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quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

O gado que aplaude o chicote

Durante a ditadura civil-militar adotou-se a cenoura ideológica do "Brasil, país do futuro". Para o grosso da população, o Brasil vivia do futuro (e não para o futuro): o interregno ditatorial logo daria lugar a uma democracia das pessoas de bem, o bolo cresceria para logo ser dividido (Delfim Netto afirma nunca ter dito isso, o que parece ser verdade: ao que tudo indica, nunca passou pela sua cabeça a necessidade de dividir o bolo com a rafuagem, vide suas defesas das ações do governo golpista atual), em breve o Brasil se tornaria uma potência mundial; um amanhã radiante, para compensar o hoje funesto e mórbido ou, como (não) cantava Raul Seixas em "Como vovó já dizia" (censurada): "Quem não tem presente se conforma com o futuro.
Com a produção da memória (e do esquecimento) nas mãos do status quo (do espetáculo, diria Debord), foi preciso apenas uma geração para que a ditadura civil-militar não fosse mais que uma historieta distante, sem maiores implicações na vida, e o campo estivesse pronto para a semeadura de uma nova ditadura (desta feita, ao que tudo indica, encabeçada por juízes e procuradores, não mais por militares), a avançar brandamente como um zepelim sob o céu azul (seria Lula nossa Geni?).
Novamente tolhidos do presente, nos conformamos com o futuro. Contudo, ao contrário de 1970, a solidariedade social foi dinamitada por um individualismo cego e suicida, e o futuro que se sonha a partir dos escombros que habitamos é um futuro individual - a coletividade pode servir de alicerce para a "vitória" do indivíduo, não pode crescer junto (como atestam o ódio ao PT e aos programas sociais de minoração da miséria e aos de capacitação precária da mão-de-obra). 
Durante o almoço, ao meu lado, dois advogados conversam, ambos na faixa dos trinta anos. O rapaz conta do seu crescimento e do seu mais novo contrato. Não diz explicitamente, mas fica evidente que se considera um predestinado dos grandes fornecedores. Conta primeiro que conseguiu abrir seu escritório graças a uma indenização ganha contra o Carrefour, por ter incluído seu nome no CPC/Serasa após ter quitado sua dívida. Admito que não sou entendedor dessas questões, se a decisão de mandar o inadimplente (ou suposto) para a lista suja é automatizado ou depende uma pessoa, porém me chamou a atenção que seu nome ficou sujo por duas pendências: uma de cinqüenta e outra de trinta centavos. Graças a essa cobrança de oitenta centavos, o Carrefour teve que pagar três mil reais (na época, que não sei quando foi). Parece um erro grotesco de programação, ao mesmo tempo soa bastante plausível como ação deliberada de um funcionário insatisfeito com a empresa.
A mais recente proeza do rapaz é um contrato recém assinado, para ser advogado das Casas Bahia. "Na verdade - ele se corrige -, não foi a Casas Bahia quem me contratou; sou terceirizado". Tenho a clara impressão de que falou com orgulho que era um trabalhador precário - talvez fosse orgulho por estar trabalhando para uma grande rede. Ele prossegue e conta, admirado, do escritório que o contratou: "mudaram pra Alameda Santos. Ficaram com uma estrutura super enxuta. São os dois sócios, mais dois advogados e uma estagiária", mas tem cento e cinqüenta advogados trabalhando para eles. "Estão certos: não tem que ficar administrando pessoal, gastando com férias, décimo terceiro, essas coisas". Sua interlocutora concorda entusiasmada, cita um caso de um escritório que está seguindo "a nova tendência do mercado".
Reparo nos dois. O homem é negro, a mulher, branca. Não tem a menor pinta de que estudaram na USP, ou mesmo na PUC. Provavelmente conseguiram seus anéis de bacharéis graças ao Prouni do Lula. São peões sonhando ser patrões. E em nome do que acreditam que um dia virão a ser, batem palmas à própria exploração, comemoram a perda dos seus direitos, planejam fazer o mesmo e um pouco mais quando estiverem do outro lado do balcão, quando de gado se tornarem quem dá o preço no leilão. Se se tornarem. 
Se... 
A cenoura ideológica atual diz que é só você querer, que amanhã assim será, basta um pouco de esforço e abnegação. Propositalmente não diz que esse paraíso terrestre tem vagas limitadas e fila preferencial - e certamente os dois deslumbrados ao meu lado, um deles que acha que tirou a sorte por ter conseguido três mil reais de indenização, estão longe de entrar nessa fila, se não tiverem sorte ou um jeitinho heterodoxo de resolver a vida. Negar a própria realidade em favor do que ingenuamente acreditam que um dia se tornarão: negar que são oprimidos, embalados no sonho de logo se tornarem opressores. Paulo Freire, desenterrado pela extrema-direita (e terraplanistas em geral) como educador-ideólogo a serviço do PT, esquecido de fato pela esquerda, se mostra atual, como nunca deixou de ser. 
Nosso trabalho de base se mostrou falho - e não só por comodismo com o PT no poder federal e adequação ao seu discurso despolitizante. Parte da esquerda - a com maior capital simbólico e cultural - nunca quis sujar os pés, sair de suas cômodas salas de aula da academia e tentar dialogar com a massa da população - dialogar e não civilizar, ensinar, conduzir: entrar em contato e ouvir medos e aspirações daqueles que tratamos por objeto (de estudo, mas não por isso menos objeto). Nosso diálogo é entre pares, em revistas que contam pontos que rendem uns trocados a mais, não com o diferente, com quem não teve a oportunidade de estudar em universidade de ponta. Daí que a universidade pública pode ser atacada de toda forma e poucos se indignam. Ou que a nova direita tenha encontrado solo fértil para impôr sua forma de encarar o mundo - fake news, ódio e gregarismo proto-fascista. Daí o discurso consolidado que condena os vagabundos (pobres) e louva o "vagabundo ostentação". Por isso não surpreende o gado que louva o chicote, e que a reforma trabalhista tenha sido aprovada sem maiores resistências. 
Sou otimista, e creio que há possibilidades de reverter esse quadro, até mesmo no curto prazo: apesar de todos seus títulos, os doutores golpistas são grosseiros e petulantes o suficiente para deixar pronta uma contra-narrativa que escancara a realidade sem a cenoura ideológica (diante de Moro, Mendes e caterva, até os linha-dura de 64 seriam "da Sorbone"). A questão é a esquerda e as forças progressistas saberem se aproveitar do momento para desvelar as mentiras, sem querer pôr uma verdade no lugar - deixar a cada um e cada uma descobrir sua verdade por suas próprias pernas. Sair da internet e das universidade e ir para a rua é parte fundamental nesse processo.

13 de dezembro de 2017

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Youtubers: a ponta de lança da resistência progressista?

