quinta-feira, 2 de julho de 2009

Comentário sobre o artigo "O espetáculo da 'mídia', para a 'mídia' – e pelos contestadores", de Eugênio Bucci.

Caro Bucci,

Gostei muito de seu texto, mas temi, com seu entusiasmo inicial por Debord, que não fizesse certas ressalvas. O fez, felizmente, no final do texto. Penso, porém, que foi um pouco exagerada, visto que não foi feita uma distinção que julgo importante no autor. Uma coisa é a organização por ele proposta para a realização da revolução, algo, como você disse, numa linha bastante leninista. Outra coisa é o projeto revolucionário para um pós-revolução, o que fazer da vida quotidiana quando o capitalismo ruir e os sujeitos serem, finalmente, autônomos – a realização do projeto Iluminista, em suma. Falo em projeto, mas não tenho ainda claro em que medida Debord o desenvolve ou o apresenta n'A sociedade do espetáculo; se como esboço, como uma direção, ou se seria possível, numa leitura mais apurada, ver esse projeto já desenvolvido. Mas que há uma proposta para uma vida “comunista”, em alguma medida posta em prática pelos situs, ainda que sob regime capitalista, isso me parece bastante evidente. Cito o final do capítulo VI, Tese 163: “O projeto revolucionário de uma sociedade sem classes, de uma vida história generalizada, é o projeto de um enfraquecimento da medida social do tempo, em proveito de um modelo lúdico de tempo irreversível dos indivíduos e dos grupos, modelo no qual estão simultaneamente presentes tempos independentes federados. E o programa de uma realização total, imersa no tempo, do comunismo que suprime 'tudo o que existe de independente dos indivíduos'”. Outro situacionista, Raoul Vaneigem, traz mais forte a idéia do reforço da subjetividade numa futura sociedade comunista. Traz também, por outro lado, mais forte a idéia de que o paredão é parte do processo revolucionário. Ou seja, são dois aspectos da teoria revolucionária de Debord e dos situacionistas, para além do diagnóstico, que não podem ser tidos como uma coisa só e descartados: uma parte dessa teoria é muito valiosa, para se pensar o quotidiano nosso, que seja.

Sou da Unicamp e da PUC-SP e não da USP, então não sei quantos e quais são os grupelhos auto-proclamados revolucionários que se embasam em Debord. Conheço um deles, que tem seus tentáculos na Unicamp, o Movimento Negação da Negação. Como disse certa feita um amigo meu: “um bando de publicitários leninistas”. Irônico, mas com alguma verdade: pegam dos situacionistas a estética e a parte de organização revolucionária. Consomem a imagem do revolucionário. Abandonam o diagnóstico e, no fim, confirmam o que Debord já alertava na Tese 203: “Sem dúvida, o conceito crítico de espetáculo pode também ser divulgado em qualquer fórmula vazia da retórica sócio-lógico-política [sic] para explicar e denunciar abstratamente tudo, e assim servir à defesa do sistema espetacular”.

