Qual
a relação entre uma ditadura (dita) comunista e a nossa atual
democracia (sic)? Para um respeitável cidadão de bem, sempre
bem informado pelo William Bonner e o William Waack, que veste a
camisa da seleção para bater panela contra o PT (tentando forjar
desonestamente uma identidade com corrupção), nenhuma, é óbvio.
Para este escriba, como ficou claro ao pôr a questão, a primeira
relação entre ambas é o discurso farsesco que erigem sobre
si. A Companhia Teatro da Dispersão, com a peça O espectador
condenado à morte, de Matéi
Visniec, dirigida por Thiago Ledier, me trouxe alguns elementos a mais nessa relação.
Não,
o grupo não se propôs a fazer nenhuma
releitura da obra do romeno à luz das sombras que tornam estes
Trópicos sempre Tristes: simplesmente encenaram uma obra escrita em
1985, com uma ditadura de vinte anos como pano de fundo, e elementos
do teatro do absurdo para fazer saltar o realidade tornada absurda -
ou o absurdo tornado realidade. A enorme semelhança entre a peça e
o cenário atual do Brasil não é obra dos atores, mas dos
personagens da nossa história recente, Sérgio Moro, Gilmar Mendes,
José Serra, Eduardo Cunha, Michel Temer, Aécio Neves, Fernando
Henrique Cardoso, entre outros, cujos nomes já foram esquecidos,
passados seus "fifteen minutes of shame", como certa feita
cantou Marilyn Manson. No máximo, cenografia e figurino ajudam,
muito sutilmente, a fazer a ligação.
O
mote da peça é simples e contraditório: um crime será cometido e
é preciso julgar o condenado. Não sabemos qual o crime, e isso
pouco importa: estamos diante de um tribunal que precisa fazer valer
a lei, ou pelo menos precisa demonstrar seu poder. Elege-se
aleatoriamente um suspeito, logo acusado, portanto culpado - a
retilínea lógica da justiça para ditaduras e seu asseclas.
Inicia-se o julgamento com meias intenções de manter os ritos
formais: o juiz proíbe que o promotor chame o
suspeito-acusado-culpado de criminoso antes do veridicto. Soa justo.
Ao mesmo tempo, inicia a sessão sem a presença do advogado de
defesa. Deveria soar absurdo, mas se observarmos nosso entorno e não
nossos pressupostos teóricos, novamente soa justo, ou melhor, soa a
Justiça brasileira. Garante-se, de qualquer modo, um arremedo dos
ritos formais para garantir a parecência de imparcialidade do
julgamento e de presunção de inocência do réu-criminoso. Sabemos
todos qual o objetivo (repare o substantivo no singular) do juiz, do
promotor, e não muito depois, do defensor, apenas ficamos aguardando
quando será dado o veridicto e a sentença - anunciados desde o
início da peça.
Foto: Patrícia Mattos |
Breve intervalo entre o primeiro e o segundo ato. Nele, o escrivão convida o público a bisbilhotar toda a vida
pregressa do espectador condenado à morte, coletada minuciosamente pela justiça (não
havia conversas privadas, ao menos), e conclama que os demais
espectadores saiam do anonimato, que legitimem o criminoso enquanto
tal - e a encenação burlesca enquanto justiça. No segundo ato, já
sem qualquer intenção de seriedade, tentativas das diversas
personagens em justificar a ordem totalitária de adesão ao poder -
que chega ao paroxismo de pôr em risco o próprio poder, se não
devidamente resguardado por forças repressivas contra fiéis mais realistas que o rei.
Feliz
na escolha do texto para o momento que vivemos e vivenciamos, com
atuações e montagens convincentes - o que eu não sei dizer
exatamente o que isso significa, numa peça que tem a burla como centro -, o ponto fraco ficou, na minha opinião, na construção do
personagem do juiz.
