos choca – no natal, em sua decoração kitsch, até ajuda a fazer a festa da família paulistana.
Na música, o grupo de rock Ira! ofereceu por duas décadas os hinos da intolerância paulista. Eles, que queriam lutar, mas não com a farda brasileira, não tiveram pudores em cantar contra a gente feia e ignorante, em favor de gente da sua terra e do seu sangue (quer algo mais nazista que isso? Nasi poderia responder). “Pobre Paulista” talvez seja o hino mais bem acabado de uma época, em que nordestinos eram acusados pelos males paulistas – intolerância essa que se aplacou com a escassez de empregadas domésticas. Aplacou mas não acabou: o problema do nordeste que só faz festa e vive às expensas de São Paulo, que é onde se trabalha, continua – e tem voz mesmo entre professores doutores em políticas educacionais das universidades estaduais paulistas. Para o consumo interno, a ira paulista apenas trocou de foco, como dito acima: o neofascismo paulista não vê problemas na agressão contra homossexuais, pobres, esquerdistas – seja feita por civis ou militares. Os chamados “excessos”, como a morte de um publicitário que não parou em uma blitz, são acidentes lamentáveis, mas plenamente justificáveis.
Onde essa política higienista irá acabar? Não sei, e tenho medo: não vem de agora, não é obra de um partido – que um dia se pretendeu progressista –, é algo que vem arraigado, e que, a depender da educação oficial, apenas será aprofundado. Não se trata de cair no maniqueísmo bem e mal, mas não é o caso de ser indiferentes, pois, como a música do Ira! atesta: é ódio mortal.

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“Quem não reagiu está vivo”: a mentira aceita como mentira (daniel gorte-dalmoro)
O desenho estatal contemporâneo é fundado e dependente da mentira. Não existe Estado se não na mentira.
A mentira ideológica, tão denunciada por marxistas, de que o Estado não é neutro, antes um órgão de uma classe específica, destinado a favorecê-la, em detrimento da grande maioria da população. Aos que rejeitam de cara essa visão, convém dar uma olhada na proporção de renda da população e dos que teoricamente são seus representantes no legislativo – e isso pode ser no Brasil ou nos EUA.
Outra mentira é o chamado “segredo de Estado”. Acreditar que um Estado possa existir sem segredos – e mentiras, que não raro são necessárias para ocultar tais segredos – é desconhecer a essência do Estado. Não existe possibilidade de novas relações entre Estado e sociedade, é tudo ou nada. Maior transparência não significa fim das mentiras. A perseguição a Assange é mais necessária do que a qualquer grupo terrorista – pois estes desestabilizam governos, aquele é capaz de chacoalhar Estados. A questão que o wikileaks põe é: o que pôr no lugar?
Há ainda a terceira mentira, tratada no século passado como “mentira totalitária”, em que a verdade empírica perde poder de veridicção sobre si própria, ou se torna irrelevante, porque a mentira passa a ser aceita como mentira, mesmo. Mentira e verdade deixam de ser polos antagônicos e passam a conviver pacificamente conforme o interesse do momento do governo, de uma classe, de um grupo. A lei passa a ser relativizada, e o Estado se desobriga de cumpri-la, uma vez que a mentira tem autoridade sobre a verdade.
Falar em “verdade” e “mentira” pode soar um tanto absoluto. Reconheço que são termos que podem ser postos em dúvida. O ponto aqui não é que a verdade seja posta em dúvida: a verdade Estatal já é sabida de antemão mentirosa, sem chance de réplica dos fatos, e isso não é tido como um problema.
Em 2 de outubro completam vinte anos de um dos muitos lamentáveis atos de barbárie do Estado brasileiro. O assassinato imediato de 111 pessoas indefesas pelo Estado (a se acreditar nos seus números oficiais, altamente questionáveis), para não falar nos mortos em decorrência de doenças contraídas na chacina.
111 deveria ser um número interdito no Brasil: em memória do silêncio daqueles que não puderam se defender de cães treinados para matar, o silêncio dos que sequer tiveram direito a clamar a verdade dos fatos, o número real de mortos, as condições em que foram mortos – e, antes disso, na qual eram tratados.
Ao contrário disso, o que temos? O assassino-mor, Antônio Fleury (sobrenome que só tem a marcar negativamente a história brasileira), livre, leve, solto, eventualmente eleito. O comandante da época, Coronel Ubiratan Guimarães, até ser morto em crime passional, se candidatava com grande orgulho das 111 pessoas que assassinara – e ganhava.
“Quem não reagiu está vivo”. Essa frase é sempre mentirosa quando dita por um agente do Estado.
Nos teóricos clássicos do Estado, este é fundado para garantir, antes de tudo a vida. Diante de um Estado que a desrespeita, é legítimo se voltar contra esse Estado. “Quem não reagiu está vivo” é mentirosa, contudo, não só por isso: com a mentira generalizada institucionalizada, todos sabem que as pessoas foram assassinadas indistintamente de terem reagido ou não. Por que alguém que está sendo julgado pelo tribunal do crime iria reagir contra a Rota? Por que e com o que um publicitário desarmado iria reagir contra a PM? Que espécie de confrontos são esses que os tiros saem sempre só de um lado? Só a Rota já matou 45 pessoas em 2012: o PCC tem toda razão de existir e agir.
Não que os chamados “bandidos” sejam bonzinhos, ou matem menos que polícia, mas a partir do momento que a polícia age como “bandida”, perde razão de ser, se torna tão bandido quanto aqueles que diz combater: escolher quem mata menos é uma falsa escolha.
Se a polícia não dá garantia, muito menos dão os responsáveis por ela. Geraldo Alckmin, acima de todos, ainda que ele não possa ser elevado a bode expiatório: é política de seu partido, o PSDB paulista, criminalizar movimentos sociais, populações carentes e usar de meios paralegais para combater pessoas abaixo de uma certa linha de renda – não existe auto-combustão em favelas, por mais que a mídia divulgue essa outra mentira estatal, sabida mentira, e aceita assim mesmo. É bandeira do seu partido e com fortíssimo respaldo na população. “Quem não deve não teme” é mentira também apregoada. Se a polícia não respeita a lei, como saber o que temer? No crime, ao menos, sabe-se que suas leis são cumpridas.
Resisto em chamar de neofascismo a esse movimento que toma São Paulo. Há várias similaridades entre a política tupiniquim atual e a do Partido Nacional Socialista Alemão, sim, mas há muitas diferenças também – de contexto, antes de tudo –; acho que o termo causa um certo choque, o que poderia ser positivo, mas simplifica em demasia a questão e impede uma crítica mais acurada do que está acontecendo agora, século XXI.