Sei que você, quando se refere à espetacularização da greve 2009, não se refere somente a esses grupelhos, mas a todo o movimento, que está totalmente submerso na linguagem do espetáculo, o que significa que se limitou na sua crítica e, conseqüentemente, nas suas ações/intervenções. Como você disse, a greve se tornou uma imagem. Porém um aspecto que você toca por alto mais no fim do texto e que talvez seja parte das mais importantes desse processo de adequação passiva à linguagem espetacular: o espetáculo não é somente a imagem, ele é a representação do vivido. Os grevistas estavam ali representando um papel para o espetáculo, para poderem ser consumidos como imagens e ter sua existência autenticada pelo espetáculo. Daqui faço uma mistura de Debord com Jacques Rancière, e seu livro O desentendimento. Na leitura que faço dessa obra (li sem me deter muito, por isso não sei em que me medida me mantenho fiel ao pensamento do autor no que vou dizer), política merece essa denominação quando consegue desestabilizar a ordem política reinante, o status quo. É quando os excluídos – indivíduos, grupos, propostas, minorias – arrombam a porta e adentram. Política é quando o debate se amplia na obrigatoriedade de inclusão do Outro. A não-política, ou uma política apenas institucional, de fachada, seria quando todos os movimentos dentro da chamada arena política são previsíveis, ou ao menos não vão além de um campo delimitado (Foucault comenta algo próximo quando fala do conceito de Parrhesía). É o que aconteceu com tais grevistas: cumpriram um papel bastante delimitado, fizeram o que era esperado deles, seja nas ações, seja, principalmente, nas reivindicações. “Fim da Univesp”, “aumento de 16%”, “educação de qualidade”. As reivindicações são algumas justas, outras me parecem conservadoras. Não que se deva esperar que a universidade, uma instituição oficial dentro do aparelho do Estado, seja revolucionária. Mas me parece que no Brasil, seguindo a distribuição dos papéis entre as elites, a universidade não chega sequer a ser progressista: não inova na sua relação com a sociedade, não consegue estabelecer internamente um ambiente minimamente inovador (com o perdão da repetição do termo), não há na academia diálogo (que em grego só existe na voz média-reflexiva, não na ativa), o que há são debates: cada um põe sua opinião e no fim saem todos como entraram; não se questiona os funcionários ficarem reduzidos a meia dúzia de funções simiescas, as 40 horas de trabalho semanais (se no fim do século XIX 40 horas já garantiam o lucro do patrão, com a evolução tecnológica desde então é evidente que há tempo excesso no serviço), a tortuosidade da burocracia. Pior, não há questionamento sério à hierarquia da universidade. Questiona-se a forma de escolha do reitor, mas não a forma como poder é estruturado dentro da Academia, numa ordem muito forte, rígida: isso é aceito assustadoramente como algo natural.

Seguindo ainda por essa linha, não por acaso se fala em “atores políticos”, e não em “personagens políticos”: estão todos encenando aquilo que foi determinado para seus papéis: os conservadores de esquerda com greves esvaziadas, em que piquetes se tornam elemento vital e não apenas umas das ferramentas; os conservadores de direita e reacionários com flash-mobs, factóides, pedidos de ordem, da PM no campus. E, no fundo, não se soube de discussões por parte desses grupos de questões mais seminais. Como a que o professor Safatle colocou em artigo na Folha de São Paulo: quando se discute se deveria ou não chamar a PM, sinal de que há tempos a capacidade de diálogo na universidade já estava minada. E é um sintoma do papel que a universidade se arrola: um lugar técnico, de conversa, conchavos entre iguais e não de diálogo entre diferentes, o qual pode resultar em um embate de idéias, de teorias (mesmo as das exatas): pois o choque aberto com o diferente implica na possibilidade de irrupção de algo novo, esse algo novo pode gerar uma ação política – essa política defendida por Rancière –, a qual não se faz a menor idéia de onde terminará, justo por sair do script.


Um abraço.

Campinas, 02 de julho de 2009

Texto original:
http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=543JDB002

sexta-feira, 26 de junho de 2009

17 breves considerações sobre a greve 2009 na Unicamp (e nas estaduais paulistas)

1.
Sobre a greve dos funcionários, estopim das mobilizações 2009: começar praticamente de cara com uma greve para lutar por migalhas e esmolas é demonstração de incompetência: uma paralisação no dia da matrícula e outras demonstrações de organização e mobilização no correr do semestre e dificilmente seria necessário o apelo a um recurso extremo como greve por tão pouco.
O problema é estar organizado e mobilizado.

2.
Não resta dúvidas que a greve 2009 foi tocada por profissionais. O que se esquece de se perguntar é a serviço de quem estão esses líderes grevistas.

3.
Talvez eu esteja me tornando desatualizado também em política, nestes tempos de flash mobs, petições online e congêneres. Porém sempre tive que uma greve fosse fruto de mobilizações e não as mobilizações fruto da greve.