Faz um tempo desativei o rastreamento do Google, de modo a ser bisbilhotado apenas sem meu consentimento; como resultado, o Youtube tem apresentado sugestões de vídeos muito aleatórios para meus gostos já razoavelmente aleatórios (as propagandas seguem certeiras nas buscas que fiz). Hoje entrei para ver o novo vídeo do Porta dos Fundos. Serviu para dirimir minha suspeita de auto-censura por parte do grupo - a nova dona da marca, Viacom, poderia, talvez, estar pedindo para moderarem nas críticas religiosas, para não perder esse importante mercado consumidor que são os evangélicos (e católicos) conservadores-reacionários. Parece que o grupo não está se censurando, e sim aprofundado a crítica no ponto exato: o uso do nome de deus, e não o próprio.
Findo a esquete em que um deputado tenta convencer seus interrogadores da justiça que apenas praticava corrupção, e não qualquer ato sexual com outro homem - pois era pastor e não podia ficar mal com seu rebanho, caso fosse visto como gay -, me distraio e o Youtube engata um vídeo na sequência. Dois youtubers que nunca vi na frente respondem a um terceiro - ilustre desconhecido meu, como todos os youtubers, pelo visto. Por procrastinação crônica, fico a assistir.
A discussão que eles traziam era sobre o grande debate atual do Brasil, na falta de questões mais urgentes: se Hitler e o nazismo seriam de esquerda - ou mesmo comunistas. Uma questão quase pueril diante de quem defende que a Terra é plana. Só não inocente porque não estamos falando de algo enterrado no passado - a possibilidade de um segundo turno em 2018 (se tivermos eleições) entre Bolsonaro e Doria Jr que o diga.
A dupla que fez a tréplica prima pelo rigor e pelo respeito à inteligência daqueles que os assistem - mas numa linguagem que caminha para a do líder do MBL, K.K. (K?) (ao menos nos dois vídeos que vi desse pequeno apedeuta levado às páginas da Folha de São Paulo para falar sobre Power Rangers e atestar a qualidade e índole do "maior jornal do Brasil"), apenas um pouco menos cínica e dona da verdade - talvez seja minha ignorância da linguagem usada pelos youtubers do mundo. O boçal a quem respondiam tem a fala pausada dos velhos sábios donos da sacro-santa verdade - um O. C. ou L. F. P. metaleiro. Como os mestres, abusa de má-fé e usa de mil referências bibliográficas e citações descontextualizadas para justificar seu preconceito para um público desejoso de uma mentira envernizada (ou nem tanto) que encubra sua ignorância e justifique seu ódio (uma forma de fuga de suas vidas existencialmente miseráveis?).
Após os vinte minutos de vídeo, o Youtube me manda para uma outra tréplica contra o mesmo nazi-metaleiro. A questão agora é religiosa. E o youtuber da vez tem uma estética despreocupada, para aparentar que o vídeo foi gravado de sopetão, sem maior preparo, com ele exprimindo sua opinião como se não tivesse elaborado o discurso - ao menos ele realmente exprime uma opinião e não um veridicto divino.
Por conta própria, resolvo encarar o youtuber raiz desses vídeos que acabei por assistir - fui logo no primeiro sugerido, em que ele fala de religião. Diz que não é Jesus nem pretende sê-lo - mas age como se fosse o irmão mais novo dele, com a sensível diferença de ser um vida boa e que optou por fugir dos pregos e das cruzes e encruzilhadas da vida (linha reta é sempre mais rápido. Acelera!). Retira uma meia dúzia de passagens bíblicas para justificar homofobia e defender que Jesus pregava o ódio e a intolerância - ah, a Bíblia, esse livro maravilhoso que serve a qualquer propósito e ninguém se anima a seguir à risca faz um par de anos, pouco mais de dois mil. O nazi-metaleiro não tem trinta anos, mas fala como se tivesse a sabedora de um velho mandarim da China antiga. Seu público, pelo que dá para deduzir, deve ser como muitos dos meus tios e primos (em tempo: não posso escolher meus parentes, no máximo, como fiz, romper com eles): carente de um grande pai (dono de um grande falo) que diga o que é certo e o que é errado, se ajoelha para o primeiro que assumir o papel farsesco e repete o que ele fala como se pensasse. E aos homens-gado e mulheres-gado o ódio é sempre mais fácil de internalizar e entender - talvez por dinâmica interna.
Ao fim de uma hora de vídeos, os últimos vinte minutos do mais puro dejeto intelectual, a recusa soberba e orgulhosa do pensar - louvada como "coragem de falar o que pensa" nos comentários -, me pus a perguntar porque tenho perdido tanto meu tempo com porcarias (minha relação com a internet até merecia uma crônica).
De uma porcaria a outra, vou ao Fakebook, minha bolha política virtual. Lá, um professor universitário (da área de humanas e de esquerda) avisa que não há erro maior que responder à acusação de que o nazismo era de esquerda: isso seria dar verniz de assunto sério a um descalabro sem tamanho. A torre de marfim tupiniquim não me desaponta! E entendo que ter perdido meu tempo com os youtubers não foi em vão.
A ignorância de mundo do professor doutor e pós-doutor me fez entender a importância dos youtubers: são jovens dispostos a dar a cara e discutir no mesmo terreno (um dos) que a extrema-direita avança com sua ignorância planejada. Poucos são os professores universitários que se arriscam a "se rebaixar" e encarar a mídia de massa - ou mesmo um público amplo sem "formação superior" nem endinheirado -, levar alguma luz (e no atual contexto não é descabido esse tom salvacionista) a uma massa que tem como ídolos Neymar, Rodrigo Hilbert e Ana Hickman; que tem como formadores de opinião Bonner, Galvão Bueno, Datena e Luciano Huck. Esses poucos que se arriscam, tem dificuldade em achar uma linguagem que impacte muito além dos que tendem a concordar com suas posições - Karnal talvez fosse o grande nome desses iluministas-midiáticos, mas foi ele próprio seduzido pelo cio da cadela do nazismo (como ele mesmo dizia). Safatle, que vejo como sucessor da Chauí na empreitada midiática, é um dos poucos que se expõem, mas os dois filósofos recusaram maior jogo de cintura e preferiram afirmar desde cara uma posição - o que tem seus pontos positivos e negativos. Mesmo pela rede, a maioria dos professores universitários que sigo prefere discussões herméticas, nos seus melhores momentos, quando não destilam puro ressentimento contra o PT ou se auto-iludem de que ensinar teoria marxista para os filhos da elite é fazer a revolução - Luis Felipe Miguel, professor da UnB e uma das mais lúcidas vozes da atualidade, é uma exceção obrigatória de ser acompanhada! Os professores não-universitários, esses, quando podem falar em sala de aula sem risco de perderem o emprego ou serem intimidados pelos vigilantes do "Escola Sem Partido", devem ficar contentes - e a academia retira deles qualquer legitimidade para pleitear voz como especialistas na sociedade.
Ao fim destas duas horas de procrastinação depressiva pela internet, em grosseiras linhas gerais, ouso dizer que, enquanto a extrema-direita se organiza e ataca por várias frentes e em várias linguagens, se aproveitando de seu poderio econômico, sua hegemonia na grande imprensa e de um sistema educacional falido de alto a baixo, da pré-escola à pós-graduação - USP ou Unicamp serem as melhores universidades da América Latina beira a insignificância social, uma vez que o que é produzido ali dentro parece não extrapolar seus muros (ainda que o professor da Faculdade de Medicina da Unicamp, Paulo Palma, me faça temer que, sim, o pensamento acadêmico tem contaminado o país, e é por isso que discutimos se Hitler é de esquerda, e logo estaremos acompanhando uma discussão sobre se as balas utilizadas pela PM para execução de negros e periféricos deve ser paga pelas famílias que perderam seus entes queridos) -, a esquerda oscila entre brigas ressentidas entre partidos (quando não em movimentos oportunistas de políticos de expressão, como Luciana Genro), movimentos sociais que tentam acordar e se reestruturar depois da letargia otimista dos anos Lula (MTST é o grande ponto fora da curva), sindicatos transformados em impotentes grupos de lobby, e acadêmicos que dão mais valor às discussões herméticas sobre a epistemologia marxiana do que às condições objetivas da sociedade atual - a alienação da universidade pública frente a realidade que está inserida é tamanha que não percebe nem quando está sendo atacada: mesmo com o anúncio de seu desmonte, ainda antes de Temer assumir, e depois com a emenda constitucional que congelou os gastos com saúde, educação e segurança por 20 anos, nada, absolutamente nada fez, que não xingar um pouco no twitter. Nesse contexto, parece que a ponta de lança de alguma possibilidade de reação e mudança vem da juventude, com os secundaristas na ação direta, e com os youtubers, na frente de comunicação, formação e contra-informação. A despeito das boas intenções, é muito pouco para fazer frente.

17 de agosto de 2017

PS1: Não falei da direita não extrema; essa, infelizmente, desapareceu do Brasil, com a adesão do PSDB ao nazi-fascismo tupiniquim desde Serra 2010, engolido de vez por Bolsonaro e Doria Jr, fina flor do hitlerismo tropical do século XXI (e para registrar: este comentário pode me custar o emprego).
PS2: visualizações dos vídeos citados (até 12h do dia 18): Coisa de Nerd: 345 mil; Izzy Nobre: 456 mil; nazi-metaleiro: 464 mil. A título de comparação. Os últimos 3 vídeos do PSOL tem, respectivamente, 22, 442 e 2,3 mil visualizações; os do PT, quando muito, chegam a uma centena.


terça-feira, 13 de junho de 2017

Lava Jato em dois tempos: há listras e estrelas - e há as nossas elites ineptas.