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Cartão vermelho (Cassio Correa)
O juiz vem correndo, com o cartão já empunhado. Sacou, como arma. Como revólver que atira. Não reflete, não analisa – arranca, com voracidade.
Estica a mão, furando o céu da expectativa, rasga o ar pesado com sua faca vermelha. O braço estica, catarse, como um zagueiro que tira de cima da linha. A cara se contorce, o olho fecha, e abre, com a justiça dos carrascos que punem antes de julgar. Prazer, gozo, ordem.
O juiz de futebol é carrasco, executor – não árbitro. É choque, não mediador.
O arbítrio é substituído pelo autoritarismo. Não falo com ninguém, sai daqui, sai daqui, diz, negando réplica, recurso, argumento, conversa. Sai daqui, aponta os dedos pra longe.
Vem o capitão (ó capitão, meu capitão). Sai daqui, eles gritam, ninguém entende, já não são palavras. Ah, é? Saca o amarelo e interdita a palavra. Vai falar mais? Vai? Sai daqui!
Nas cabines de comentários (ó comentário), seus mentores aplaudem a restauração da ordem. Manutenção do estado de direito de permanecer calado. Ele quis controlar a partida. Ah, o controle… A partida controlada, a palavra controlada, Batman devolvendo a paz à partida. Dizem: são garotos mimados, precisam de controle. São divas ricas, precisam de controle. São malandros, precisam de controle. O controle (dizem) que a cidade não tem…
A cidade, com suas catracas e viaturas nas esquinas.
Autoritarismo. É esse o caminho das coisas, aqui, Brasil, século XXI.
A escola é autoritária. A universidade é autoritária. Cada vez menos se admite a participação dos alunos nos rumos do seu próprio aprendizado. Qualquer contestação deve ser resolvida por uma mão pesada, dita dura, que dissolveria os problemas. O fracasso aumenta e faz aumentar o pedido de mordaça, no espaço da sociedade em que mais se espera o diálogo.
Nas ruas? Só a força do cassetete pode salvar. Limpar o resto de gente que fica nas calçadas. Expulsar o povo, transformando a cidade em deserto. Bandidos e mocinhos autoritários, brincando de guerra com a cidade. Dando cavalos de pau com seus camburões.
No trabalho? É só assim que o trabalhador vai entender seu lugar na máquina social. Que se cale. Sai daqui! Sai daqui! Há um direito divino em cada chefe, guiando seu povo pelo moedor de carne. O trabalhador moderno não questiona. Precisa entender hierarquia, mesmo que errada, mesmo que injusta. Se questiona, rua. Se rua, cassetete.
E a justiça? Há um homem e sua capacidade de julgar. Há a defesa da propriedade dos tabletes de manteiga furtados nos bolsos magros dos famintos. Há o livre-arbítrio pra desumanidade das corporações. Audiências que não escutam as partes, sentenças dadas como raios divinos, desprezo e humilhação contra aqueles que invocaram o que se chama justo.
Lembram do tanque de guerra na Praça da Paz? Esses juízes torcem para o tanque.
E o esporte, enfim, com seus presidentes vitalícios – generalíssimos que justificam o esporte controlado (na mão deles).
No Brasil, primeiro se atira, depois se impede a pergunta.
O país do futebol é um país, afinal.

