sexta-feira, 23 de agosto de 2019

O Sesc e a oportunidade de estimular uma cultura democrática neste tempo que flerta com o fascismo

Por conta do artigo “Precisamos falar (criticamente) sobre o Sesc” [bit.ly/cG171010], que escrevi em 2017 e foi republicado na página do Luis Nassif, no Jornal GGN, recebi o convite para compôr uma mesa sobre “qual o papel do Sesc na promoção de cultura”, no Fórum Políticas Culturais, promovido pelo Centro Acadêmico Lupe Cotrim (CALC), da Escola de Comunicação e Artes da USP, dia 21 de agosto. Na mesa estaria também João Paulo Guadanucci, gerente de estudos e desenvolvimento do Sesc.
Surpreso pelo convite, uma vez que não sou estudioso ou especialista na área, pensara, de início, em fazer uma fala colada no que escrevera de 2017, salientando que muito daquilo não valia MAIS para 2019, visto que nele eu criticava o Sesc São Paulo dentro do que chamei de “sistema de financiamento, produção e circulação cultural do Brasil”, e não há mais nada parecido no Brasil de Bolsonaro, Moro, Doria Jr, Malafaia e tantos outros inimigos de toda arte que não seja propaganda do poder. Seria uma fala para pensarmos quando a onda fascista passasse, se ainda sobrasse algo. Foi o questionamento de um amigo sobre o porquê de eu não abordar a questão da segregação e a da cultura democrática que me fez repensar minha fala: ao invés de falar do passado e em um futuro do pretérito, era mais conveniente falar de algo que ainda cabe no presente e permite devires: se chuvas são fenômenos naturais que fogem ao nosso controle, as partículas das queimadas da Amazônia que baixaram sobre São Paulo esta semana é antes fruto da ação humana e por isso passível de ser alterada.
Ao cabo, diferentemente do que imaginei, João Paulo não foi à mesa para tecer exclusivamente loas ao Sesc – assim como eu não fui para falar mal, ainda que estivesse lá para reforçar alguns aspectos negativos que geralmente passam batidos. O texto a seguir é baseado em minha fala.
Como o próprio João Paulo havia dito, o termo “cultura” é bastante amplo e aberto a diversas interpretações. Foi usando dessa abertura que desisti de falar especificamente do que gira em torno de bens culturais para falar de “cultura democrática”, visto que democracia não é só um sistema de votação, mas é um sistema valorativo de ações, uma cultura, que implica em certa forma de ver e estar no mundo, de se relacionar com o outro e com seu entorno, de se engajar no simbólico e no real.
Quando estávamos sob governos democráticos, o Sesc florescia graças à disfunção do sistema de produção cultural brasileiro. Florescia e o retroalimentava. Nesse sistema estavam Sesc, leis de fomento, editais, Rouanet, equipamentos públicos, tentativas autônomas de espaços culturais, grandes grupos, etc. O Sesc, com muito dinheiro e bom trabalho, conseguiu o que eu chamei de "padrão Sesc de qualidade": bons espetáculos a preços módicos, que forma um público cativo. "Se tá no Sesc é porque é bom", foi uma expressão que ouvi muitas vezes. Tentativas independentes, como pequenos teatros, ou dependiam de alguma forma de estímulo público, ou corriam o sério risco de serem experiências efêmeras, pois não tinham como competir com uma instituição que não depende de bilheteria [João Paulo comentou do artigo de André Barcinsky que trata especificamente desse ponto: www.j.mp/30Bc1QD].
Desde 2016, contudo, a cultura tem sido atacada impiedosamente pelo avanço fascista e fundamentalista religioso (cujas portas foram escancaradas pelo PSDB de José Serra). Quando falo de avanço fascista, me refiro não apenas a Bolsonaro, mas também a Zema, Witzel, Doria Júnior e outros - não esquecemos o horror que foi Doria-Sturm na prefeitura de São Paulo, um verdadeiro Bolsonaro com complacência da mídia; assim como não esqueçamos o que foi o Sérgio Sá Leitão, atual secretário de Dória, no governo Temer. Esses ataques dos fascistas à cultura tem buscado ou a destruição pura e simples de políticas públicas para a cultura, ou o aparelhamento de equipamentos públicos, editais, fomentos (aquilo que acusavam os petistas ou esquerdistas de fazer, sem que conseguissem comprovar, até porque nunca houve de fato). A própria iniciativa privada passou a ficar temerosa de patrocinar espetáculos, com medo do patrulhamento ideológico da extrema direita associada a religiosos, como o caso do Queermuseu, por exemplo. Dessa catástrofe uma das poucas coisas que tem sobrevivido sem maiores traumas é o Sesc. Que agora também está sob ataque do ultraliberalismo de Guedes. Se isso se efetivar, destruído todo o sistema de cultura, o que sobraria? Produção cultural evangélica (pois há dinheiro de sobra e sem qualquer controle) e musicais enlatados para entretenimento rápido e que não incomodam ninguém.