Fernando Horta sugere que sigamos devagar com o andor em apontar o dedo para o Tio Sam na orquestração do golpe e do colapso político (e econômico) brasileiro [http://bit.ly/2rWS8EJ]. Ainda que não ache que os Estados Unidos sejam os grande protagonistas do que vivemos atualmente, não consigo não vê-los em papel de destaque; e se nos faltam provas da participação estadunidense - afinal, ainda não foram disponibilizados os documentos dos EUA sobre este passado tão recente -, há uma série de elementos que reforçam a hipótese de influência externa.
Influência não quer dizer determinismo: sem nossas elites interessadas na defesa de seus privilégios e ávidas em reafirmar seu poderio frente os trabalhadores e os descamisados, não haveria golpe algum, participasse os EUA ou não. Como Horta comenta, os EUA não são exatamente um primor de eficiência quando buscam garantir seus interesses pelo globo - e cita o exemplo da Baía dos Porcos e do Afeganistão. Contudo, os EUA ainda são eficientes em desestabilizar o mundo, como no caso do próprio Afeganistão ou nos diversos conflitos que eclodiram após a chamada primavera árabe. Horta também fala de empresas e interesses capazes de ações internacionais por cima do governo - a questão é o quanto é possível fazer uma distinção drástica entre os interesses desses atores e do governo estadunidense, sempre em parcerias muito próximas, por mais que não possam ser tratados como uma coisa só.
Dado o papel principal às nossas elites, questiono a extensão da participação dos EUA. A Lava Jato possui claramente duas fases, dois momentos bem distintos. No primeiro deles (2014-2015), ações precisas, com provas e não convicções, acertam em cheio os pontos estruturantes do relativo protagonismo que o Brasil vinha ganhando com os governos petistas: empreiteiras, segurança nacional, com o submarino atômico, e, principalmente, petróleo. Dos grampos telefônicos da NSA à presidenta Dilma, além de uma série de outros grampos que é de se imaginar que correram solto no país, passando pelo treinamento de Moro e outros nos EUA, tudo leva a crer que se sabia onde estavam os pontos que poderiam ser "descobertos" e provados rapidamente. A novidade no uso das prisões preventivas como forma de tortura evitou questionamentos mais enfáticos à legalidade do método das "delações premiadas", assim como acusações de seletividade política eram caladas na medida em que o recorte era preciso em determinadas ilegalidades - sem, até então, a predominância do discurso messiânico-religioso de salvar o país da corrupção (atéia e comunista?) do pato Dallagnol. Pode-se definir essa fase como uma "operação asséptica", uma blietzkrieg econômica-geopolítica. E precisava ser rápida, porque seu fôlego era curto e logo seria tripudiada em seus métodos. Os resultados favoráveis aos EUA não demoraram para aparecer, não só com o enfraquecimento da Petrobrás, assim como na abertura do pré-sal às petroleiras internacionais, ainda no governo Dilma [http://bit.ly/2sk5sn9].
Ainda mais quando comparado ao segundo momento da Lava Jato, fica a forte impressão de que Moro e a república de Curitiba foram inicialmente atores de uma peça escrita alhures, e cumpriram bem seu papel. No segundo momento, os atores resolveram assumir a condição de autores e descambamos para o estado de exceção ao melhor estilo do III Reich. Prisões arbitrárias infinitas (ou até uma delação premiada falando em PT e Lula), delações sem provas, violação explícita da constituição, power points toscos, convicções como condição de prova de crime. A esbórnia tomou conta de Curitiba e da nação a partir de 2015. É quando, ao que tudo indica, nossa elite tomou as rédeas da situação. A perseguição política de Moro e pato Dallagnol ao PT e a Lula passaram a ser evidentes, e a falta de qualquer decoro do judiciário foi além de Coronel Mendes e seu pupilo D.T. e se tornou carne de vaca - não me refiro aqui à Operação Carne Fraca ou à delação da JBS. Em São Paulo, a PM foi usada como milícia tucana [http://bit.ly/2rrQ3gs], um oficial do exército agiu à revelia da Comandante em Chefe, espionando movimentos sociais por mais de um ano até forjar um ridículo flagrante contra adolescentes [http://bit.ly/2sYkwF5], e em Brasília, bem, em Brasília todos os piores estereótipos sobre políticos subiram o Planalto com Temer e sua camarilha, para melhor destruir a Constituição, os direitos sociais e qualquer possibilidade de vida minimamente digna a milhões de brasileiros.
Ainda que tenha participado de golpes similares anteriormente, em Honduras e no Paraguai - vale lembrar o nome da embaixatriz Liliana Ayalde -, não me parece que esse segundo momento fosse do interesse dos EUA, não só por permitir a eventual ascensão de um político progressista (Lula, no caso) ou destemperado (ninguém aqui, por enquanto), como por não ser nada positivo aos seus interesses geopolíticos ter a grande potência regional à deriva, sem poder contribuir para garantir a estabilidade na região.
Em resumo: sem nossas elites, não teria Lava Jato, não teria golpe, não teria o colapso político e caos econômico que vivenciamos. Concordo com Horta que buscar um inimigo interno é fugir das próprias responsabilidades e, mais, é deixar passar o principal - a conclusão de sua análise é precisa. Porém, até pelo primarismo de nossas elites, é difícil não acreditar na colaboração efetiva dos EUA - se governo, CIA, Departamento de Estado, think tanks, empresas, universidades ou o que for, não importa - como fator fundamental do sucesso inicial da Lava Jato - mentores e capitães da operação de desmonte do parco protagonismo brasileiro - e do caos que nos impusemos a seguir.

13 de junho de 2017

domingo, 22 de janeiro de 2017

Teorias conspiratórias

A morte do ministro Teori Zavascki em momento tão oportuno aos golpistas (ainda que o ministro não fosse nenhum grande homem dentro do STF), num país de reiterados acidentes oportunos aos detentores do poder, não deixou de levantar uma série de teorias da conspiração. Nada mais natural,. Algumas, porém, soam um tanto excessivas.
Me contou uma amiga que faz um curso de férias: sexta, já meio pro final da aula, tendo vencido o conteúdo antes do tempo, sobrando minutos para assuntos diversos, a professora resolveu tocar no tema quente do momento, a morte do relator da Lava-Jato. Perguntou se achavam se era mero acidente, ou havia sido planejado. Uma das alunas de pronto defendeu a tese de assassinato. Conhecedores de suas posições políticas, todos olharam para ela intrigados: será que teria, não pensado, que é demais, mas saído da bolha? E se até ela estava admitindo a tese de morte planejada, sinal que a coisa estava descarada e o golpe começa a perder seus apoiadores ingênuos. Ainda descrente, a professora reiterou a pergunta, se ela achava mesmo que havia sido assassinato, e ela, convicta: "É óbvio! Está claro que foi a mando do Lula!". 
Tão claro como a luz que a lua emite. Inteligência manda lembranças.