domingo, 14 de outubro de 2018

Fábricas de desajustados (texto atrasado para o dia das crianças)

Passo o domingo preguiçosamente. Me propus não entrar no Fakebook, para evitar maior desgaste (é preciso um dia de descanso na batalha), e aproveitei a rede na casa da namorada para responder ao e-mail de um ex-colega da faculdade, um dos meus grandes amigos até hoje, que reside na Colômbia, onde mora com o marido (e o namorado de ambos). Sim, estou sempre na antepenúltima moda comunicacional: quando todos trocavam e-mail, eu escrevia cartas (parei apenas em 2010 com esse hábito); agora que todos mandam mensagens breves por Fakebook ou Whatsapp, troco e-mails (com a temporalidade de cartas, ainda por cima). Enfim, no e-mail me sinto quase Chico Buarque em "Meu caro amigo", sem querer atiçar as saudades de meu amigo, ao menos não por esta terra, onde ele correria perigo, ainda mais, nos dias atuais - porque a saudade dele segue, e sei que a recíproca é verdadeira.
Enquanto escrevo, minha namorada e seu filho jogam o videogame que ele recém ganhou. O garoto tem oito anos, um pai que dá as caras (quando dá) a cada quinze dias, e serve apenas para prejudicar a educação filho, conforme queixa da mãe (e olha que ele sequer é dos piores, não só não aderiu ao fascismo como vota na esquerda), que eu mesmo já conferi - como o medo exagerado dele por certas situações, após ter assistido a um filme inapropriado para sua idade, para não falar do exemplo que o garoto acaba tendo. Não ajuda, e ainda atrapalha - como sói acontecer com tantos pais (ausentes ou presentes). Assim como outras mulheres, minha namorada ficou indignada ao ser acusada pelo general Mourão, candidato a vice presidente na chapa de Bolsonaro, de que, a despeito de todo seu esforço, dedicação e abnegação, estaria criando um desajustado. A indignação é justa, e a fala do general mostra bem a percepção que a chapa de Bolsonaro possui da presença feminina e seu papel na sociedade: a mulher, cuja função primordial seria a de criar os filhos e viver para a família, é de uma incompetência tamanha que nem isso sabe fazer, se não estiver sob a tutela de um homem. E pior que sei de mães solteiras de filhos negros que votam no fascista.
Mas ao ver a educação/formação que meu enteado recebe, e pensando também na de filhos de muitas amigas minhas (que os criam sozinhos ou com a presença ativa do pai, estejam casados ou não), alguém como general Mourão, como Bolsonaro dizer que fabricam desajustados não deixa de ser um elogio. O que seria uma pessoa ajustada, dentro da ótima desses neofascistas?
Ajustado seria aquela pessoa que não questiona, que não tem interesse real pelo mundo e pela vida; a pessoa adestrada feito um camundongo de laboratório, que aceita tudo, diz sempre sim; incapaz de refletir, incapaz de pensar, incapaz de sentir por conta própria - o mais profundo que alguém ajustado ao neofascismo conseguiria chegar seria um kitsch de segunda classe (conforme Kundera sintetizou o kitsch). Por isso o ajustado a Bolsonaro (como ele próprio) ama a morte: porque no fundo sabe, sente (mas precisa reprimir) que não vive de verdade, conforme seus desejos e seus anseios, que apenas segue a boiada, imita o que dizem que é bom, persegue objetivos que dizem que é bom, teme um deus que dizem que é bom (e nem nota a contradição), tenta ser alguém que dizem ser o bom - o cidadão de bem. O ajustado ao fascismo é alguém pobre de repertório, apto para acreditar em qualquer mentira, a seguir qualquer medíocre com o qual se identifique - Galvão Bueno ou Bolsonaro -, porque é alguém sem auto-estima, e reconhece o valor que essa sociedade ajustada de Bolsonaro e Mourão lhe dá: nenhum.
Às mulheres que criam seus filhos sozinhas, e aos pais que criam seus filhos em conjunto, minha sugestão, meu pedido: sejam fábricas de desajustados, de Mafaldas e Calvins (para usar meus heróis nos quadrinhos), de crianças que preferem aprender a pintar a atirar, que saibam amar e não odiar,  que toda forma de amor é válida, que tenham autonomia para dizer sim e não, e arcar com as consequências, se preciso, sem se esconderem covardemente sob a sombra de um líder de qualquer espécie; que se tornem independentes não porque pagarão suas contas, mas porque pensam (desde cedo) com a própria cabeça a partir de conhecimentos sólidos e experiências de vida ricas. Desajustados que experimentam, que vivem seus afetos sem preconceitos e com liberdade responsável. Desajustados que questionem tudo e todos, sem se apegarem desesperadamente a qualquer verdade pretensamente unificante e salvadora; que enfrentem com respeito as autoridades, os costumes, a moral e os costumes (em especial os bons), que respeitem as diferenças - mas sejam intolerantes diante do intolerável, a tortura, o racismo, o preconceito, o xenofobia, a misoginia, a miséria, a fome, o desrespeito aos direitos humanos. Desajustados que façam do Brasil um lugar onde ajustados com, ajustados como Bolsonaro, Mourão e seu séquito fascista sejam apenas fragmentos de um pesadelo que não se concretizou. Desajustados que façam o mundo todo caminhar para um lugar melhor - para si e para todos. 