Pelo programa ficamos sabemos que a peça foi escrita nos anos oitenta, no contexto da ditadura romena; a ambientação - sem o cuidado (e a necessidade) de parecer realista - remete aos anos sessenta e setenta do século XX, quando vivíamos, nós também, nossa (até agora) mais funesta ditadura; e o texto parece ter sido escrito no Brasil de 2015, 2016. Entretanto, o juiz acaba por fazer com que o petardo contra a situação político-institucional atual perca um pouco da sua força: franzino e desde o início decadente, em nenhum momento ele tem a arrogância que os juízes brasileiros se dão (profissionais do direito em geral, com excrescências excelências, meritíssimos de merda e doutores em porra em nenhuma, com o perdão do jargão chulo), na expectativa de que a distância de títulos seja sinônimo de respeitabilidade de um judiciário que se sabe caquético, e cuja atitude é louvada pela Grande Imprensa. Se se vislumbra a figura de um Coronel Mendes no juiz, se dá antes pelo ar de bufo (mais que bufão) que o ministro do STF naturalmente possui; falta, pelo menos no início, quando a peça ainda parece séria, a arrogância vestida de camicie nere (camisa negra) de um justiceiro Moro.
Pelo programa ficamos sabemos que a peça foi escrita nos anos oitenta, no contexto da ditadura romena; a ambientação - sem o cuidado (e a necessidade) de parecer realista - remete aos anos sessenta e setenta do século XX, quando vivíamos, nós também, nossa (até agora) mais funesta ditadura; e o texto parece ter sido escrito no Brasil de 2015, 2016. Entretanto, o juiz acaba por fazer com que o petardo contra a situação político-institucional atual perca um pouco da sua força: franzino e desde o início decadente, em nenhum momento ele tem a arrogância que os juízes brasileiros se dão (profissionais do direito em geral, com excrescências excelências, meritíssimos de merda e doutores em porra em nenhuma, com o perdão do jargão chulo), na expectativa de que a distância de títulos seja sinônimo de respeitabilidade de um judiciário que se sabe caquético, e cuja atitude é louvada pela Grande Imprensa. Se se vislumbra a figura de um Coronel Mendes no juiz, se dá antes pelo ar de bufo (mais que bufão) que o ministro do STF naturalmente possui; falta, pelo menos no início, quando a peça ainda parece séria, a arrogância vestida de camicie nere (camisa negra) de um justiceiro Moro.
Ainda
assim O espectador condenado à morte deixa no colo do público o aviso de uma bomba prestes a explodir: evidencia o conforto da proteção que
o anonimato de massa nos oferece, e o inconformismo light que estamos
dispostos a ter, via curtidas em redes sociais, para não perder esse conforto; nos coloca em xeque
quanto à nossa passividade diante de arbitrariedades da justiça,
que afronta direitos individuais básicos; deixa explícito que
podemos ser o próximo a merecer o aniquilamento, considerados
criminosos por capricho de uma corporação de mídia totalitária ou de juiz de província qualquer e por
necessidade de sangue do poder e das massas manipuladas - criminosos por termos sentado num
lugar infeliz, em que sequer a visão era privilegiada. Em um Estado
que é democrático e de direito apenas enquanto farsa, estamos todos
a um passo de sermos condenados à morte, morte simbólica ou via auto de resistência. Ou, se o
suspeito-acusado-condenado não puder ser executado por qualquer
motivo - como sua reputação internacional, por exemplo -, o juiz da
peça deixa claro o que se pode fazer:
"Mas
se não podemos matá-lo, podemos julgá-lo até a sua morte".
O
espectador condenado à morte é
espetáculo obrigatório para 2016 - antes que sejamos condenados à
morte.
29 de junho de 2016.
PS1:
O espectador condenado à morte estará em cartaz em julho e agosto, no Viga Espaço Cênico, em São Paulo, quartas e quintas, às 21h.
PS2: Involuntariamente, muito feliz também o local de estréia: a Funarte ocupada, com um #ForaTemer sobre o "ordem e progresso" golpista no folder.
PS3:
Advogo a tese de que Temer é só o bobo da corte que encabeçou um
golpe de Estado dado por ditadores pós-modernos, sem um rosto
específico, ou com vários rostos, a mudar conforme o ano e a
ocasião, mas com uma função bem específica na engrenagem estatal,
livre de qualquer controle público e, mais ainda, distante do povo.
Uma ditadura dessa casta que desde sempre é uma das principais donas
do poder nestas terras, uma ditadura judiciária - por ora mancomunada
com o PSDB, enquanto este atender a seus interesses principais.PS2: Involuntariamente, muito feliz também o local de estréia: a Funarte ocupada, com um #ForaTemer sobre o "ordem e progresso" golpista no folder.
Sem comentários:
Enviar um comentário