22 de janeiro de 2017

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

A PEC da desestabilização

Com o Estado tomado pelas finanças, há uma busca agressiva por parte dos donos do poder pelo esvaziamento da política na sociedade, de forma a garantir a platitude necessária à maximização de seus lucros. A Política, a exigência dos "de fora" em serem incluídos no pretenso bem-estar geral da nação, desestabiliza, ou melhor, torna evidente a falta de qualquer estabilidade na sociedade contemporânea, é capaz de mudar rumos - os tais "contratos" que governos progressistas precisam respeitar quando assumem o executivo -, por isso deve ser combatida, por isso deve ser tratada como sinônimo de "palavrão" (quantas vezes Alckmin não desqualificou greves e movimentos reivindicatórios por serem "políticos", para não falar no seu pupilo, o lobbysta que não faz política mas disputa eleição e ainda não saiu do palanque). Uma das funções de Lula no executivo federal, enquanto grande conciliador nacional, foi dar um pouco de sossego a uma turba que se politizava via lutas e reivindicações sociais, e ameaçava questionar privilégios, reivindicar direitos. Houve quem anunciasse ali o fim da política. Exagero: Lula, inteligente e experiente, sabe que política é imanente à sociedade humana, o que o ex-presidente fez foi manter a política em intensidade muito baixa - talvez seu grande erro: conseguiu considerável apoio e tranqüilidade durante seu mandato, mas deu as condições ideias para a gestação da serpente que vem engolindo o PT, as esquerdas e a incipiente democracia brasileira.
O grupo que assumiu o poder com o golpe de Estado de 2016 aparenta mais esperto que o PT, mas tenho cá sérias dúvidas: parecem crentes demais para conseguir perceber o que se passa ao seu redor. A PEC 241/55 pode ser vista como a tentativa de institucionalizar o fim da política sem precisar recorrer a uma ditadura de linhas totalitárias (o golpe de 64, convém lembrar, manteve alguma política acontecendo). O golpe, contudo, pode sair pela culatra: soa absurda a idéia de uma sociedade que prescinda da política - e qual não é o principal instrumento de disputa política no Estado moderno que não o orçamento, desde a cobrança de impostos até a alocação dos recursos? Tentar sufocar a política é dar fermento para que ela ressurja com muito mais força e vigor - o que pode gerar reações igualmente vigorosas e violentas do lado oposto, da anti-política (de inspiração nazi-fascista). 
Ainda antes de possível revolta popular nas ruas, há sinais de que a PEC surge capenga, e quem o diz é um dos porta-vozes oficiais do golpe. O Datafolha não possui credibilidade, mas é reconhecido por ser falho e adulterar dados para favorecer suas posições - vale lembrar a notícia, a partir de dados forjados, deturpados e mal apresentados, que diziam que 50% da população queria a permanência de Temer, pouco antes do desfecho do golpe contra Dilma [http://bit.ly/2hPtcHp]. Pois é esse instituto quem anuncia que 60% da população é contra a PEC 241/55 [http://bit.ly/2hy0749], isso mesmo com toda propaganda feita pelo jornalismo da chamada Grande Imprensa, de que a tal emenda evitaria a quebra do país e permitiria a retomada do investimento e do crescimento. A lógica é simples: com dinheiro garantido para os juros da dívida, os "investidores" (termo genérico para especulador) voltariam a aplicar no país, por dar estabilidade ao seu investimento.
O dado do Datafolha deixa claro que, apesar da emenda constitucional, não deve haver estabilidade nos próximos anos, a não ser que se recorra a uma ditadura aberta e se implemente a tão sonhada paz de cemitério (com trabalhadores zumbis) que o mercado elogia. Se se mantiver o mínimo do lustro de democracia formal, a oposição à PEC deve ser bandeira forte em 2018, no mais tardar em 2022, quando seus efeitos serão sentidos (ainda que economia não seja ciência exata, há certos direcionamentos cuja direção é evidente e permite antever muito do que espera). Alckmin, nome forte da extrema-direita tupiniquim, já deu entrevista criticando a proposta [http://bit.ly/2gMX9Kj] - a esquerda, desnecessário falar. A tendência, portanto, é de permanente crise entre os poderes - com agudização da crise de representatividade dos políticos eleitos para o legislativo -, ou uma nova ementa à constituição que desfaça a PEC dos golpistas. De qualquer modo, contrariamente ao que dizem os analistas da Grande Imprensa, a PEC 241/55 deve afastar qualquer estabilidade jurídica e econômica, condição para atrair investimentos ou mesmo especuladores. Por mais um caminho, o golpe deve deixar como maior legado a instabilidade - e há aqueles que saberão ganhar muito com isso.

14 de dezembro de 2016


domingo, 9 de outubro de 2016

Eleições municipais: uma visão menos catastrófica ao PT e às esquerdas.

Apesar de ainda estar em disputa a prefeitura de 55 cidades, é possível já fazer um esboço do que foram as eleições municipais de 2016.
Ao menos desde a ascensão do PT ao poder federal, analistas (sic) políticos da Grande Imprensa tentam dar às eleições municipais o caráter de prévia da presidencial dali dois anos - como se fossem a equivalente tupiniquim das eleições legislativas de meio de mandato nos EUA. Pela primeira vez acertaram: impossível não analisar os números destas eleições sem vincular ao que se passa na política nacional, por mais que fatores municipais não sejam irrelevantes.
A principal dificuldade para analisar os resultados de 2016 e o que eles significam para o futuro está em Brasília: vivemos sob um regime democrático ou não (por mais capenga que seja nossa democracia institucional)? Que não estamos mais sob um Estado de direito, isso nosso judiciário tem reiterado diariamente. Já sobre a democracia e eleições, há quem acredite que o "tropeço democrático" do impeachment da presidenta Dilma será restabelecido em 2018. Gostaria que assim fosse, mas não vejo motivos pra acreditar. Saber o que será é importante pra poder entender se vemos os números que temos até agora como radiografia de momento, vulneráveis aos ventos das ruas (por mais que sejam brisas), ou se se trata de uma tendência quase que imposta de cima para baixo, em que a população tem o dever de legitimar escolhas feitas pelos donos do poder - banca, judiciário, mídia, oligarcas.
Para a análise a seguir, dividido os partidos em três grupos: 1) esquerda/centro-esquerda (PT, PDT, Psol, PCdoB), 2) direita/extrema-direita (PSDB, DEM, PPS, PSC, SD), 3) fisiológicos-centro-direita (a grande geleca conservadora, mas que está com o governante do turno). Por precariedade das estatísticas fornecidas pelo TSE, centro no número de prefeituras ganhas.
A esquerda foi a grande perdedora em 2016, puxada pela queda do PT. Se alguém se surpreendeu com esse fato, precisa urgentemente ativar sua capacidade crítica, pois não dava para esperar nada que não isso. A questão que se põe: perdeu tudo aquilo que é alardeado na Grande Imprensa? Admito que eu imaginava uma queda maior, diante de todo o ataque que PT tem sofrido há anos - com respingos para o resto da esquerda -, em especial no período anterior ao pleito, com direito a Moro fazer o papel de diretor de figurino, cargo ocupado em 1989 pelo xerife Tuma, no seqüestro de Abílio Diniz e o espetáculo anti-PT feito em cima.
Se o PT e a esquerda caem, não é a direita e a extrema-direita quem mais ganham: ainda que tenham ganhado praticamente o dobro de prefeituras das esquerdas, esse grupo não conseguiu recuperar o número de prefeituras que obteve em 2008. Percentualmente, seus 24% estão longe dos 40% de executivos municipais conquistados em 2000, com a máquina federal tucana a todo o vapor - a esquerda ainda teve um aumento de 50% em relação a 2000, e mesmo o PT tem 27% a mais de prefeitos eleitos que então.
Quem mais cresceu em 2016 foram os partidos fisiológicos de centro-direita, que preferem sempre ceder anéis a ter que arriscar os dedos. E ainda que por si só esse fato não seja positivo, ele aponta perspectivas a serem exploradas pelas forças progressistas: o fato de desiludidos com o PT não aderirem à direita pura e raivosa - que cada vez mais embasa seu discurso no anti-petismo e na destruição do inimigo vermelho - pode significar que há uma grande faixa do eleitorado capaz de reconhecer - assim que baixe a poeira goebbelsiana da Grande Imprensa - os ganhos dos governos de esquerda. Se estivermos sob um regime democrático minimamente sério, o que se viu em 2016 pode ser revertido num curto espaço de tempo. Claro, para que isso ocorra realmente não convém esperar tomada de consciência espontânea de pessoas que nunca foram educadas politicamente: é preciso que as esquerdas (forças progressistas em geral) passem a fazer aquilo que abandonaram desde que o PT assumiu o poder federal: política, política quotidiana, micro-política. E um dos focos da conscientização política precisa estar em suprir falhas de nossa educação, que faz com que a maioria da população seja incapaz de interpretação de texto e de refletir criticamente sobre aquilo a que assiste, sendo ludibriada com uma facilidade espantosa por construções publicitárias pueris - como Doria Jr - ou manipulações grosseiras - como a criminalização do PT. Penso que é nessa política de conscientização para a política - muito mais que para a esquerda ou para certas bandeiras - que podemos reverter a ditadura em curso, e, quem sabe, remediar esse golpe sofrido em 2016. As eleições de 2016 mostraram que o discurso fascista ganha adeptos, sem conquistar (ainda) a maioria - Doria Jr, com descarado discurso de extrema-direita, só ganhou em São Paulo graças à construção do personagem populista a la Janio Quadros, e por ter conseguido fechar a disputa no primeiro turno.
Outra análise que tem sido comum: que o PT se tornou um partido decadente nas cidades e regiões ilustradas, que sobrevive nos grotões do país - teria se tornado algo como o novo PFL/DEM e PMDB. Há uma diferença substantiva entre vencer sendo o partido de coronéis e vencer sendo um partido de massa. O voto no PT em regiões pobres tende a ser um voto consciente, de quem sentiu na pele as melhorias nas condições de vida - 100 anos em 10 -, diferentemente do apadrinhamento político e troca de favores que costumam nortear oligarcas políticos em terras de ninguém. Achar que população carente e de cidade pequena é ignorante e mais facilmente manipulável é uma mentira repetida diariamente pela rede Globo e afins, engolida como se fosse caviar pela classe média, média-alta ignara-mas-diplomada, e comprada por muitas pessoas de esquerda. 
Pontuando sobre os partidos, rapidamente. PT caiu vertiginosamente: das 648 prefeituras em 2012 já possuía pouco mais de 500 este ano, e vai para 254 em 2016 - 50% de queda. Perderam também prefeituras, mas em número bem mais modestos (5 a 12%), o PSB em ressaca pós-Campos, e os definhantes de longa data PTB, PPS e DEM. PMDB ficou estacionado. O PSDB, com 793 prefeituras, volta ao padrão de 2008, porém está ainda muito longe das 991 prefeituras conquistadas em 2000. Os dois partidos que mais cresceram foram o PCdoB, com quase 50% (de 54 para 80 prefeituras), e o PRB, ligado à Igreja Universal, com 30% (79 para 103) - por essa faixa do eleitorado, o outro partido evangélico, mas com discurso de extrema-direita, o PSC, cresceu 4%, com 86 prefeituras. Cresceram também os partidos nanicos: 33%, com 265 prefeituras.
Depois de mais de dez anos tendo como norte políticas públicas progressistas, ainda que limitadas, que favoreceram a maioria da população, se não se consumar a ditadura judiciária-midiática no país, é de se esperar que os prefeitos eleitos não acompanhem as diretrizes de Brasília, e façam governos moderados, sem atacar diretamente boa parte das políticas tidas como "de esquerda" de seus antecessores. Por outro lado, se os políticos não tiverem mais como preocupação as próximas eleições (suas ou de seus padrinhos políticos), e sim em agradar os dono do poder - por ora simbolizado no espantalho-útil do golpista Michel Temer -, tempos temerários virão. É o fim de um ciclo, sem dúvida, porém em que magnitude se dará tal fechamento, depende tanto das mobilizações das ruas, da política cara-a-cara por tanto tempo esquecida, e da consumação ou não da ditadura. De qualquer modo: lutar politicamente é preciso.