4.
A greve dos estudantes é o que há de mais patético e imaturo. O principal motivo para a greve 2009 é que não houve greve em 2008. A etérea pauta de reivindicações foi necessária porque, por mais que se queira, greve ainda não consegue se justificar por si só, como o carnaval ou as bienais de arte contemporânea. Apesar que a greve dos alunos já é quase uma "Bienal do vazio B".

5.
Elegeram a Univesp para tema da greve, como se ela tivesse sido criada e posta em funcionamento com um ato performativo, assinado em 29 de fevereiro de 2009. A Univesp é um projeto que está sendo elaborado e sobre o qual se trabalha já há um bom tempo. No IFCH ele é sabido desde 2005, pelo menos. Poderia ter havido mobilização desde então. Isso implicaria, contudo, em uma desculpa a menos para uma futura greve, ou ela tardaria mais para começar, porque precisariam buscar outro motivo (até porque já não temos mais a Alca e o FMI para gritar contra).

6.
Até agora não vi nada que condene a Univesp a ponto do projeto necessitar ser abortado. Há falhas problemas erros, mas passíveis de serem sanados. Como a Unicamp tem falhas erros problemas que pode(ria)m ser resolvidos, sem necessidade de fechar a universidade.
Brigar por correções no Univesp seria bem mais simples e realista do que contra o projeto todo, mas isso implicaria um mínimo de responsabilidade pelos seus atos por parte do sindicalismo estudantil (e dos professores).
As críticas mais contundentes à Univesp acabam por desabonar todo o sistema universitário brasileiro.

7.
O principal motivador dos alunos contra a Univesp é o medo. Primeiro o medo do novo (o sindicalismo estudantil é conservador, não esqueçamos). Segundo é o medo de que a formação de um aluno baseada em teleaulas com possibilidade se serem ministradas bons professores seja melhor do que sua formação baseada em aulas presenciais com pesquisadores sem didática, que odeiam dar aulas e só o fazem porque são obrigados.
Quais fins atende um uma formação baseada nessa relação professor-aluno? E que fins deveria ter uma universidade de pesquisa e uma universidade de ensino?
Querem educação de verdade mas nunca pararam para pensar em educação. Ou no que for.

8.
As reiteradas alusões a maio de 68 por parte dos militantes do sindicalismo estudantil mostram mais do que um saudosismo retrógrado e anacrônico, demonstram ignorância: as condições da França em 68, com um sistema de produção de produtos entrando em crise e um estado de bem-estar social engasgando, são sensivelmente diferentes das condições do Brasil em 2009, com uma crise aberta do sistema de produção de lixo, um proto-estado de bem-estar social mutilado e a ideologia neoliberal (temporariamente!) em descrédito geral. Depois, as irrupções de maio de 68 não surgiram de repente, por geração espontânea. Foram um longo processo de mobilização e gestação, do qual participaram pessoas minimamente inteligentes. Estrasburgo 66 talvez seja o mais famoso evento pré-68. Certamente não foi o primeiro. Mas serve para ilustrar que maio de 68 não foi organizado a partir de 21 de abril do mesmo ano.

9.
A greve de 2009 é conseqüência da greve de 2007.
Há dois anos dizia-se que se todo o poder não estivesse dentro da universidade, isso seria o fim da autonomia universitária. Esqueceram de ver como esse poder pode ser exercido aqui dentro. E os grevistas de 2007 venceram. E aí está a defendida autonomia universitária: a reitora da USP chama a polícia para "negociar" com os grevistas.
A reitora agradece aos militantes do sindicalismo estudantil e demais grevistas por 2007.

10.
Pior foi ver os militantes do sindicalismo estudantil da Unicamp comemorando a ação da polícia. Porque depois da ação finalmente havia um "bom motivo para entrar em greve", como disseram reiteradamente na assembléia.
O sindicalismo estudantil e o gado que o segue agradecem à reitora por 2009.