14 de outubro de 2018


terça-feira, 9 de outubro de 2018

Um nove de outubro sob nuvens fascistas

Sigur Rós me deixa um pouco à flor da pele. Um pouco mais, na verdade, porque à flor da pele já ando com a situação do país - eu e tantos amigos meus. O ódio, a burrice, a cegueira e a desumanização  do outro encarnado num candidato militar mal treinado e de raciocínio precário. Sua derrota dia 28 será apenas barrar o desastre total, dar força para uma possível resistência. A mobilização permanente deverá ser a tônica dos próximos tempos, sob o risco de cairmos no totalitarismo neofascista-neoliberal. Uma das nossas missões para tão logo encerre as eleições: fazer as pessoas serem capazes de enxergar. Enxergar o outro como um próximo, um igual, o outro como um ser humano - talvez, antes, ser capaz de fazer a pessoa enxergar a si própria como um ser humano, e não qualquer fantasia rota de super-homem (no sentido nietzschiano) que usa para encobrir sua mediocridade, seu ressentimento, sua frustração em não ser o que o espetáculo diz que deveria ser e ela finge encarnar.
São duas da tarde, já conversei pelo facebook, já mandei um calaboca pelo facebook, já expliquei que política é algo mais complexo que voto na urna, já li muita coisa, compartilhei, escrevi. Agora me dedico a preparar o boletim mensal do Serviço Pastoral dos Migrantes, parte de meu trabalho voluntário de quase quatro anos. São notícias de coisas pequenas, de banalidades das quais a vida é feita: uma reunião aqui, uma missa acolá, um encontro, uma mística com alguns migrantes e imigrantes, um apoio, uma acolhida, um protesto. No meu tempo de faculdade, diria que esse tipo de ação não era para mim, que isso beirava a insignificância, na minha fantasia de que eu deveria me dedicar a uma grande ação - pensamento infantil quebrado pela ação do tempo bem aproveitado, transformado em experiência e maturidade. Muitos dos meus amigos de antanho me olham estranho quando falo do meu trabalho na igreja, e eu sei porquê, e logo explico: sigo ateu, tanto quanto sempre fui, talvez até mais, mas se for buscar uma ação social que eu concorde 100%, me restaria agir sozinho ou em algum grupelho minúsculo, em ações estéreis - mas que poderiam me fazer convencer as paredes do quarto e dormir tranquilo. Prefiro conviver com a diferença, abrir mão de crenças secundárias da minha parte em nome de uma ação um pouco mais efetiva. Uma ação que vise um mundo mais justo e humano - sigo um "humanista ingênuo", como me acusavam na faculdade, definitivamente eu não soube me tornar um adulto responsável e por isso sigo em lutas "idealistas".
Uma dessas notícias que subo para o boletim é do recebimento, por parte de imigrantes que fazem curso de português em Manaus, de um kit com apostila, caderno, lápis, borracha, caneta. Há duas fotos que acompanham a brevíssima descrição. Nelas, 25 pessoas, a maioria negra, mostram suas pastas coloridas - pastas simples, dessas compradas em qualquer papelaria, sem qualquer personalização -, muitas sorriem para a foto, fazem sinal de positivo, algumas se escondem atrás dessas mesmas pastas. Estão ali, orgulhosas de uma caneta, um lápis, uma borracha, um caderno e uma apostila de português. Uma caneta simples, um lápis simples, uma borracha simples, um caderno simples e uma apostila de comunicação e expressão em português e cultura brasileira. Não é um diploma universitário, não é o carro do ano, não é um jantar em algum restaurante de chef que eles ostentam para a câmera. É um kit de cinco reais e aulas que não dão certificado. É quase nada. E mesmo sendo quase nada, para essas 25 pessoas vale muito, vale um fio de esperança com a qual pretendem tecer uma nova vida, por isso mostram suas pastas e seus sorrisos. E por um instante tentam esquecer das agruras que passaram para chegar nesse quase nada que é tanto, é motivo de orgulho, e das dificuldades homéricas que certamente ainda terão pela frente, até terem uma vida digna, uma vida humana - uma vida que não seja sobrevivência.
Olho para a rua chuvosa, nesta terra que pariu o neofascista Dallagnol, falso profeta de deus. Meus vizinhos babam ódio, fazem promessas falsas para um deus que abominam, idolatram a morte, invejam o amor e a vida, mesmo a miserável - que ainda assim é pulsante. Trocaram sua humanidade pelo carro do ano (e agora nutrem a ilusão de que uma arma poderá substituir seu genital murcho ou seco), e precisam aniquilar os "inferiores" porque estes jogam na sua cara, com sua simples existência, que o pacto com Mefistófeles era facultativo - e o que ganharam nem de perto equivale ao que pagaram. Por isso acham muito cem reais no Bolsa Família, acham absurdo dar comida a quem tem fome, livros para quem quer aprender, oportunidade para quem quer se dedicar. Meus vizinhos são infelizes, são pobres coitados com as prestações em dia, uma vida que nunca foi de verdade e dificilmente chegará a ser, perdida em obrigações que a máscara de um "cidadão de bem" coage. Votam no Bolsonaro e fingem não perceber que estão na fila para o campo de extermínio tanto quanto os que odeiam.