09 de outubro de 2016.


2000 2004 2008 2012 2016*
PT 200 411 557 638 254
PDT 289 307 352 307 332
PcdoB 2 10 41 54 80
PSOL X X 0 2 2
Total esquerdas 491 728 950 1001 668
PMDB 1260 1059 1202 1021 1028
PSD X X X 498 539
PP 619 551 551 476 493
PSB 135 175 310 440 413
PR X X 385 275 295
PTB 399 421 413 298 260
PRB X X 54 79 103
PV 13 57 75 100 101
REDE X X X X 5
PL 235 382 X X X
Outros 213 189 143 199 265
Total fisiológicos 2874 2834 3133 3386 3502
PSDB 991 870 791 695 793
DEM/PFL 1027 789 496 278 265
PPS 168 308 129 125 118
PSC 34 26 57 82 86
SD X X X X 62
PRONA 0 7 X X X
Total direitas 2220 1993 1473 1180 1324
*1o turno




quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Pela aplicação da Lei de Talião no Brasil!

Não que o Brasil tenha sido algum dia um Estado Democrático e de Direito pleno - no máximo valeu para a parte rica e branca da população, hoje nem isso -, entretanto até 2015 mantinha-se as aparências, o que dava a esperança (pelo visto vã e ingênua) de que poderíamos caminhar para o que se chama de uma sociedade "civilizada", isto é, habitada por cidadãos e cidadãs com direitos civis e políticos garantidos, independente da sua condição. Tudo o que parecia sólido se desmancha no ar, e as ilusões perdidas sugerem que 2016 seja o ano da besta: golpe de Estado, encaminhamento para uma ditadura, discurso de ódio e incitação ao ódio em tempo integral nas concessões públicas de televisão (antigamente se restringia a certos programas) e na imprensa impressa (internet, sem empecilhos materiais, sempre foi espaço livre para o esgoto intelectual e político), políticos de extrema-direita com possibilidade de vitória em cidades importantes, e o show de horrores de judiciário: prisões arbitrárias, desrespeito à Constituição, crime lesa-pátria, torturas em Curitiba: vale qualquer coisa, desde que feita pelos amigos do rei contra o bode-expiatório eleito pelos donos do poder. Primeiro foi o colegiado do Tribunal Regional da Quarta Região legitimar o estado de exceção, ao dizer que tempos excepcionais exigem medidas excepcionais (de homens excepcionais, o senhor Adolf Moro?), ou seja, inventar leis retroativas conforme o arbítrio do juiz e seus pares, para que nelas se encaixem seus inimigos políticos, doravante podendo ser tratados por criminosos de crimes que inexistiam até o dia anterior. Agora é a vez do Tribunal de Justiça de São Paulo dizer que execuções extra-judiciais são legais - na política, o governador paulista Geraldo Alckmin é um dos grandes entusiastas dos assassinatos extra-judiciais praticados pela sua milícia política-militar -, ao anular o juri que condenou militares envolvidos na chacina de 111 (quem me conhece melhor sabe minha ojeriza a esse número) pessoas no Carandiru, em 1992 - e que respondem em liberdade, porque perigoso para a sociedade é petista, não assassino - os quais teriam cometido o assassinato em massa em "legítima defesa". "Tempos excepcionais exigem que se reescreva não apenas a história como os fatos", esqueceram de avisar o desembargador Ivan Sartori e seus pares. Nas redes sociais, "cidadãos de bem" e cristãos comemoram toda decisão que visa aniquilar pessoas que não concordam com suas posições ou não fazem parte do seu círculo próximo. Nada mais cristão, nada mais longe de Cristo - e depois torcem o nariz para Nietzsche quando ele disse que o último cristão morreu na cruz. Dostoiévski ironizava em O Grande Inquisidor, que se Cristo voltasse, morreria na fogueira. Hoje morreria apedrejado - que fogueira é coisa avançada para estes tempos. E não adiantaria Cristo dizer que atirasse a primeira pedra aquele que não tivesse pecado: nestes tempos, a primeira pedra há de ser atirada por um militar infiltrado - uma vez que pecado é algo individual, instituição ou ideal não pecam -, e as pedras seguintes estariam liberadas - não sei se era Cristo ou era do tempo, mas faltou malícia ao proto-hippie da era romana. E diante do Estado Democrático de Barbárie (com todo respeito aos bárbaros) que se instituiu nestes Tristes Trópicos, se torna cada vez mais necessário um movimento em defesa de avanços jurídicos mínimos: urge a implementação da Lei de Talião no Brasil, para garantir um mínimo de justiça à sociedade. Por exemplo: roubo de tênis ser punido com tênis, assassinato ser punido com morte, e não o inverso: roubo de tênis ser punido com morte e assassinato ser punido com tênis, a depender se o crime foi praticado por um preto pobre periférico ou um branco endinheirado. Reconheço, a Lei de Talião não me soa muito atrativa, mas direito romano é algo pra petralha e as regras que muito povos primevos seguiam nestas terras são desvalorizadas pelo simples fato de serem produto nacional - além de atéias -, e é preciso, diante desse estado de natureza hobbesiano que o judiciário tem implementado - a regra de todos contra todos -, algum código penal que forneçam um mínimo de eqüidade nas decisões de nossos divinos magistrados.

