terça-feira, 21 de junho de 2011

Marchas, paradas, velocidade, instantaneidade: 2011 ou 1909?


O STF decidiu, enfim, que o artigo 5º da Constituição é legal, de forma que o direito constitucional de livre expressão é um direito, e liberou as manifestações favoráveis à legalização da cannabis, as marchas da maconha.

Ingrediente extra para inflamar a marcha para Jesus que acontece esta quinta em São Paulo: porque a livre expressão brasileira permite manifestações claras de intolerância e preconceito, desde que não carregue insígnias muito vistosas, como suásticas em camisas pretas: ser contra a criminalização da homofobia, usando camisetas com Jesus, por exemplo, é tolerado – e até visto como um valor positivo, firmeza de caráter, liberdade de culto. Se defender que gay é inferior não tem problema, falar contra maconheiro, então, que mal tem?

Três dias depois é a vez da Parada Gay ocupar a Av. Paulista e combater o “somos um em Cristo” com o colorido do “amai-vos uns aos outros”. O fato desta acontecer na área nobre da principal cidade do país ainda permite sonhar com um futuro um pouco menos tenebroso.

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“Já não há beleza senão na luta. Nenhuma obra que não tenha um caráter agressivo pode ser uma obra-prima. A poesia deve ser concebida como um violento assalto contra as forças ignotas para obrigá-las a prostrar-se ante o homem”. Talvez a fraqueza para os dias atuais do manifesto futurista de Marinetti seja sua franqueza. Não fosse por isso (e, em dado caso, na substituição de “homem” por “Senhor”), o texto de 1909 poderia passar tranqüilamente como sendo de 2011: o nacionalismo de antanho foi substituído por requentos pós-modernos de identidades fragmentadas que, em alguns casos, necessitam ser defendidas com a mesma obsessão; e, mais impressionante, o tom militarista segue perfeitamente atual: salvo o pessoal da bicicleta, que faz bicicletadas, e a chamada esquerda, que insiste em passeatas, caminhadas e atos, o que temos são marchas e paradas, eventos tipicamente militares – inclusive com suas insígnias, a folha de cinco pontas, a cruz, o arco-íris. Faltam apenas os desfiles.

Outra mostra que os tempos não mudaram tanto: o local das manifestações: a rua. Por mais que o discurso hegemônico diga que a rua esteja esvaziado de sentido e de poder (discurso repetido principalmente quando há manifestações reivindicatórias da “turba”, MST, MTST, ou meros grevistas), ela segue como o espaço de disputa entre os diversos atores sociais relevantes – por mais que não seja o único local. Batalha que se estende além das marchas e paradas esporádicas: “afirmamos que a magnificência do mundo se enriqueceu de uma beleza nova: a beleza da velocidade”. A guerra tão louvada por Marinetti em 1909 está no nosso dia-a-dia em 2011.


Pato Branco, 21 de junho de 2011

ps: por conta de viagens atrasei a publicação desta crônica. De qualquer forma, não precisei alterá-la, apesar da tentação em falar do STF rasgar a Constituição, mas acho que cabe melhor em texto de humor isso.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

O mundo das possibilidades perdidas: O dia em que Francoy comprou Monster

Final de semana fui para Ribeirão Preto. Fui de carona, e o motorista viu tudo fazer sentido quando respondi que já me aproximava dos trinta: “você parece ter vinte e dois, mas fez muita coisa pra essa idade”. E realmente, eu precisava ter entrado na universidade com uns quinze anos – além de ter sido precoce em tantas outras coisas.

Em Ribeirão, fiquei na casa do Paulo, e bem que gostaria de ter revisto mais gente, mas desencontrei. Uma dessas pessoas desencontradas foi o poeta Daniel Francoy – que em 2010 publicou o ótimo livro Em cidade estranha seguido de Retrato de mulheres, pela editora portuguesa Artefacto.

Por estes dias ele resolveu fazer nova investida pelas suas memórias, algo que outrora havia feito pelo twitter, quando fazia a contagem regressiva para completar sua terceira década de vida. Desta vez não se limitou aos 140 caracteres, e partiu para crônicas mais encorpadas, nas quais eles aproveita da sua bagagem cultural pop e erudita para unir poesia, mordacidade e auto-ironia: “Jovem nos Anos 90, Velho nos Anos 2000”.

Na primeira, conta da compra do disco Monster, do REM: Estava quente e caminhávamos de volta ao liceu quando Beatriz disse que morava ali perto, na Rua Prudente de Moraes, quase esquina com a São José, e que às vezes tinha o hábito de andar sem roupa pela casa. Lembro-me de ter ficado atônito, mas não lembro o que disse em resposta. De todo modo, toda vez que relembro esse episódio, quase que involuntariamente evoco alguns versos de 'Dobrada à Moda do Porto', de Álvaro de Campos: 'Quem sabe o que isto quer dizer? Eu não sei, e foi comigo...', embora muitas vezes (mas não sempre) eu saiba o que isto quis dizer porque sim, foi comigo. E também por isso digo, bom amigo, que o mundo das possibilidades perdidas é infinitamente mais doloroso do que o das impossibilidades absolutas. Que homem tem o direito de se sentir miserável por nunca ter tido Scarlett Johansson? Já não saber o gosto do beijo de Beatriz pesa como uma condenação, e uma condenação tola e radical, algo como perder um dia de sol simplesmente por não ter achado a chave que abria a porta de casa.”

Ao ler o texto fui ouvir o referido disco do REM, para mim um dos melhores do grupo. Não tive nenhuma Beatriz que me contasse que andava nua pela casa – no máximo vizinhas distraídas que andavam nuas pelo quarto –, mas REM me fez lembrar de minha primeira namorada – coincidentemente também sua ex –, que na época adorava a banda. Eu imaginava que ali, em fevereiro de 2002 – namorada, filosofia, nova vida! –, eu finalmente e definitivamente saía do mundo das possibilidades perdidas. E talvez uma das possibilidades que me abria fosse a de me dar conta do que realmente acontecia à minha volta – e eu a perdi.

Noto então que o título da série de crônicas do Francoy não cabe de todo a mim: ainda não me considero envelhecido nos anos 00 (nem nos anos 10), e não é por conta de não aparentar beirar os trinta. É por desconfiar que se algum dia alguma “girl next door”, alguma Beatriz me aparecer pela frente, como com o Francoy, quinze anos atrás (caramba, estamos velhos!), é bem capaz d'eu saber o que ela quer dizer quando comentar que anda nua pela casa (ou nem precisa tanto), mas vou seguir achando que não é comigo.


Campinas, 09-16 de junho de 2011.

ps: O blogue do Francoy: www.oceuvazio.blogspot.com