terça-feira, 7 de maio de 2002

Crônica sem porquê

Estava eu pensando (ó!) em algo para escrever, mas a aula não estava mui inspiradora: Descartes em ritmo tartaruga manca com câimbra (apesar que estava até rápido, comparado aos dois meses necessários para que fossem lidas míseras dez páginas). Bem, mas o que poderia me inspirar o pai da ciência moderna? No máximo uma crônica falando mal da psico, mas isso eu já fiz na prova do Sebá e em demais oportunidades.
Lembrei, então, de um texto que eu havia escrito ano passado, pedido (e não recolhido) pela Velhinha, sob ética e ciência, que eu relera há poucos dias. Pensei em escrever algo similar. Não, melhor não. Dificilmente sairia igual, e aquele texto era muito a minha cara: o mais puro estilo "eu sou revoltado, não me provoque que eu mastigo de boca aberta e arroto na mesa!". Ou seja, uma versão mais crua das minhas crônicas de sempre. Algo bem adolescente, grito de protesto, bala para todo lado.
Me perguntasse contra o que eu grito, minha resposta seria enfática: contra o Sistema! Continuasse o interrogatório e perguntasse o que eu entendo por Sistema, eu diria "o que está aí". E o que é "o que está aí"? Ora, o mundo em geral. E seguindo por esse rumo não tardaria muito para perceber que eu não sei contra o que eu grito. Apenas que eu grito, e contra.
Parênteses: putz, bem no fim, esta aula está me inspirando, ô trem cartesiano que isto está virando! Melhor mudar um pouco, antes de chegar à conclusão que "eu, eu sei, eu, eu existo", ao menos como coisa pensante (será?). Fecha parênteses.
E é bom ou é ruim ser contra o que está aí, sem ter nada para pôr no lugar? (lugar do que, se ser contra tudo é ser, no fim, contra nada?). Ser contra o Sistema, é bom ou ruim? Já que estou sendo meio cartesiano, que eu fuja, ao menos, do maniqueísmo. À mim parece que o melhor é ser contra o mundo a aceitá-lo como está. Claro, tem seus prós e contras. Por esta trilha, está-se sempre insatisfeito, tem-se mais frustrações, mas a alegria de ver algo melhorar (se é que isso pode ocorrer) me parece ser maior do que passar a vida em semi-letargia, que passá-la em "brancas nuvens".
Respondendo àqueles (dois, talvez?) que estão lendo e me questionam como posso afirmar o que afirmei: não afirmo, apenas acredito ser melhor assim; questão subjetiva de credo.
Aos pacientes leitores que chegaram até aqui, devem ter notado que consegui fugir um pouco do Descartes, porém se perguntam aonde eu quero chegar com esta cronicazinha sem porquê e sem graça. É... a aula me inspirou. Descartes me inspirou.
Para terminar bem não posso deixar de gritar contra: FORA DESCARTES!!! Sou mais Merleua-Ponty!

Campinas, 07 de maio de 2002.