28 de setembro de 2016



quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Asco

Asco. Foi essa a sensação que me tomou ao ler a notícia da prisão de Guido Mantega, enquanto estava no hospital, acompanhando a cirurgia de sua mulher, em luta contra o câncer, por ordem do justiceiro Sérgio Moro. Houve quem falasse em "monstruosidade", outros em "desumanidade", eu realmente não sei como qualificar. O que Sérgio Moro fez foi deixar claro que tortura e atentado contra a vida são hoje expediente válidos no marco legal da justiça brasileira - indo além das torturas e assassinatos extra-judiciais das polícias militares, defendidas e estimuladas por políticos como Alckmin e criminosos televisivos como Datena. 
Não tive como não lembrar de meu pai, vitimado há menos de um ano pelo câncer, contra o qual lutou por seis anos. Quando a doença está estável, já é desgastante - mas convivível, meu pai soube seguir com a vida, a despeito da doença, e isso facilitava a vida de todos. Em momento críticos, como quando se é necessário recorrer a intervenções cirúrgicas, o desgaste aos próximos é difícil de ser descrito: rondam fantasmas mil, de se a cirurgia será bem-sucedida, se o pós-cirúrgico será tolerável, se depois disso tudo será possível retomar certa normalidade - e em caso de negativa a qualquer dessas interrogações, surgem mil outras de como será a vida a partir de então; tenta-se afogar toda possibilidade de pensar no pior, evita-se pensar no dia seguinte, porque é preciso sobreviver ao hoje, e isso, que costuma ser básico, é de uma incerteza angustiante nessas situações. Ao enfermo, a presença das pessoas queridas junto a ele ajuda na recuperação - ou numa partida mais tranqüila.
Sérgio Moro talvez nunca tenha sofrido a perda de alguém muito próximo - ou pode ser que seja um psicopata ou perverso a quem a vida do Outro, não importa quem, nada vale -, daí não conseguir se condoer do drama de Mantega, mas um mínimo de conhecimento - e isso seria de imaginar de alguém que passou em concurso para juiz - permite saber que o que ele está fazendo é atentar contra a vida de Eliane. Lembro de relatos da ditadura de Franco, na Espanha, em que era comum a prisão de casal e filhos e fazer um revezamento de tortura entre a família, de modo a tornar a coisa um pouco mais cruel. Discretamente, porém com pleno conhecimento do que faz, Moro aplica (também) esses métodos da ditadura franquista no Brasil - já o tem feito com a perseguição a familiares de Lula, agora deixa claro que não há qualquer comprometimento com a vida das "pessoas do mal" em sua sana persecutória.
A Polícia Federal deu sua contribuição ao triste quadro que remete aos tempos de recrudescimento nazista, ao cumprir a ordem judicial - dizer que foi "infeliz coincidência" é uma hipocrisia cretina: pessoas não vão ao hospital para se divertir, e os policiais sabem que o Hospital Albert Einstein é um hospital, como diz o nome, e não um cassino ilegal. Um dos procuradores da república de Curitiba defendeu a ação, dizendo que “não há como não cumprir uma ordem judicial”: a velha escusa nazista da ordem burocrática para realizar qual atrocidade for sem se comprometer: só cumpriam ordens. Vale lembrar que não são poucos os casos de militares (MILITARES) israelenses que se recusam a cumprir ordem de ataque contra palestinos - isso traz sanções, é certo, entretanto mostra que é possível descumprir qual ordem for (não estando num estado de terror), basta um mínimo de consciência e de empatia humana com o Outro. Ou, para ficar nos termos que os nazi-golpistas tanto gostam: basta ter um mínimo de ética e da moral cristã.
Ao fim, o efeito mais provável de mais essa arbitrariedade de Sérgio Moro é aumentar a espiral de ódio que envenena o país desde 2014 de maneira intensiva (e eu lembro do desenho de uma criança com discurso de ódio à Dilma, Lula e ao PT, aceito pela escola e louvado pela mãe). O desejo de que realmente ocorra algo próximo de uma guerra civil, anunciada por Requião na farsa do impeachment, parece nortear as ações dos golpistas: um estado de sítio serviria para legitimar o estado de exceção em que vivemos, as arbitrariedades em nome não mais do combate à corrupção, e sim da ordem e da segurança pública. Com seguranças, bons salários, status de heróis nacional, e nenhum poder a contrapô-los, justiceiro Moro e seus capangas do MPF e PF (a serviço dos donos do dinheiro) se divertem com a vida de milhões de brasileiros comuns.
Infelizmente, diante de tudo o que tem acontecido nos últimos tempos no país (a favelização geral do Brasil, ou seja, uma terra sem lei em que vale o desejo do mais forte, o arbítrio da autoridade sádico-estatal, e a vida humana nada vale [http://bit.ly/cG160313]) também eu me vejo sendo tragado pela espiral do ódio. Socorro!
Em tempo: In Nomine Dei. Ou alguém bota um cabresto em Moro, Dallagnol e cia, ou logo o Brasil viverá as cenas de Münster recriadas por Saramago.

22 de setembro de 2016

ps: leio que Moro revogou a prisão. Hipócrita. Não o fez por qualquer respeito a Mantega e sua companheira, e sim porque isso pegou muito mal à sua imagem.


terça-feira, 6 de setembro de 2016

O jogo só termina quando acaba? [O Brasil para amadores]

Um dos grandes aprendizados que Eduardo Cunha nos ofereceu e não soubemos aproveitar foi que não se canta vitória antes de terminada a partida. Quantos não foram os que comemoraram derrotas das propostas reacionárias de Cunha na Câmara para no dia seguinte serem surpreendidos com uma nova votação da mesma proposta na qual o mafioso saiu vencedor? E não aprendemos com essas rasteiras: voltamos a comemorar quando foi apeado da presidência da casa, ignoramos que já era tarde (e o tal "antes tarde do que nunca" é só um consolo para os derrotados), e fingimos ser secundário que Rodrigo Maia é seu aliado, que Michel Temer é seu capacho, que Gilmar Mendes é seu sócio. Não por acaso, Moro sofre para descobrir o endereço de Cláudia Cruz, para onde enviaria a intimação, e prefere, ao invés, devolver o passaporte (como se isso fosse fazer alguma diferença para quem tem dupla cidadania italiana). Cunha pode até perder mandato, mas só perde o poder se cair na alçada de um juiz imparcial - coisa longe de acontecer, por tudo o que sabe. Vamos comemorar à Perfeição sua cassação, caso ocorra, segunda, dia 12?
Daí o duplo caminho ainda a ser aprendido por boa parte da população brasileira: 1) o jogo só termina quando acaba; 2) o Brasil é como o campeonato brasileiro de futebol, com a presença ilustre e permanente do elitista Fluminense: ou seja, o jogo só acaba depois que juízes tricolores julgarem o tricolor das Laranjeiras, e a segunda rodada do campeonato seguinte tiver começado e a modesta Portuguesa notar que realmente foi rebaixada, apesar de não ser isso que apresentou em campo no campeonato passado.

06 de setembro de 2016.

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

"Fora Temer": O Cavalo de Tróia que os golpistas precisam [O Brasil para amadores]

Com 10% de aprovação, segundo o Ibope, apesar de toda a blindagem da grande mídia, o presidente golpista Michel Temer precisa de um milagre para não ser o próximo ex-presidente da República Bananeira do Brasil já em 2017. Ele é só o espantalho útil pro momento, e os donos do poder não terão nenhum remorço em ejetá-lo do Planalto dia 2 de janeiro de 2017, e promover uma eleição indireta para presidente. A grande preocupação do neoditadores que se escondem atrás de Temer é segurá-lo até 2017.
A equação é simples: Temer, impopular, vai apelar mais e mais para a repressão para se segurar no poder, enquanto as barbaridades são encobertas pela grande imprensa. Quando dezembro chegar, será hora de mostrar toda a revolta das ruas, pedindo "Fora Temer", em janeiro, os nobres deputados e nobres senadores ouvirão as vozes das ruas e farão o impeachment do golpista. A narrativa oficiosa será de que o parlamento (atenção para o uso intensivo desse termo, ao invés de legislativo) democraticamente eleito novamente ouviu a população e fez a vontade do povo. Botarão no Palácio do Planalto um nome com algum respaldo popular, de modo que os protestos arrefecerão, podendo diminuir o nível de repressão e partindo para ataques mais pontuais, a supostos "terroristas", conforme a nova Lei de Segurança Nacional.
Contratempos nesse caminho: quatro são os principais empecilhos dos golpistas para a consolidação do golpe: 1) a pressão das ruas ser tão grande, apesar da escalada da violência do Estado, que Temer caia antes de 2017; 2) a mudança do slogan-chave das manifestações de "Fora Temer" para "Diretas Já", desarticulando o discurso golpista de 2017, e podendo fazer o novo presidente perder respaldo popular que o "Fora Temer" garante quase que automaticamente; 3) os custos políticos da repressão policial serem altos demais e os governadores começarem a dar para trás (Alckmin, por exemplo, já tem um saldo negativo de 10% entre os que acham seu governo bom e os que acham ruim), e Temer apelar para o exército, que pode rachar (há ao menos duas alas bem delimitadas dentro do exército) ao ir para as ruas novamente - ainda que não admitam, 1964-85 tem sido bastante custoso à imagem das forças armadas -; 4) a pressão internacional crescer, partindo também de países importantes da Europa.
Tão importante quanto Temer sair, é a eleição do próximo presidente da república por sufrágio popular direto (idealmente, do legislativo também, mas sejamos realistas, e por ora conseguir só para o executivo já é um grande avanço).
DIRETAS JÁ!
CONSTITUINTE EXCLUSIVA PARA REFORMA POLÍTICA!

