domingo, 16 de março de 2003

O saco estourou

Foram 70 dias de relativa trégua. De vez em quando surgia um editorial reclamando (e ao mesmo tempo comemorando) alguma medida do governo Lula, um colunista, numa semana, comenta uma incoerência do governo comparado à campanha, na outra, outro fala da falta de projeto do governo, mas eram críticas brandas, afinal, governo novo, mal havia entrado no governo, não se podia criticar muito, e o governo, até certo ponto, estava correto em não tomar atitudes bruscas. Mas o tempo foi passando, e o que no início parecia ser comedimento, mostrou ser medo, e a impressão de que as medidas tomadas do governo seriam uma mudança bem pensada, buscando evitar solavancos que trouxessem danos desnecessários ao pais, mostrou-se ser um continuísmo do receituário neoliberal utilizado no governo FHC, e pior, o projeto anunciado pelo candidato Lula servia apenas para as eleições.

Tudo vinha morno. A ala moderada conseguindo calar a oposição dos “radicais” do PT, PFL e PSDB quietinhos, prometendo fazer uma oposição construtiva quando chegasse o momento – mas no fundo tão sem projeto como o PT – e enquanto isso, calados. Aí chegou a vez da aula magma da FFLCH-U$P, proferida pelo sociólogo petista Francisco de Oliveira. O torpedo fez pouco barulho, mas foi uma das primeiras vozes dos intelectuais do PT a atingir o governo. Veio depois a crítica dos aliados: Leonel Brizola e do PPS. Enquanto isso os jornalistas iam fazendo as suas críticas, sem pegar muito pesado, mas desgastando lentamente a imagem do novo governo (é estranho depois de 70 dias ainda falar novo governo). Esta semana saíram mais dois torpedos, só que desta vez houve estragos. Primeiro foi o intelectual petista Fábio Konder Comparto, em entrevista à revista Caros Amigos, torpedear o ministro Antônio Malan Palocci e abrir nossos olhos: que autoridade tem um médico para dizer se se está tomando o caminho certo ou errado na economia? Pergunta muito pertinente, que ainda não achei resposta minimamente convincente. Depois foi a vez de uma pesquisa de opinião que mostrou que a popularidade do presidente começa a despencar. A imprensa passou ter mais munição para trabalhar, e o presidente, aturdido, chamou-a de apressada.

Eis a versão petista dos neobobos de FHC. Um avanço, sem dúvida, que mostra que não há o mesmo descaso com as críticas, tal como ocorria no governo anterior. Mas mostrou ao mesmo tempo que o PT não tem projeto para governar (o que também é uma evolução, comparado com o projeto neoliberal tucano): os apressados esperaram 70 dias e o governo não soube propor uma mudança, não soube sequer dizer aonde quer chegar – exclui-se aqui as vagas promessas eleitorais, muitas repetidas após Lula assumir o governo.

Os jornalistas perceberam que Lula não compreendeu porque tanta pressa deles, e resolveram dar uma ajudinha ao presidente. Dos seis colunistas do primeiro caderno da Folha de São Paulo de hoje, quatro explicavam o porquê dessa pressa toda. Mas o torpedo (com a guerra marcada para amanhã é difícil evitar imagens bélicas) mais pesado veio da entrevista do filósofo Roberto Mangabeira Unger, padrinho intelectual de Ciro Gomes, e que defendeu a renúncia da candidatura deste para dar a vitória do Lula ainda no primeiro turno.

Foi uma síntese do que disseram os quatro colunistas do jornal: falta a Lula um plano de governo, com metas definidas e o caminho para alcançá-la; o que o governo está fazendo – reflexo do medo – é seguir o receituário do FMI para a economia e dar migalhas aos mais pobres; as reformas propostas para a previdência e para a tributação também seguem a linha FHC-Malan, preocupadas antes em equilibrar contas do que em criar condições de desenvolvimento sustentável para o país. Para finalizar a entrevista do filósofo apresentou uma série de projetos para estimular o crescimento do país, o aumento dos salários e de empregos. Tudo o que o PT, durante a campanha, disse que tinha.

