quinta-feira, 22 de março de 2012

Motoristas em uma quinta à noite

Saio de casa apressado: queria jantar e ainda pegar algum mercado próximo aberto – hoje tinha preguiça de passear pela av. Paulista, como tivera de cozinhar algo decente no almoço.

Na rua da Consolação, o sinal para pedestres pisca e resolvo esperar. Um rapaz, seus vinte e cinco anos, atravessa a rua, vindo na minha direção. Para atravessar, precisa contornar um carro que parara em cima da faixa – dirigido por outro rapaz, também nos seus vinte e cinco anos. Enquanto passa, gesticula. Que foi, pergunta irritado o motorista, Porra, olha onde você pára, em cima da faixa, Que tem, não gostou, Não tem respeito, não, idiota, não tem educação. O sinal abre, mas os ânimos seguem exaltados. O carro parte, Eu devia descer e te dar uma porrada, isso sim, palhaço. O pedestre responde algo, mas eu já estou distraído com duas mulheres que dobram a esquina correndo – Pega ladrão, grita alguém do bar, em tom jocoso.

Na esquina seguinte, escuto barulhos estranhos vindos de um carro que espera o sinal abrir: um "japonês" acompanha a bateria da música que ouve batendo duas baquetas contra o volante – eu chutaria que ele é antes jogador de Guitar Hero do que baterista.

Dobro em direção à rua Augusta. Um homem, fora da faixa, perna enfaixada e muleta, atravessa lentamente a rua. Um carro se aproxima e vai diminuindo a velocidade, até ter espaço para contornar pelo lado – imaginei que fosse buzinar, mas não o fez. Bom que não teve pressa, porque dez metros a frente precisou parar atrás de uma fila de carros, num pequeno congestionamento – muito provavelmente porque algum motorista mais lento tentava estacionar.



Já na Augusta, dois andinos, um na caixa, outro no charango e na flauta de pan, tocavam uma música típica – como estava com pressa não pude parar para ouvi-los, infelizmente. Quando voltei da lanchonete, já haviam encerrado a apresentação, e uma esquina acima contavam o que haviam recebido. Em frente ao Conjunto Nacional um homem apresentava sua arte no saxofone. Nada traumático, do nível de Kenny G, mas lamentei que não fosse música andina.

No mercado, a caixa ganha da cliente um pão de mel. Obrigada, eu nem gosto de doce... sou pior que formiga. Apesar da caixa ter terminado sua frase, a cliente não havia ouvido a resposta: Dá para alguém que goste, então. No outro caixa uma mulher acena para seu "filho", um cachorro que a espera com a filha (esta sem aspas) do lado de fora.

No caminho para casa, nenhuma Flávia parecida com Carla Bruni, mas um grupo de japoneses (estes sem aspas) conversa animadamente – e me vejo concordando com o Cássio: parece que estão brigando, pela entonação própria do idioma.

Praticamente em frente ao prédio onde moro, espero os carros passarem para atravessar a rua. Uma mulher vem lentamente, conversando no celular enquanto dirige. De repente noto que avança em minha direção. Dou um pulo para trás. Pela velocidade não chegou a assustar – e eu, que de início achei que ela queria estacionar, e não que simplesmente perdera a direção do carro, concentrada que estava na conversa, acabo não tendo uma segunda reação de indignação.

Antes de chegar em casa, dou licença à Mercedes do vizinho do prédio ao lado, apressado que está em entrar na garagem. Pela pressa, devia estar com dor de barriga, os odores do organismo a pestilentar o carro caro, até então com cheiro de novo. E eu devia estar mesmo cansado, pois acabo não me irritando com mais isso – sequer para sarcasticamente cumprimentá-lo.

Sem sarcasmo, cumprimento Luís, o porteiro do turno, e subo para estudar mais um pouco – que troco por esta crônica.


São Paulo, 22 de março de 2012.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Elevador exclusivo

Hoje fui com meu irmão dar uma volta, apresentá-lo a São Paulo – ao mesmo tempo que ele aproveitava para me apresentá-la um pouco mais. Até sábado, quando chegou, o que meu irmão conhecia da cidade se resumia a ir de metrô do terminal rodoviário do Tietê até o da Barra Funda.