 05 de setembro de 2016


quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Eleições 2018: falta combinar com os russos

Com o golpe de Estado praticamente consagrado, parece não haver outra alternativa às forças progressistas e esquerda em geral que discutir estratégias de retorno para 2018 - assunto que já vinha sendo abordado desde o início do ato final do golpe, o impeachment. Quem se propõe a discutir 2018 sempre esquece uma questão básica: combinou com os russos? Que eleição? Ou ao menos, em que termos? Aceitar a derrota e discutir 2018 é ignorar o que está se passando: vivemos uma ditadura sorrateira: sai a ostensividade da farda, entra a sisudez formalista da toga e dos camicie nere. O golpe é só a parte visível de uma ditadura que se articula nas entranhas do poder: temos um judiciário sem qualquer controle externo e com liberdade para legislar, aliada a uma imprensa sem controle, sem ética e sem pudores, escolada nos ideais nazistas de comunicação, ambos patrocinados pelo capital internacional - financeiro e das seis irmãs -, e um legislativo corrupto que se vende por preço de banana. Nesse contexto, o chefe de executivo vira só um detalhe, pronto para ser descartado, caso saia da linha - basicamente caso se contraponha ao reforço da estrutura perversa de desigualdade social e subordinação total aos interesses estadunidenses (me sinto tão anos 1960 falando isso).
Com o desenrolar dos fatos, volto meu pensamento ao dia seguinte à reeleição de Dilma, e me pergunto se ali já não estava dado o golpe e suas concessões eram tentativas desesperadas e infrutíferas de manter a casca democrática - que permitiria ao menos um alento de reversão do quadro. Sem sucesso na sua empreitada, veio o golpe de Estado encabeçado pelo informante dos EUA, mas que pode durar pouco - ao que tudo indica, dura somente até permitir eleições indiretas, ano que vem. 
Grande imprensa, judiciário e capital internacional formam o triunvirato que determina o que pode e o que não pode no país - de políticas macro-econômicas a questões menores de cidadãos quaisquer. Temer é tosco demais para o cargo, e tenho dúvidas se seu saco de bondades ao triunvirato é suficiente para mantê-lo no cargo. Contudo, também tenho dúvidas se o judiciário quer assumir a cabeça da ditadura, ou prefere seguir comandando da surdina - há vantagens e custos em cada uma das escolhas (o §4 do Art. 5º da lei que regulamenta a eleição indireta, de 2013, anula as exigências de desincompatibilização de cargos e funções públicas). Vale lembrar que em 1964, Castello Branco não tomou de assalto o planalto: Jango quem teria abandonado o cargo, e o presidente do congresso chamou eleição indireta, na qual foi eleito o militar - tudo dentro da mais estrita legalidade constitucional e democrática.
Pode soar sem sentido falar em ditadura sem ditador, mas vale lembrar que o Brasil conviveu com uma "ditabranda" em que havia eleições e alternância de poder - jabuticabas é aqui mesmo, por que não uma ditadura sem um ditador, mas um consórcio sem rosto, pouco definido ao grande público?
Independente de quem seja o chefe de Estado ano que vem, há um esboço do que nos espera para os próximos sabe-se lá quantos anos (os otimistas dirão 2, os receosos, 21, os pessimistas preferem não chutar). 
A lei será respeitada, como sempre. Se acaso a lei não servir ao donos do butim, muda-se a lei - todo golpe de Estado, depois de sacramentado, se torna legal. Se a lei não for respeitada, também não é problema, a grande imprensa deixa passar - desde que seja um ilegalidade de "boa-fé". Há um exemplo dessa democracia vindo da Argentina: Macri atropelou as leis e o congresso para desmontar programas kirchneristas que não dependiam do seu voluntarismo - programas que tiveram que passar pelo crivo do legislativo antes de serem implementados. 
A exemplo do que fez em São Paulo, em que polícia militar foi transformada em milícia política do PSDB, é de se esperar que as forças de segurança sigam o padrão político de repressão ao crime - por exemplo: PCC pode, torcida organizada que protesta contra o golpe, não. MST é terrorista e estudante logo vai virar. Mesmo diante da imprensa internacional a repressão política tem tido vez - um amadorismo surpreendente. 
Não acredito no fim puro e simples do programas sociais - a relevância deles é tanta que não dá pra acabar -, mas haverá um componente extra de humilhação aos que precisarem depender deles - o fiscal de pretitude é um primeiro passo.
A possibilidade de um Estado de bem-estar social, isso virará lenda: a depender do grupo golpista no poder não sobrará pedra sobre pedra: papel do Estado é reprimir movimentos sociais, oposição política e ladrões de galinha. E é aqui que está o ponto fraco do governo atual: Temer sabe fazer política de sombras dos corredores de Brasília - ameaçar, chantagear, corromper -, não sabe fazer política de negociar e conciliar: nisso pode mexer em setores ainda fortes o suficiente para pôr o governo em xeque - professores universitários e diplomatas, por exemplo, ainda que estejam quietos, como se vivessem na Terra do Nunca -, e pôr tudo a perder. Não me parece digno do cargo que ocupada e pode ser ejetado tão logo seja dispensável.
Independente do que se passe na presidência, é de se esperar algumas mudanças legais. Provavelmente virá a tão apregoada reforma política, como modo de dar aparência de legalidade democrática à ditadura em curso e afastar por um tempo mais qualquer força progressista das esferas de decisão. Não consigo nem imaginar muito do que viria numa possível reforma do tipo - Coronel Mendes deve ter o projeto já pronto. Haverá substancial reforço às oligarquias partidárias e regionais, os setores arcaicos-tecnicamente equipados da política tupiniquim. As chances de aprovação do parlamentarismo também são grandes - por mais que o sistema já tenha sido duas vezes rechaçado pela população, mas a população é de pouca importância aos ditadores. Ainda que não haja clima pra tanto, provavelmente novas regras limitarão o número de partidos, e calarão aqueles que se põem à esquerda.
Daí perguntas fulcrais e por ora sem respostas aos que tentam vislumbrar 2018: haverá eleição? Se houver, quem poderá disputar? Se se seguir pelo caminho brando, PSOL poderá participar sem direito a participar de debates - fazendo antes papel de legitimador da farsa. O PT pode sequer existir - se existir, terá novamente a forte oposição goebbelsiana da grande imprensa. O principal nome da disputa, Lula, pode ser considerado desde já um ficha-suja, por mais que ainda não tenha sido julgado - pior, por mais que não tenham conseguido achar crime para imputá-lo. A perseguição aos seus familiares mostra o estado da obra do judiciário brasileiro; Protógenes Queiroz conhecia de dentro e tratou de pedir asilo político na Suíça, seria de bom tom os parentes do ex-presidente fazerem o mesmo, uma vez que se atacado por esse lado, Lula pode sentir. Quanto a Lula, infelizmente se tornou personagem fundamental para tentar evitar um retrocesso gigantesco do país, dado seu peso político interno e externo.
Ao que tudo indica, Temer conseguirá algo que parecia impossível: fazer com que a ditadura militar seja vista até com certa nostalgia: ao menos os militares tinham um projeto de nação e um concepção de desenvolvimento - excludente, parcial e subordinado aos EUA, mas desenvolvimento -; o grupo que tomou o poder tem como único projeto a pilhagem e o butim para fins pessoais, sua subordinação aos EUA não inclui nenhuma perspectiva de desenvolvimento e a exclusão social que suas propostas claramente acarretarão chocaria muitos dos escravocratas do segundo reinado (não, não estou defendendo a ditadura civil-militar, apenas alertando aos que tanto a criticam e acham que a situação está razoável o suficiente para não se mobilizar e ocupar as ruas).

