sábado, 7 de setembro de 2002

João Bosco e o parque do século XXI

Esta semana fui assistir ao show do João Bosco, em um shoping aqui de Campinas. Saí na metade. Deplorável alguém do naipe de João Bosco fazer show em um local como aquele, sem acústica, nem conforto à maioria que o assistia. Entretanto o show não destoava do ambiente: tudo ali era deplorável.

Mais que deplorável, deprimente.

Ver todas aquelas pessoas se reunindo em um local privado, para um show que, caso fosse ao ar livre, seria melhor aproveitado (não apenas a acústica, como a temperatura também estava ruim esse dia), numa época em que Campinas repete bordões como "quero paz" e "quero viver", foi esclarecedor e desolador.

O se trancar em shopings mostra o quanto o campineiro está refém da violência, sem vontade de esboçar qualquer reação, e o pior: sem se incomodar realmente com ela – pelo menos enquanto seguranças engravatados dão a impressão de proteção. Falsa impressão, desmentida pelos 60 assaltos e dois seqüestros-relâmpagos (felizmente) ocorridos em dois meses. Sim, felizmente. Pois tenho a esperança de que, sendo tão perigoso em um shoping quanto em um parque, as pessoas voltem a freqüentar mais o segundo – onde podem, inclusive, sentar no chão para assistir a um show –, e assim passem a exigir segurança de forma enfática (apesar de segurança não ser apenas caso de polícia, mas, principalmente, caso de política).

Até lá seguem achando normal – e até bonito – que um shoping se chame Parque, e tenha a pretensão de substituir o original. Afinal, neste novo Parque, à prova de chuva, frio, calor, violência, podem deixar seus pimpolhos brincando em morros artificiais de grama artificial, enquanto buscam nas vitrinas algum produto que os faça esquecer, por um instante, que seja, da sua mediocridade.


Campinas 7 de setembro de 2002


sexta-feira, 30 de agosto de 2002

Brincadeira de criança ou realidade futura?

Pela manhã eu havia acompanhado alguns amigos que foram tirar fotos do Mercadão de Ribeirão Preto. Infelizmente, eles ficaram muito restritos aos produtos, e não ao seu conjunto local-produtos-pessoas. Perderam também a oportunidade de contrastar aquele shopping com o das elites, o qual estão habituados a freqüentar.

Constraste que não está em 'shopping dos pobres' e 'shopping dos ricos', mas no fato de um ser democrático, enquanto o outro é segregacionista. No primeiro, entra quem quer, como quiser, desde que mantenha um mínimo de civilidade; no segundo, dependendo da sua aparência, você pode ser 'convidado a se retirar', e o mínimo de civilidade não é mais suficiente, substituído por um sem número de regras de comportamento – excessivas e artificiais – tipicamente pequeno-burguesas.

Contraste entre um ambiente não muito bem iluminado, colorido, cuja temperatura varia conforme a estação, conforme o dia, e que cheira a fruta, a queijo, a fumo em rolo; e o ambiente bem ilunimado por lâmpadas frias, de vitrines de cores fortes, agressivas, temperatura sempre agradável, e cheiro de desinfetante lavanda e fumaça de cigarro.

Constraste entre o real e o falso, entre o espontâneo e o controlado, entre o mundo de verdade e a ilha da fantasia da classe média (como diz Clóvis Rossi), entre a vida e o simulacro dela.

Mas não era esse o assunto sobre o qual eu queria discorrer. Lembrei das fotos no Mercadão quando, à tarde, na rodoviária, vi uma cena que lamentei estar sem máquina: dois funcionários de uma empresa de ônibus, cujo uniforme lembra o da guarda-municipal, davam atenção à um piazinho. O garoto – que devia ter oito anos, talvez –, vestia apenas uma calça vermelha, rasgada e tão suja quanto ele, brincava com um revolvinho de espoleta. Ao fundo, um ônibus com as cores do Brasil.

O garoto, numa alegria ingênua, brincava com aquela 'pessoa importante' que lhe dava um pouco de atenção. Falava, gesticulava, dava tiro, tomava tiro, corria, parava, pulava. Lembrei da época em que era eu corria, pulava, dava e levava tiro, sujo de rolar na grama e na terra, durante as perseguições aos bandidos imaginários. Porém, notei que havia uma grande distância entre a minha brincadeira e a dele, quando ele apontou a arminha ao funcionário que não lhe dava muita bola e gritou 'Passa o relógio!'. Ele não brincava como eu brincara, numa fantasia que morreria com o término da brincadeira. A brincadeira dele era também um treino para a vida adulta. Era a fantasia daquilo que ele, talvez, queira ser quando crescer, assim como quando um punha a camisa de meu pai e sentava na escrivaninha.

O funcionário olhou para ele com uma cara de pouco caso. O piazinho mantinha um olhar firme, o braço esticado, a arma apontada. Ao fundo, as cores do Brasil. Aquele parecia o retrato do Brasil. Permaneceram assim certo tempo – tempo suficiente para ter pego a máquina e tirado a foto, caso tivesse uma –, até que o funcionário jogou fora a bituca e o piá, correndo, foi apanhá-la, quase queimando os dedos para dar umas tragadas. Pouco depois os três se afastaram. O menino, saltitante e sorridente, com seu revólver de espoleta.

Eu quis crer que ele apenas brincava, que o 'passa o relógio!' não passasse de brincadeira, que daqui dez anos ele estivesse no meu lugar, na U$P ou Unicamp, que suas únicas palavras de ordem fossem contra as injustiças que ele superar, contra o Sistema, em manifestações. Mas tem horas que eu me vejo velho demais para crer em melhoras.


Campinas, 30 de agosto de 2002