09 de outubro de 2018


segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Eleições 2018: duas questões tornadas uma, Bolsonaro agradece

Minha primeira aula da minha primeira faculdade - psicologia na USP -, foi de filosofia. Em tese era só apresentação da disciplina, mas o professor já se perdia em seus pensamentos - marca registrada do "filósofo da goiabeira" -, quando entrou uma veterana em busca de calouros voluntários para um trabalho de alguma matéria. Interrompeu a aula gracejando: "uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, ou é ao contrário, Furlan?". Quando a veterana saiu, o professor adentrou por essa nova senda e passou a falar da importância em saber distinguir as coisas, que nem sempre conseguimos perceber que uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa. 
Me lembrei dessa aula do Reinaldo Furlan ao assistir ao primeiro bloco do debate da Record do golpe (e do Bolsonaro). Com outros afazeres, não assisti aos demais blocos, mas esse foi significativo: bombardeio pesado contra Bolsonaro (sem muita mira, na minha opinião), com artilharia cerrada também contra Haddad e o PT, apresentado como antípoda de extrema-esquerda do fascista. É a estratégia traçada há mais de um ano pela mídia e o PSDB, que até agora não deu resultado (ou melhor, deu, para Bolsonaro), e não sei se dará certo agora - ainda que haja novidades no contexto, como a facada e o #elenão, não acredito. Não sei se algum analista já comentou isso, eu só tive o insight ontem: nossa elite não é exatamente das mais espertas (mesmo a que posa de intelectual, como atestam, a título de exemplo rápido, os erros primários de português de FHC e Moro), no máximo eficiente para blietzkriegs - não para estratégias de médio e longo prazo que não passem pela porrada pura e direta -, e uma das suas falhas está em notar que Bolsonaro é um problema, o PT é outro. Salvo Boulos e Haddad, por razões óbvias, e Daciolo, por razões que a razão desconhece, todos os demais candidatos seguiram, ao menos nesse primeiro bloco que presenciei, essa toada: bater forte em Bolsonaro e por o PT como a outra face da moeda. Não notaram que essa é uma moeda que está bastante valorizada, em qualquer um dos lados - são 66% dos votos válidos, conforme o último DataFalha [http://bit.ly/cG180717].
Ao tentar pôr o PT como Bolsonaro de esquerda, a estratégia acaba legitimando Bolsonaro como o antipetista autêntico - e depois de trinta e oito anos da grande mídia atacando o PT, com especial ênfase nos últimos dezesseis, parte dos zumbis-fascistas-vestidos-de-patos não querem meio termo, querem a destruição "dessa raça" (como disse um ex-senador catarinense) apresentada como "câncer" da nação. Que Alckmin busque essa linha é o natural, uma vez que o PSDB se tornou herdeiro do ranço antipetista do malufismo, abandonou qualquer projeto de país - de governo, que seja (não estou considerando rapina do Estado e divisão do butim um projeto, talvez devesse) -, e se centrou apenas no antipetismo moralista udenista ou, mais recentemente, num neofascismo de compadrio vestido de cashmere. Marina e Ciro, por sua vez, possuem outras possibilidades de discurso, poderiam bater em Bolsonaro como fizeram, mas se apresentar como alternativa ao petismo, desvinculando as duas questões: uma é combater o fascismo, outra é superar o petismo (seja lá o que isso signifique). A estratégia, caso vingue agora, tende a favorecer Alckmin. Caso não vingue, tende a tornar ainda mais envenenado o ar do segundo turno, encaminha para um "todos contra o PT", nem que para isso vingue o fascismo, que está cada vez mais naturalizado como opção política legítima.
Será preciso muita mobilização, na internet, nas conversas ocasionais e nas ruas para vencer as eleições. E será preciso manter essa mobilização pelos próximos anos para garantir que valores democráticos prevaleçam.