10 de agosto de 2016.

quarta-feira, 29 de junho de 2016

Nós a um passo de nossa condenação [Diálogos com o teatro]

Qual a relação entre uma ditadura (dita) comunista e a nossa atual democracia (sic)? Para um respeitável cidadão de bem, sempre bem informado pelo William Bonner e o William Waack, que veste a camisa da seleção para bater panela contra o PT (tentando forjar desonestamente uma identidade com corrupção), nenhuma, é óbvio. Para este escriba, como ficou claro ao pôr a questão, a primeira relação entre ambas é o discurso farsesco que erigem sobre si. A Companhia Teatro da Dispersão, com a peça O espectador condenado à morte, de Matéi Visniec, dirigida por Thiago Ledier, me trouxe alguns elementos a mais nessa relação.
Não, o grupo não se propôs a fazer nenhuma releitura da obra do romeno à luz das sombras que tornam estes Trópicos sempre Tristes: simplesmente encenaram uma obra escrita em 1985, com uma ditadura de vinte anos como pano de fundo, e elementos do teatro do absurdo para fazer saltar o realidade tornada absurda - ou o absurdo tornado realidade. A enorme semelhança entre a peça e o cenário atual do Brasil não é obra dos atores, mas dos personagens da nossa história recente, Sérgio Moro, Gilmar Mendes, José Serra, Eduardo Cunha, Michel Temer, Aécio Neves, Fernando Henrique Cardoso, entre outros, cujos nomes já foram esquecidos, passados seus "fifteen minutes of shame", como certa feita cantou Marilyn Manson. No máximo, cenografia e figurino ajudam, muito sutilmente, a fazer a ligação.
O mote da peça é simples e contraditório: um crime será cometido e é preciso julgar o condenado. Não sabemos qual o crime, e isso pouco importa: estamos diante de um tribunal que precisa fazer valer a lei, ou pelo menos precisa demonstrar seu poder. Elege-se aleatoriamente um suspeito, logo acusado, portanto culpado - a retilínea lógica da justiça para ditaduras e seu asseclas. Inicia-se o julgamento com meias intenções de manter os ritos formais: o juiz proíbe que o promotor chame o suspeito-acusado-culpado de criminoso antes do veridicto. Soa justo. Ao mesmo tempo, inicia a sessão sem a presença do advogado de defesa. Deveria soar absurdo, mas se observarmos nosso entorno e não nossos pressupostos teóricos, novamente soa justo, ou melhor, soa a Justiça brasileira. Garante-se, de qualquer modo, um arremedo dos ritos formais para garantir a parecência de imparcialidade do julgamento e de presunção de inocência do réu-criminoso. Sabemos todos qual o objetivo (repare o substantivo no singular) do juiz, do promotor, e não muito depois, do defensor, apenas ficamos aguardando quando será dado o veridicto e a sentença - anunciados desde o início da peça.
Foto: Patrícia Mattos
São chamadas as testemunhas, para que os ritos sejam seguidos. São nove no total, mas já na segunda a fantasia de todos cai: promotor, escrivão, juiz, defensor, testemunhas - da justiça toda, marcada pelo rasgar literal do fardão do juiz -, todos vociferam contra o criminoso - cuja culpabilidade está gravada na testa, segundo o defensor -, desejando não apenas sua condenação, mas seu aniquilamento - muito afim à lógica totalitária que acalenta de stalinistas a fascistas, incluída nossa Grande Imprensa e seu rebanho paneleiro. O promotor reclama: todos acreditam que o espectador é o culpado, por que só o próprio que não?, enquanto o defensor roga ao criminoso, num cinismo digno de FHC, que confesse tudo em público e que com isso alivie o peso de sua consciência e satisfaça a justiça e a sociedade: todos sabem que é um criminoso, por que não confessar? Trinta anos antes da peça ser escrita, essa confissão seria chamada de "auto-crítica", trinta depois, de "delação premiada", o mecanismo por trás, contudo, segue o mesmo - e nada tem de democrático ou justo.
Breve intervalo entre o primeiro e o segundo ato. Nele, o escrivão convida o público a bisbilhotar toda a vida pregressa do espectador condenado à morte, coletada minuciosamente pela justiça (não havia conversas privadas, ao menos), e conclama que os demais espectadores saiam do anonimato, que legitimem o criminoso enquanto tal - e a encenação burlesca enquanto justiça. No segundo ato, já sem qualquer intenção de seriedade, tentativas das diversas personagens em justificar a ordem totalitária de adesão ao poder - que chega ao paroxismo de pôr em risco o próprio poder, se não devidamente resguardado por forças repressivas contra fiéis mais realistas que o rei.
Feliz na escolha do texto para o momento que vivemos e vivenciamos, com atuações e montagens convincentes - o que eu não sei dizer exatamente o que isso significa, numa peça que tem a burla como centro -, o ponto fraco ficou, na minha opinião, na construção do personagem do juiz.
Pelo programa ficamos sabemos que a peça foi escrita nos anos oitenta, no contexto da ditadura romena; a ambientação - sem o cuidado (e a necessidade) de parecer realista - remete aos anos sessenta e setenta do século XX, quando vivíamos, nós também, nossa (até agora) mais funesta ditadura; e o texto parece ter sido escrito no Brasil de 2015, 2016. Entretanto, o juiz acaba por fazer com que o petardo contra a situação político-institucional atual perca um pouco da sua força: franzino e desde o início decadente, em nenhum momento ele tem a arrogância que os juízes brasileiros se dão (profissionais do direito em geral, com excrescências excelências, meritíssimos de merda e doutores em porra em nenhuma, com o perdão do jargão chulo), na expectativa de que a distância de títulos seja sinônimo de respeitabilidade de um judiciário que se sabe caquético, e cuja atitude é louvada pela Grande Imprensa. Se se vislumbra a figura de um Coronel Mendes no juiz, se dá antes pelo ar de bufo (mais que bufão) que o ministro do STF naturalmente possui; falta, pelo menos no início, quando a peça ainda parece séria, a arrogância vestida de camicie nere (camisa negra) de um justiceiro Moro.
Ainda assim O espectador condenado à morte deixa no colo do público o aviso de uma bomba prestes a explodir: evidencia o conforto da proteção que o anonimato de massa nos oferece, e o inconformismo light que estamos dispostos a ter, via curtidas em redes sociais, para não perder esse conforto; nos coloca em xeque quanto à nossa passividade diante de arbitrariedades da justiça, que afronta direitos individuais básicos; deixa explícito que podemos ser o próximo a merecer o aniquilamento, considerados criminosos por capricho de uma corporação de mídia totalitária ou de juiz de província qualquer e por necessidade de sangue do poder e das massas manipuladas - criminosos por termos sentado num lugar infeliz, em que sequer a visão era privilegiada. Em um Estado que é democrático e de direito apenas enquanto farsa, estamos todos a um passo de sermos condenados à morte, morte simbólica ou via auto de resistência. Ou, se o suspeito-acusado-condenado não puder ser executado por qualquer motivo - como sua reputação internacional, por exemplo -, o juiz da peça deixa claro o que se pode fazer:
"Mas se não podemos matá-lo, podemos julgá-lo até a sua morte".
O espectador condenado à morte é espetáculo obrigatório para 2016 - antes que sejamos condenados à morte.

29 de junho de 2016.

PS1: O espectador condenado à morte estará em cartaz em julho e agosto, no Viga Espaço Cênico, em São Paulo, quartas e quintas, às 21h.
PS2: Involuntariamente, muito feliz também o local de estréia: a Funarte ocupada, com um #ForaTemer sobre o "ordem e progresso" golpista no folder.
PS3: Advogo a tese de que Temer é só o bobo da corte que encabeçou um golpe de Estado dado por ditadores pós-modernos, sem um rosto específico, ou com vários rostos, a mudar conforme o ano e a ocasião, mas com uma função bem específica na engrenagem estatal, livre de qualquer controle público e, mais ainda, distante do povo. Uma ditadura dessa casta que desde sempre é uma das principais donas do poder nestas terras, uma ditadura judiciária - por ora mancomunada com o PSDB, enquanto este atender a seus interesses principais.