Confesso que não sou muito entusiasta do filósofo, mas ele me parece atualmente ser uma das poucas vozes do Brasil a possuir um plano alternativo ao receituário do FMI, e que se engajada em difundi-las e pô-las em prática – tanto que apadrinhou o candidato Ciro Gomes. Talvez seja pura propaganda dele, coisa que os demais intelectuais que têm propostas para o país não gostam de fazer. Que seja propaganda, ao menos tem mais conteúdo do que as do Duda Mendonça.


Campinas, 16 de março de 2003

quinta-feira, 13 de março de 2003

A transparência de FHC

Que bom que nos últimos oito anos tivemos um grande estadista a frente a presidência do Brasil! Um verdadeiro republicano, que respeita a constituição do país – quando esta foi adaptada para ele, é claro – , que enterrou boa parte do atraso herdado dos governos Vargas e militares – a Embratel, a Vale do Rio Doce, por exemplo –, e que, antes que injustamente o acusem de entreguista, vale ressaltar que FHC seguiu, mais do que a constituição, nosso hino nacional, que diz "deitado em berço esplêndido", logo, se se está deitado, não se pode trabalhando, ou até pode, como provam muitas meninas e meninos das cidades turísticas no nordeste e de toda e qualquer cidade brasileira.

O Estado não deve produzir aço, não deve ser gerente de empresa, deve unicamente criar mecanismos de fiscalização e regulação das empresas privadas que prestam serviços públicos. Era mais ou menos isso que o Boçal gostava de repetir com sua boca de sovaco – como dizia José Simão – nos seus belos e frívolos discursos televisivos. As empresas estatais, argumentava ele e papagaiavam os neoliberalóides perfeitos-idiotas da televisão, como a Miriam Leitão, eram símbolo de ineficiência, de serviços mal prestados, de cabide de empregos, de falta de transparência, de desperdício de dinheiro público, e todas outras coisas que sabíamos de antemão que seriam ditas sempre que aparecia um economista na tv.

Feita a ‘privataria’ (como diz Elio Gaspari), criada as agências reguladoras, tudo deveria andar bem, rumo ao berço esplêndido, ou melhor, o berço esplêndido rumo a nós, que estamos deitados. Mas não parece ser isso o que ocorreu.

Tivemos um grande exemplo do poder de planejamento do Estado – uma das poucas coisas que lhe restou – com a bela novela do apagão. Aumentos abusivos de tarifas foram outra vantagem da privataria (só como exemplo, o pulso telefônico foi reajustado em 100% um ano antes da privatização, e em módicos 25% um ano depois). E saiu uma pesquisa do Instituto de Defesa do Consumidor, o Idec, com a avaliação das ditas agência reguladoras. Lula já havia reclamado delas, da autonomia que elas possuem, e vê-se que não é sem razão. A nota média das agências ou órgão reguladores, de zero a dez foi 4,2, ou seja, ruim. Banco Central, Secretaria de Defesa Agropecuária e Agência Nacional de Saúde Suplementar (que cuida dos planos de saúde) conseguiram o conceito muito ruim. Falta de transparência, punição dos consumidores com aumentos abusivos, falta de fiscalização, desrespeito ao código do consumidor são algumas das características desses órgãos.

É bom saber que temos nossa economia está nas mãos de um Banco que não tem transparência alguma, que apenas 50% do que nos chega ao prato é fiscalizado (na comida que segue pros gringos, a fiscalização é mais efetiva), e que além do Estado se abster de algo básico que é a saúde da população, ainda cria uma agência reguladora que joga no time dos planos de saúde.

E graças a isso e muito mais que nós só temos a agradecer ao auto-proclamado maior estadista do Brasil (e quiçá do mundo). Obrigado FCH!

Campinas, 13 de março de 2003