01 de outubro de 2018

Ao acatar a pós-verdade criada pela mídia para Alckmin, Ciro e Marina saem perdendo.

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

O fascista comum: um pobre coitado.

Tempos atrás, escrevi sobre o fascista comum, um zé ninguém como eu, como você, mas que diferentemente de mim (e, espero, de você que me lê agora), aderiu esfuziante ao cio da cadela fascista, desumanizando quem vê como diferente e achando que o mundo será bom o dia em que a harmonia será perfeita, graças à aniquilação de qualquer diferença - de posição política, opinião, cor de pele, gosto ou corte de cabelo [http://bit.ly/2xY2e9Y]. De início, cri que meus amigos e conhecidos que aderiram ao fascismo eram pessoas dotadas de má-fé e de burrice - não cabe falar em ignorância, porque são pessoas com ensino formal, acesso a livros e internet, não podem alegar desconhecimento, é má-fé na interpretação dos fatos ou falta de capacidade de cognitiva para tanto, certamente um misto dos dois. Ainda que o movimento dos patos batedores de panela tivesse fortes tintas fascistas, evitei taxar seus adeptos como tal, uma vez que a campanha da mídia goebbelsiana havia sido feroz contra o PT. Notei, no início do ano, que muitos dos meus amigos do Fakebook que bateram panela silenciavam sobre política, ou se diziam em decepção geral - haviam se tocado que foram feitos de pato, enganados feito crianças de quatro anos.
Com a campanha presidencial, discursos de ódio voltaram a ganhar legitimidade, e a postagem de um "amigo" do Fakebook me fez notar um outro aspecto do fascista comum que eu não atentara há seis meses: além de má-fé e burrice, o fascista comum é, no fundo, um pobre coitado, alguém com baixa auto-estima e sérias dificuldades em aceitar quem é, incapaz de se enxergar de fato no espelho, e que na ânsia de seguir acreditando na mentira que criou para si próprio, adere facilmente ao líder fascista, se autoenganando que essa identificação ao líder vai alterar quem ele é.
Tomo um exemplo muito específico, mas que creio significativo: um ex-professor que tive na SP Escola de Teatro. Em 2014 aderiu contente e caninamente a Aécio, questionou a legitimidade das eleições e chamou Dilma de estelionatária (por cumprir o programa que ele defendia); em 2015 bateu panela e não teve peias em chamar Dilma de vaca; em 2016 festejou que o Brasil havia sido devolvido para ele e torcia pela prisão de Luladrão, pouco importa que apenas por convicção; no início de 2018 estava silente, nada de política, sequer da prisão de Lula: só fotos em família. E continuava morando no Brasil, sinal que não soube aproveitar a oportunidade dada pelo golpe - ou não tinha dinheiro para tanto, de modo que precisa seguir camelando pelo pão de cada dia em terras tropicais.
Pelo visto, a campanha presidencial deste ano fez esquecer a vergonha que passou ao aderir sem pensar a líderes e pautas suspeitas, e permitiu a ele se libertar para assumir seus preconceitos - sem expressá-los claramente, como bom homem cordial. Em postagem precária de raciocínio, reduziu a política brasileira a PT e Bolsonaro para declarar voto no nazista. Como em texto que corre pela internet, há 11 opções entre PSL e PT, os debates apresentam boa parte desses candidatos, muitos deles possuem boa parte dos mesmos ideais do capitão, o que impede alegar ignorância: o voto fascista não é apenas por questão de antipetismo, mas de simpatia com suas bandeiras mesmo. 
Esse ex-professor é sintomático pela sua figura. Votar em Bolsonaro serve para negar a realidade mais bruta acerca de si próprio, até que um dia essa realidade seja brutalmente atirada contra seu rosto - e então ele, tardiamente, talvez perceba qual seu lugar na hierarquia fascista. Seu perfil na rede social é um desenho em que ele se apresenta como uma pessoa branca. Aqui no Brasil da cordialidade e do preconceito (mal) disfarçado, como temos um Pantone de cores para as pessoas, mil formas de alegar que alguém não é branco, ele pode ser identificado como "moreno"; nos EUA ou Europa, certamente seria "negro", sem necessidade de qualquer discussão. De volta ao Brasil, numa batida da