quarta-feira, 24 de abril de 2002

Crônica de um dia qualquer

Eu poderia começar esta crônica com "Querido Diário", fosse ela escrita em um. Mesmo não tendo esse fim, eu poderia começá-la assim. Mas, como estamos na era capitalista pós-industrial e não na Idade Média, prefiro começar com "realizando o balanço deste 23 de abril"...
Cria eu, ingenuamente (a cada dia mais me admiro com o tamanho da minha ingenuidade), que havia chances (por favor, controle a gargalhada, olha o vexame) de os EUA não conseguirem destituir o diplomata brasileiro José Maurício Bustani do cargo de diretor-geral da OPAQ (Organização para Prescrição das Armas Químicas, da ONU). Qual não foi a minha decepção ao abrir o jornal e ler que os EUA conseguiram o que queriam. Não se trata de anti-americanismo meu; explico rapidamente o episódio àqueles que não estão a par.
Os países membros da OPAQ permitiriam (teoricamente) o monitoramento, por parte da Opaq, do desmantelamento do seu arsenal químico. Um erro de Bustani foi dizer que os EUA poderiam ser inspecionados, uma vez que fazem parte da organização. Os EUA, "por supuesto", não gostaram, afinal, isso infringe a liberdade e a igualdade do mundo, aquela do "O mais forte manda, o resto baixa a cabeça e obedece". Porém o grande nó se deu na postura "confrontacionsita" e "autoritária" de Bustani, nas palavras do Tio Sam. O confrontacionista Bustani tentava convencer o Iraque a se tornar membro da OPAQ, o que permitiria a inspeção da ONU no seu arsenal, sem a necessidade de usar o aparato militar estadunidense. Ainda bem que os EUA, ao contrário de Bustani, querem a paz e não o confronto!
Eu tinha esperanças de que Bustani conseguisse superar o impasse no Iraque de forma pacífica, através do diálogo, ainda por cima peitando os donos do mundo. A notícia do afastamento de Bustani – opção que teve 87% dos votos válidos, graças aos esforços dos EUA, que se utilizaram de compra de votos, chantagem e coação, à omissão dos humanitários europeus e dos cucarachos, e à atuação medrosa da diplomacia brasileira, foi um balde de água fria nas minhas esperanças. Lutar contra o Sistema, contra os poderosos, contra "o que está aí" parece ser lutar contra a Lei da Gravidade, tentar voar por conta própria; é ter os sonhos, os ideais, sendo, todos os dias, atropelados, arrasados como Jenin.
O jeito é "cuidar da própria vida", me disseram. Como se morar em casa com muros de cinco metros de altura, cerca eletrificada, seguranças, cachorros e andar só de carro blindado fosse seguro (mais, como se isso fosse humano). Querer melhorar o mundo é questão de egoísmo, de sobrevivência de si próprio! Não adianta se armar, se prender, se mudar para um país "de primeiro mundo", para uma ilha deserta no meio do Pacífico. Violência, problemas ambientais, é impossível fugir do mundo morando nele. Vejo apenas duas soluções: tentar melhorá-lo ou, como sugere Pessoa, "se te queres matar, por que não te queres matar? Ah, aproveita!".
Se, pela manhã, tudo me indicava rumo à fossa, à tarde, no encontro dos alunos de filosofia da U$P (por sinal, deprimente o prédio da FFHCH), um estudante da UFPR sinalizou o caminho contrário. Se chamava Roberto, tinha problemas físicos, caminhava de maneira estranha, era coxo, "quebrava" um lado do corpo, os braços finos, de mãos caídas, sem muito movimento, não conseguia pôr água em um copo, e não era a tarefa mais simples levá-lo à boca. Era uma pessoa que tinha tudo para ficar em casa, escondendo sua deficiência, blasfemando contra a natureza. Ele não apenas não fez isso, como foi além. A natureza ele já superou, e hoje briga contra o Sistema. Saiu de Curitiba para dormir em alojamento, e quando reclamou não foi das dificuldades físicas que ele poderia ter tido, mas, em nome dos colegas da UFPR e de quem mais endossasse a crítica, da falta de apoio financeiro da U$P, aos alunos de fora e do preço diferenciado cobrado pelo Bandejão.
"Mas Bustani enfrentava os EUA por uma causa coletiva, enquanto ele reclamava por uma pequena causa, que dependia quase que somente dele e era para ele", pode objetar alguém. Vale lembrar que a luta contra si próprio costuma ser a mais difícil. No caso do Roberto, a afronta ao Sistema ocorreu desde o início: ele venceu o preconceito de que portador de deficiência é incapaz e passou por cima de uma sociedade que aceita somente o corpo perfeito; se expôs, com suas mãos caídas e seu andar estranho, enquanto a maioria se esconde, por ter uns quilos a mais, uma cicatriz na perna, ou qualquer outro detalhe insignificante. Se ele conseguiu superar pré-conceitos enraizados e difundidos, ele pode mudar o mundo; e, eu também, uma vez que tenho a mesma capacidade que ele.
Porém, apesar desse alento, o balanço final do meu 23 de abril de 2002 fica por conta do Radiohead: "Don’t get any big idea, they will not gonna happen".
Amanhã eu melhoro.

Campinas, 24 de abril de 2002