O Sesc, em alguma medida, tem seu pingo de responsabilidade na situação em que nos encontramos - como diversos outros atores sociais, inclusive os movimentos sociais, inclusivo aquele do qual eu faço parte. Um dos pontos que os usuários dos equipamentos culturais do Sesc mais gostam de se enganar é que ele é democrático e popular. Não é. Ingresso caro é elitista, mas ingresso barato não é necessariamente popular: há uma série de fatores que influencia que certos grupos sociais se sintam bem vindos ou não num lugar - por exemplo, seguranças engravatados olhando de alto a baixo quem entra. Já presenciei usuário do Sesc ser barrado na entrada, foi na Vila Mariana, porque não se encaixava no seu tipo padrão, e precisou apresentar sua carteira de comerciário para poder entrar. Isso é um muro. Um muro invisível para que não é barrado, um muro não-dito, mas um muro maldito para quem é "público-alvo". Não é exclusividade do Sesc, é toda uma cultura antidemocrática, antipopular que vigora no país – o Sesc talvez seja até um dos locais mais amenos nisso, perto de baladas, shopping centers ou mesmo parques públicos.
O Sesc 24 de maio agora diminuiu um pouco, mas quando a unidade foi inaugurada tinha muitos seguranças no térreo, num claro desconvite para que a população que ocupa aquela região não entrasse - o próprio Paulo Mendes da Rocha, numa entrevista sobre o prédio, deixou escapar que o público a ser atraído para ali não eram comerciários da região, mas detentores de capital cultural: universitários, classe média alta, brancos ou "embranquecidos". Nas últimas vezes que passei em frente, inclusive, notei que cercaram a marquise onde as pessoas se sentavam para passar o tempo – melhor grades a povo. Não sei se é temporário, tomara que sim.
A programação também acaba, muitas vezes, por reforçar esse caráter "elitista a preços populares" - ao menos até início de 2018. A unidade Pinheiros, por exemplo. Está numa região onde confluem engravatados da Faria Lima, universitários descolados, "meio intelectual, meio de esquerda", como dizia Antônio Prata (que escrevia para a revista do Sesc), e pessoas de classes mais baixas - tanto que o Largo da Batata, antes da gentrificação dos últimos anos, era um dos principais pontos do forró de São Paulo. Pergunto: qual é a proporção de shows de forró para shows de bandinhas de rock alternativo no Sesc Pinheiros? Ah, mas no Sesc Itaquera, no Sesc Interlagos... Sim, nas unidades da periferia, há uma arte condizente com o que o preconceito diz que a periferia gosta. Um reforço à lógica segregacionista do espaço - que esteve bem presente no governo Haddad-Bonduki, por sinal. Resultado: eu vejo pouca diversidade social. Se você for na Oswald de Andrade (sob ameaça de Doria Jr), na Casa do Povo, no CCSP (que sem explicação barrou a realização da CryptoRave quando Doria Jr. era prefeito), você vai ver um público bem diferente, mais heterogêneo, daquele que se senta nas poltronas do Sesc.
Aqui eu entro em outro ponto da defasagem democrática do Sesc: não apenas no público que atrai para suas unidades centrais, mas a forma como gere suas unidades. Nunca li em uma revista de programação, nunca recebi um e-mail, nunca soube de um conselho composto por moradores e trabalhadores da região, ou de quem for, que não seja programador do Sesc, ser chamado para decidir os rumos das unidades. Não digo as atrações específicas, mas as diretrizes do semestre ou do ano – que seja algo consultivo. Conforme João Paulo, há um conselho geral, com participação (minoritária) dos trabalhadores. De qualquer modo, as unidades funcionam funcionam no esquema empresarial, sem chamar a uma participação efetiva da sociedade – por mais que os técnicos de programação encontrem brechas para trabalhar democraticamente com agentes culturais.
Eu vejo esse déficit de participação na forma como o Sesc tem sido defendido na minha bolha de usuários do Sesc: avatares na foto de perfil do Facebook. Comparo com o que ocorreu na Vila Itororó, e seu Canteiro Aberto: uma participação efetiva da comunidade na decisão dos usos e rumos do espaço cultural. Tanto que quando o acordo com o Instituto Pedra foi encerrado, em meados de 2018, pela gestão Doria Júnior, muitos temeram pelo fim da experiência. Porém, o resultado foi um aprofundamento da proposta por parte da população, eles dobraram a aposta e houve uma maior gama de atividades e maior difusão. É uma experiência fantástica.
Se abrir a experimentos, experimentações, se abrir à construção democrática, pode pôr em risco o "selo Sesc de qualidade", que ele conseguiu imprimir a tudo o que aparece no seu guia de programação. É uma perda, sem dúvida. Contudo, diante do contexto atual, dos ataques que a cultura tem sofrido, talvez caiba ao Sesc repensar urgentemente sua inserção e sua forma de relação com a sociedade, não apenas para ser numa futura sociedade efetivamente democrática - de cultura democrática - um farol a guiar outras iniciativas, na área de cultura e fora dela, e sim para desde já contribuir para romper as trevas que nos tomam - junto com restos das queimadas amazônicas.

23 de agosto de 2019

PS: claro, resta saber o que resta do empresariado brasileiro ao talho de Simonsen e outros, ou se o que nos sobra é gente ao estilo "Véio sonegador da Havan".

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