polícia, certamente ele seria visado enquanto eu passaria tranquilamente - a depender da situação (como já me aconteceu), eu até poderia peitar o policial enquanto ele teria que ficar com as mãos na cabeça, humilhando perante os demais. Também seria algo pela cor de pele para uma milícia fascista paraestatal. Não apenas isso. Para meu primo, membro de gangues neonazistas de Curitiba há vinte anos (apesar de ele ser negro, ou melhor, moreno), esse professor tem cara de nordestino, e seria um dos alvos preferenciais dos seus ataques (me vem à lembrança nós assistindo ao jornal televisivo e ele xingando os "baianos", bando de "preto", "feio", "vagabundo", "fedido" que "não gosta de trabalhar" e "se deixar, fica na praia e faz carnaval o ano todo", tínhamos uns 17 anos na época; hoje ele vive basicamente de mesada dos pais, enquanto patina como professor de yoga bolsonarista). Outro "porém": ele é casado com mulher, tem filho, mas é um homem de gestos delicados, jeitosos, muito distante de um macho alfa, e pode facilmente ser confundido com um homossexual - creio que fascistas e homofóbicos de plantão pouco se importarão em questionar se ele de fato é gay antes de começar a golpeá-la. Seu porte físico tampouco permite acreditar possibilidade de defesa - apanharia até para uma gangue mirim que tentasse abusar de sua esposa, que é negra, e que ele não deve achá-la bonita, pois não teme que ela tenha "o direito" a ser estuprada - o elogio mais eloquente que uma mulher pode ganhar de um homem fascista, ser penetrada à força -, sem falar que deve ser bem submissa, para ser do seu agrado - se acreditarmos no que ele próprio fala.
Fico a imaginar o quanto ele não sofria quando trabalhava com teatro (pelo seu Fakebook, tenho a impressão que largou a área). No meu curso, cerca de metade dos alunos era composto por mulheres; 40% eram negros, e uns 70% homossexuais. Fora do curso, nos palcos e coxias, o número de pessoas negras, de homossexuais e de mulheres também é bem elevado. Como devia controlar o nojo de ter lidar com esse tipo de gente todos os dias? E ainda parecer simpático, atencioso e muitas vezes servil (porque ele era um zé ninguém da área, assim como um professor mediano, facilmente substituível, que nunca pode, portanto, dar pitis de estrela)? Quantos anos não teve que segurar esse ódio, em nome de ter uma aparência de pessoa legal. O que nele motiva esse ódio todo? 
O antipetismo é claramente um subterfúgio para não ter que encarar o desejo (interdito) que o consome por dentro, feito um câncer. Certamente o que ele odeia não é o outro, é a si próprio: o outro é um espantalho que o distrai daquilo que o perturba - e ele, como fascista comum, é um perturbado: muito mais fácil dizer que a culpa é do outro, inteiramente do outro, e ele, um inocente. E em alguma medida ele deve ser mesmo um inocente: conscientemente virgem daquilo que o oprime desde dentro e não o permite gozar a vida de modo leve e prazeroso. Não conheço nada da sua vida, o que me impede maiores conjecturas sobre seu caso particular, a não ser generalidades a partir daquilo que ele alardeia em suas postagens cheias de ódio: um pobre coitado que se gostaria de ser da elite, se nega a enxergar que não é elite, nem nunca será em um governo fascista: por ser negro, por parecer nordestino, por parecer homossexual, e por ser um classe média remediado, sem dinheiro suficiente para, quem sabe, tentar comprar seu atestado de legítimo homem branco do sul - espécie de carta alforria (falsa) destes tempos - ou uma quinta em terras lusitanas. Talvez, como é tão comum nestes Tristes Trópicos, tenha uma história de privação, de humilhações ao longo de toda a vida por causa da sua aparência e do seu jeito: mas nesse ponto, em que caberia entender que a culpa é, sim, do outro - ainda que um outro abstrato e imiscuído com o contexto e a história -, ele aceitaria que se trata de uma falha sua, e que a adesão aos valores que sempre o oprimiram, encarnado nestas eleições em Bolsonaro (com em 2014 foi em Aécio e em 2015 em Cunha) o limparia de seu pecado original: não ser branco, de ascendência europeia, classe média alta.

