Caro Bucci,
Gostei muito de seu texto, mas temi, com seu entusiasmo inicial por Debord, que não fizesse certas ressalvas. O fez, felizmente, no final do texto. Penso, porém, que foi um pouco exagerada, visto que não foi feita uma distinção que julgo importante no autor. Uma coisa é a organização por ele proposta para a realização da revolução, algo, como você disse, numa linha bastante leninista. Outra coisa é o projeto revolucionário para um pós-revolução, o que fazer da vida quotidiana quando o capitalismo ruir e os sujeitos serem, finalmente, autônomos – a realização do projeto Iluminista, em suma. Falo em projeto, mas não tenho ainda claro em que medida Debord o desenvolve ou o apresenta n'A sociedade do espetáculo; se como esboço, como uma direção, ou se seria possível, numa leitura mais apurada, ver esse projeto já desenvolvido. Mas que há uma proposta para uma vida “comunista”, em alguma medida posta em prática pelos situs, ainda que sob regime capitalista, isso me parece bastante evidente. Cito o final do capítulo VI, Tese 163: “O projeto revolucionário de uma sociedade sem classes, de uma vida história generalizada, é o projeto de um enfraquecimento da medida social do tempo, em proveito de um modelo lúdico de tempo irreversível dos indivíduos e dos grupos, modelo no qual estão simultaneamente presentes tempos independentes federados. E o programa de uma realização total, imersa no tempo, do comunismo que suprime 'tudo o que existe de independente dos indivíduos'”. Outro situacionista, Raoul Vaneigem, traz mais forte a idéia do reforço da subjetividade numa futura sociedade comunista. Traz também, por outro lado, mais forte a idéia de que o paredão é parte do processo revolucionário. Ou seja, são dois aspectos da teoria revolucionária de Debord e dos situacionistas, para além do diagnóstico, que não podem ser tidos como uma coisa só e descartados: uma parte dessa teoria é muito valiosa, para se pensar o quotidiano nosso, que seja.
Sou da Unicamp e da PUC-SP e não da USP, então não sei quantos e quais são os grupelhos auto-proclamados revolucionários que se embasam em Debord. Conheço um deles, que tem seus tentáculos na Unicamp, o Movimento Negação da Negação. Como disse certa feita um amigo meu: “um bando de publicitários leninistas”. Irônico, mas com alguma verdade: pegam dos situacionistas a estética e a parte de organização revolucionária. Consomem a imagem do revolucionário. Abandonam o diagnóstico e, no fim, confirmam o que Debord já alertava na Tese 203: “Sem dúvida, o conceito crítico de espetáculo pode também ser divulgado em qualquer fórmula vazia da retórica sócio-lógico-política [sic] para explicar e denunciar abstratamente tudo, e assim servir à defesa do sistema espetacular”.
Sei que você, quando se refere à espetacularização da greve 2009, não se refere somente a esses grupelhos, mas a todo o movimento, que está totalmente submerso na linguagem do espetáculo, o que significa que se limitou na sua crítica e, conseqüentemente, nas suas ações/intervenções. Como você disse, a greve se tornou uma imagem. Porém um aspecto que você toca por alto mais no fim do texto e que talvez seja parte das mais importantes desse processo de adequação passiva à linguagem espetacular: o espetáculo não é somente a imagem, ele é a representação do vivido. Os grevistas estavam ali representando um papel para o espetáculo, para poderem ser consumidos como imagens e ter sua existência autenticada pelo espetáculo. Daqui faço uma mistura de Debord com Jacques Rancière, e seu livro O desentendimento. Na leitura que faço dessa obra (li sem me deter muito, por isso não sei em que me medida me mantenho fiel ao pensamento do autor no que vou dizer), política merece essa denominação quando consegue desestabilizar a ordem política reinante, o status quo. É quando os excluídos – indivíduos, grupos, propostas, minorias – arrombam a porta e adentram. Política é quando o debate se amplia na obrigatoriedade de inclusão do Outro. A não-política, ou uma política apenas institucional, de fachada, seria quando todos os movimentos dentro da chamada arena política são previsíveis, ou ao menos não vão além de um campo delimitado (Foucault comenta algo próximo quando fala do conceito de Parrhesía). É o que aconteceu com tais grevistas: cumpriram um papel bastante delimitado, fizeram o que era esperado deles, seja nas ações, seja, principalmente, nas reivindicações. “Fim da Univesp”, “aumento de 16%”, “educação de qualidade”. As reivindicações são algumas justas, outras me parecem conservadoras. Não que se deva esperar que a universidade, uma instituição oficial dentro do aparelho do Estado, seja revolucionária. Mas me parece que no Brasil, seguindo a distribuição dos papéis entre as elites, a universidade não chega sequer a ser progressista: não inova na sua relação com a sociedade, não consegue estabelecer internamente um ambiente minimamente inovador (com o perdão da repetição do termo), não há na academia diálogo (que em grego só existe na voz média-reflexiva, não na ativa), o que há são debates: cada um põe sua opinião e no fim saem todos como entraram; não se questiona os funcionários ficarem reduzidos a meia dúzia de funções simiescas, as 40 horas de trabalho semanais (se no fim do século XIX 40 horas já garantiam o lucro do patrão, com a evolução tecnológica desde então é evidente que há tempo excesso no serviço), a tortuosidade da burocracia. Pior, não há questionamento sério à hierarquia da universidade. Questiona-se a forma de escolha do reitor, mas não a forma como poder é estruturado dentro da Academia, numa ordem muito forte, rígida: isso é aceito assustadoramente como algo natural.
Seguindo ainda por essa linha, não por acaso se fala em “atores políticos”, e não em “personagens políticos”: estão todos encenando aquilo que foi determinado para seus papéis: os conservadores de esquerda com greves esvaziadas, em que piquetes se tornam elemento vital e não apenas umas das ferramentas; os conservadores de direita e reacionários com flash-mobs, factóides, pedidos de ordem, da PM no campus. E, no fundo, não se soube de discussões por parte desses grupos de questões mais seminais. Como a que o professor Safatle colocou em artigo na Folha de São Paulo: quando se discute se deveria ou não chamar a PM, sinal de que há tempos a capacidade de diálogo na universidade já estava minada. E é um sintoma do papel que a universidade se arrola: um lugar técnico, de conversa, conchavos entre iguais e não de diálogo entre diferentes, o qual pode resultar em um embate de idéias, de teorias (mesmo as das exatas): pois o choque aberto com o diferente implica na possibilidade de irrupção de algo novo, esse algo novo pode gerar uma ação política – essa política defendida por Rancière –, a qual não se faz a menor idéia de onde terminará, justo por sair do script.
Um abraço.
Campinas, 02 de julho de 2009
http://observatorio.
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