11.
Para não ficar tão na cara que uma mão lava a outra nessa greve de aparências, agora pedem a saída da reitora, como solução para os desmandos que o reitor tem o poder de cometer. No máximo questionam a eleição para reitor, nunca a hierarquização e a estrutura de poder que rege a universidade - de dentro e de fora.

12.
A ingerência externa na universidade é hoje o que sustenta a universidade, e é aplaudida e buscada, mesmo pelos conservadores esquerda. Se criticam a presença de empresas ou qualquer coisa voltada para o mercado, aceitam bovinamente, religiosamente tudo o que vem das agências de fomento à pesquisa. Que são, pouco importa as diferenças, instâncias externas à universidade e regidas sabe-se lá por que interesses. Ou melhor, é sabido por quais interesses, mas basta pôr um pouco de dinheiro na mão de alunos e professores que eles aceitam esse suborno sem peso na consciência e calam qualquer crítica - sua ou alheia.
O máximo da crítica é que o conceito do programa de pós caiu a quatro.

13.
E em meio a acaloras e bastante estéreis discussões sobre se a reitora da USP deveria ter chamado a polícia ou não, coube a um professor declaradamente de fora do meio sindical, Vladimir Safatle, lembrar-nos que havia uma questão um pouco mais fundamental do que a do "chama-não-chama": quais as raízes do problema que levaram ao ponto de se discutir PM ou não PM?
A resposta é simples, ainda que não simplória: é impossível dialogar (quanto mais negociar) com uma porta.
Sem querer ser saudosista, ainda mais de um tempo que sequer vivi, mas Figueiredo ao menos era um pouco mais sincero, talvez até um pouco menos bronco. E por não ser do meio acadêmico ele até conhecia o cheiro de povo!

14.
Pior do que a greve, só as manifestações anti-greve. Um bando de imbecis ultra-reacionários que tentam produzir factóides, porque sabem que não tem razão: o sindicalismo estudantil pode ter pouca legitimidade, mas tem mais do que esses precários alunos. Se tivessem realmente interesse em acabar a greve, utilizariam seu poder de flash-mobilização, se organizariam para ir à assembléia e fazer vencer a proposta do fim da greve (porque a maioria dos estudantes, isso é perceptível, é contra a greve, por diversos motivos).
Vencer o sindicalismo estudantil com suas próprias armas o poria em aporia: ou acata a decisão da maioria, ou dá razão às críticas de que é autoritário e acaba de vez com sua parca legitimidade.

15.
A depender do sindicalismo estudantil, sabemos o que acontecerá depois da greve. Poremos um Chico na vitrola e cantaremos todos juntos "Mas para meu desencanto/ O que era doce acabou/ Tudo tomou seu lugar/ Depois que a banda passou/ E cada qual no seu canto/ Em cada canto uma dor/ Depois da banda passar", preocupados em reposição de aulas ruins, em tirar boas notas, em agradar aos professores e em preencher corretamente os formulários da Fapesp.

16.
Porém, a depender de certo sentimento difuso entre muitos estudantes, pode ser que voltando à normalidade, retorne-se à busca por novas formas de ação e organização, que experimentem e polemizem, que passem ao largo do sindicalismo e que tomem o espaço deste. Ótimo exemplo desse tipo de experimentação foi o Departamento de Estética Marcel Duchamp. Sem dúvida há espaço para mais.

17.
Em tempo: não sou contrário ao recurso da greve. Me oponho à sua banalização, à sua transformação em pastiche de mobilização, usado para encobrir os objetivos de desmobilização que regem as ações do sindicalismo estudantil, representantes de uma pretensa verdade política que só eles conhecem e não conseguem expôr ou explicar ao grande público.
No fundo, sua defesa da democracia e autonomia na universidade se resume à máxima do Millôr: "Democracia é quando eu mando em você, ditadura é quando você manda em mim."


Campinas, 22-26 de junho de 2009


ps: http://comportamentogeral.blogspot.com/2009/05/mediocridade-e-conservadorismo-na.html