27 de setembro de 2018

sábado, 28 de abril de 2018

Quando um amigo passa o limite e assume ser fascista

Nunca havia feito isso antes - excluir pessoas do meu Fakebook por motivos políticos. Sou alguém que acredita - insiste em acreditar - no diálogo, no bom uso da razão. Não, não acho que sou o dono da razão, mas se não sei o que é o certo - sequer acredito em uma certeza única -, não hesito em ver muitas posições como claramente equivocadas - o fascismo e a desumanização do outro são algumas delas. Enquanto muitos já excluíam de seu Fakebook batedores de panelas nos inícios do golpe, eu via em meus amigos patos não má-fé, mas limitações de percepção, crítica e cognição, visto estarem demais imersos na linguagem espetacular, sob bombardeio intenso de uma mídia goebbelsiana: era difícil dialogar, mas eu  cria haver possibilidade, assim que surgisse uma brecha - poderia chamá-los para um uso razoável da razão.
Quem busca a razão para justificar injustiça e arbítrio mostra não fazer bom uso da razão. Quem comemora a desumanização do outro atesta sua incapacidade para a vida em sociedade. Não é uma situação definitiva - mas é limite, enquanto não for superada.
A condenação de Lula, faz vinte dias, foi a consagração do fascismo nestes Tristes Trópicos: a inversão do ônus da prova, a falsificação de provas, leis e ritos formais alterados conforme interesses pessoais de acusadores e juiz-inquisidor. Isso é julgamento nazifascista, stalinista - justiça é só um nome pomposo para a institucionalização do arbítrio dos mesquinhos. É o estado de exceção que vale para pobres pretos e periféricos democratizado a quem não lambe os pés dos poderosos - ainda que não os afronte. Alguém que acompanhou, mesmo que a distância, toda essa farsa nazifascista sul-brasileira, não tem como justificar o arbítrio ocorrido.  Não por acaso, muitos dos amigos que esfuziantemente bateram panelas estão silentes, quando não se dizem desiludidos com todas as instituições - executivo, legislativo e judiciário: notaram que até dentro de seu preconceito há um limite para o ódio. Ainda que tarde, perceberam que foram enganados, feitos de patos, ao endossar o coro dos manipulados pela mídia - agora calam, antes que se vejam novamente no ridículo de achar que pensam por conta própria enquanto repetem bordões vindos de cima. É a brecha para chamá-los à crítica, antes que a memória curta os induza novamente a agir como massa de manobra.
Comemorar uma prisão de um senhor de setenta anos (pois é, o vigor e a energia de Lula não raro faz com que esqueçamos que ele não tem quarenta, cinquenta anos) é gozar com a perversão institucionalizada - assim como os que gozaram com Maluf preso (agora que não tem poder algum). Comemorar uma prisão é uma aberração que a sociedade brasileira naturalizou, mesmo em suas fileiras progressistas: numa sociedade que já adentrou a modernidade, a prisão de alguém pode ser um alívio, nunca uma alegria. Preso deveria estar quem apresenta real perigo à sociedade - como quem fala em "escolher um que a gente mata depois" ou que é capaz de comprar agentes públicos que o investigam, por exemplo -, e não qualquer um, preso por um desejo de vingança que beira os primórdios da socialização humana - degenerado por todo o aparato tecnológico, que permite mil outras alternativas de reparação de danos e reintegração de desviantes (nem estou aqui questionando quem impõe o que é desvio o que é normal), assim como formas mais cruéis de tortura.
Quando vi em minha linha do tempo pessoas comemorando a prisão de Lula, ou tentando racionalizar uma justificativa para seu ódio tecnicamente equipado - ainda chamando os que bramem contra a injustiça como ressentidos -, me dei conta que haviam ali atravessado a linha da convivência humana, e adentravam decidida e declaradamente no fascismo: não vislumbro possibilidade de diálogo com quem não é capaz de identificar no outro um humano, um igual. E não há mais justificativa para manter sua posição - salvo severas limitações cognitivas, o que não é o caso - que não o prazer com a dor alheia, o desejo de aniquilação de tudo o que lhe perturba a pretensa harmonia de sua vida estreita e pusilânime. Não são ignorantes, não são burros, não são ingênuos: são pessoas de mau caráter, mesmo. Fascistas. Assassinos esperando sua oportunidade de serem o próximo a despachar o inimigo no trem para Auschwitz. Não por acaso hoje, dia 28, entro para ver se não fui precipitado em meu julgamento e vejo essas pessoas indignadas com cercas derrubadas pelo MST, exigindo justiça, e fazendo silêncio com os atentados contra o acampamento Marisa Letícia - se a Globo permitir, logo lançam um movimento "white fences matters". Confirmo que minha decisão foi correta: quem se regozija com a injustiça e (pretensa) humilhação de uma pessoa é capaz de sentir o mesmo prazer com qualquer outra - desde que não seja ela própria ou alguém muito próximo. Inclusive, não duvido que quanto maior a dor, maior o prazer - por que não, então, a morte, lenta, quem sabe sob tortura? Dispenso "amigos" que irão comemorar eventual condenação minha para a câmara de gás - incapaz que serei de provar minha inocência diante das convicções de meus algozes.

28 de abril de 2018

PS: já há muito tempo, por ter tido contato mais próximo, tomei decisão de romper com familiares nazifascistas - sabia que ali as possibilidades de bom uso da razão eram reduzidas. Acho que família não é justificativa para aceitar esse tipo de pensamento e ação (falo também em ação visto que um primo meu já integrou (não sei se ainda integra) gangues neonazistas em Curitiba). Mais curioso que esses parentes são os que mais falam em boas energias, amor: são professores de yoga, psicólogos exotéricos - tudo isso para no fim do dia achar que há pessoas e há não-pessoas, a despeito de serem todos homo sapiens.