segunda-feira, 21 de janeiro de 2002

Crônica de uma Viagem

Putz! Primeira vez que me acontece isso em viagem: tiveram que parar no meio da estrada, já quase chegando em Curitiba, e pôr um velhinho que estava na minha frente numa ambulância. Já vi goteira em cima de passageiros, ônibus quebrar, janela não fechar, banco não deitar, vidro quebrar na cara de passageiro, mas nunca nada de maior gravidade.
Logo no início da viagem ele estava meio mal. Caminhava com dificuldade, tossia um pouco, "estava adoentado" como dizia a velhinha que com ele estava, sua irmã – uma ranzinza, pé-no-saco, que mandava ele calar a boca e ficar quieto porque "estava incomodando", quando tossia – não estava muito animada a ajudá-lo em qualquer coisa. Uma hora ele quis ir no banheiro. Levantou e, dando bundada em todo mundo, quase caindo, foi até próximo à cabine do motorista. Voltou, foi outra vez, voltou. Um homem, pouco atrás de mim, toda vez que ele passava, xingava; estava vendo ainda dar um soco no coitado. O povo mandou a velhinha ir com ele. Ela queria que ele sentasse e sossegasse, mas acabou indo. Na volta, sentaram-no na janela. Algumas horas depois, quis ir de novo. Levantava, batia a cabeça no "teto", onde acima se põem as malas, a velha mandava ele sentar, ele sentava. Um minuto depois, o mesmo ritual. Outro minuto, e novamente o ritual. Ela levantou para deixá-lo ir. O povo chiou. Estávamos perto da parada, que ele esperasse, e que ela fosse com ele. Na parada, ele foi. Uma gordinha sentada na 22 (eu estava na 24) comprou um copo de leite quente que ele tomou – ah, me esquecia, ele viajava só de camisa manga curta. E o ar-condicionado do ônibus não costuma ser muito quente. Para servir de parâmetro: eu ia de moletom. Isso era uma hora da manhã, mais ou menos. Até Ponta Grossa, quatro horas depois, a viagem seguiu tranqüila: o velhinho tossia, mas como estávamos dormindo...
Dentro da cidade, curva vai, curva vem, a gente acaba acordando. E acordados notamos a respiração "afogada" (parecia que tinha líquido no pulmão) e a tosse que não cessava do velhinho.
Ao parar na rodoviária, todos notaram que o velhinho não ia bem. Duas velhinhas, sentadas mais à frente, muito prestativas, ofereceram bombinha anti-asma. A gordinha da 22, muito atenciosa, se ofereceu a bombar a bombinha no velhinho (parece refrão de música axé). Alguns passageiros, eu entre eles, não aconselhamos que se enfiasse remédio goela abaixo do velhinho, sem prescrição médica, ainda mais depois de saber que a irmã dele já o tinha feito engolir remédio para pressão e um outro que nem ela parecia saber para que servia. Porém, bombaram a bombinha no velhinho. Enquanto isso, o motorista conversava com outro motorista, do lado de fora do ônibus.
A viagem prosseguiu. O velhinho respirava agora sem nos agoniar muito. Mas pouco depois o motorista parou. Desceu do ônibus. Dali a pouco, voltou. Deu meia volta e parou em frente a um daqueles pronto socorro que agora tem em beira de estrada. Tiraram o velhinho do ônibus, não sem antes fazer com que ele batesse a cabeça outra vez. Botaram na ambulância, entubaram, botaram oxigênio. Enquanto isso, aquele festival de besteiras. Diagnósticos e mais diagnósticos, com seus respectivos remédios e simpatias, e casos de conhecidos de vizinhos de primos de terceiro grau que tinham enfartado no meio de uma viagem. Meia hora depois, quando o motorista, depois de revistar todas as malas, encontrou as três pertencentes ao casal de irmãos, a viagem prosseguiu. A ambulância foi para um lado, o ônibus para o outro.
Se alguém ia esperar os dois na rodoviária, coitado...

Pato Branco, 21 de janeiro de 2002

sexta-feira, 4 de janeiro de 2002

Mutilações em nome de Deus

Eu apenas li a manchete da notícia: "Advogado de tesoureiro de Taniguchi é baleado". Não sei porque me veio à mente que o próprio advogado poderia estar por trás disso (por favor, não estou levantando suspeita alguma), isso ocorre corriqueiramente no mundo.
Esse pensamento trouxe a memória uma notícia antiga, creio que o fato se passou há uns três anos. Um homem – comerciante, acho – atolado em dívidas e de olho em um polpudo seguro, amputou a própria mão, sem anestesia, dizendo que um assaltante que o fizera. Para seu azar, descobriram o golpe. Além de ter ficado sem a mão, ficou sem o dinheiro que diziam que ela valia.
Não foi com o 11 de setembro que começaram, já vinham de longa data, mas com ele se intensificaram – e muito – as críticas aos costumes medievas dos povos islâmicos, como a circuncisão de mulheres. Correntes na internet, matérias na tv, entrevistas com modelos mutiladas, reportagens e mais reportagens na "Veja Digest Seleções" nos mostravam que a barbárie ainda imperava em vários pontos do planeta. Como eu me indignava com isso! Mutilações com o consentimento da família, da sociedade em plena era do computador!
Mas eis que em 2001 uma luz veio até mim. Não, não era Jesus entrando em minha alma durante um culto televisivo do pastor R. R. Soares. Era uma matéria da faculdade chamada "Antropologia Cultura". Mesmo não lendo os textos e assistindo apenas a metade das aulas (a outra metade eu dormia), é impressionante o quanto aumentou meu (ainda muito estreito) campo de visão (antropologia cultural como disciplina obrigatória no ensino médio!).
Todavia, passado seis meses de aula com o Geraldo e a Keila, minha indignação continuava a mesma: como pode, em plena era do computador, as mutilações serem tratadas como algo normal, corriqueiro, com o consentimento da família e da sociedade?
A explicação que nos é dada é simplista, mas verdadeira: "é assim mesmo, essas mutilações são a vontade de Deus". Mutilações em nome de Deus, em pleno século XXI!
Em nome de Deus o empregado tem os dedos, a mão, o braço mutilados pela máquina da indústria. Em nome de Deus a mulher – que vive num país recheado de diamantes – tem a perna mutilada por uma mina terrestre "made in USA". Em nome de Deus é mutilado o orgulho da mulher, para que esta sirva às necessidades sexuais de um homem qualquer. Em nome de Deus mutila-se um olho, uma mão, os pés, a infância, o futuro de uma criança, que trabalha dia sim, dia sim, nas carvoarias, nos cisais, nos sinais. Em nome de Deus mutilamos florestas e animais. Em nome de Deus mutilamos a verdade, mutilamos a amizade, mutilamos a lealdade. Em nome de Deus mutilamos milhares de vidas todos os dias.
Mutilações feitas em nome de Deus, Deus dinheiro, e que julgamos, na nossa fé cega, como algo normal. "Deus quis".

Pato Branco, 04 de janeiro de 2002