Chegou na hora que eu recebia a visita de alguns grandes amigos. Quando se foram, levei-o pra dar uma olhada no que é a Rua Augusta num sábado à noite – sem podermos nos demorar muito, pois ele tinha compromisso no dia seguinte, mas o suficiente para que o impressionasse o a fauna, a balbúrdia, o tanto de gente na rua.

Segunda-feira, com praticamente todos os museus fechados, restringimos nossa visita a um rolê pelo centrão de São Paulo: Mosteiro São Bento, Sé, Edifício Banespa, Largo São Francisco. A catedral da Sé, eu havia entrado pela última vez há uns sete anos. Lamentei que o quiosque que vende souvenir não vendesse café expresso, achei o lugar aconchegante, agradável – bem diferente do escuro, pesado e sádico Mosteiro São Bento, que eu ainda não conhecia. Tampouco conhecia o edifício Banespa e seu mirante – e as duas horas por cinco minutos de vista, tanto eu quanto meu irmão ficamos em dúvida se valeram a pena. O Largo São Francisco eu conhecia, mas nunca havia entrado na Faculdade de Direito.

O prédio, da década de 1930, projetado pelo sucessor de Ramos de Azevedo (responsável pelo Teatro Municipal, por exemplo), Ricardo Severo, é imponente e seu interior transmite muito bem essa imponência, como se anunciasse já em sua arquitetura: daqui sai a elite da elite tupiniquim, desde os tempos do Rei – louvada seja a Faculdade de Direito.

Os tempos eram outros, de um Brasil antigo, quase uma mera continuação do Brasil Colônia, e essa afirmação de superioridade de classe era natural e bem-vista. Diz o texto da faculdade, sobre o edifício: “representou a própria criação do estilo neocolonial, que agregava à moderna arquitetura, elementos do barroco luso-brasileiro, evocando a tradição cultural do país e do velho convento” – ocultou que a tal tradição cultural evocada passa também pelos seus aspectos sociológicos. E é essa tradição que segue presente para além da arquitetura, já neste Brasil Moderno, de modernização sempre conservadora, meio a la Lenin, com um passo para trás – mas não necessariamente para dar dois adiante.

Nossa visita à faculdade começou com a ingenuidade do meu irmão: foi entrando na biblioteca, para conhecê-la, como se público para a USP fosse sinônimo de algo destinado ao público e não a um certo, bem delimitado e selecionado público. O guarda, muito gentil, nos informou que precisávamos pegar uma autorização no prédio principal. No tal prédio, foi meu irmão quem chamou a atenção para os elevadores de uso exclusivo dos “senhores professores”. Pior: não bastasse essa distinção, os elevadores exclusivos para os senhores professores possuem ascensoristas. Sim, um funcionário que passa o dia sentado, esperando por esse ser superior – o Professor Doutor – entrar e dizer: segundo, e após um minuto, se tanto, anunciar, cabeça baixa, segundo andar. Ao mesmo tempo, toda essa pompa é incapaz de atentar para a manutenção do prédio, que tinha o teto e paredes descascando – mas era no terceiro andar, talvez por isso pudesse deixar passar: importante é o hall de entrada, a sala de visitas ser chique.

Ao chegar em casa, antes de escrever esta crônica, abro o Facebook. Uma amiga – que não estudou na “Sanfran”, mas na Unicamp, que também tem como meta (primeira, mas velada) garantir a distinção de classe – compartilhou uma tirinha falando das agruras dos pobres (ex) pós-graduandos de universidade pública, incapazes de conseguir um emprego à altura do que merecem – como acontece desde o trote, apelando ao tradicional escárnio da nossa elite intelectual (!?) para com quem não teve o mesmo berço ou a mesma sorte.

Com isso, fiquei na dúvida: melhor o escárnio pós-moderno – bem humorado (?) –, ou se prender às velhas formas de distinção. A segunda parece saber conciliar nossa tradição cultural com a modernidade que aspiramos e fingimos ter alcançado – e isso seria o Brasil democrático: toda doméstica tem direito a usar o elevador de serviço (não precisa subir pelas escadas). A primeira, ilustrada, não apenas acredita, como comprova cientificamente que alcançamos tal modernidade – nosso atraso se deve exclusivamente a uma elite (não ela, claro) perversa, e às domésticas, que insistem em preferir o elevador de serviço.


São Paulo, 19 de março de 2012.