domingo, 22 de abril de 2012

Cores e sombras no vazio até o Outro

(livre interpretação da coreografia "Estudos em Chrom.Aqui")

Encontros, desencontros e reencontros com o Outro. Essa foi minha livre interpretação da coreografia "Estudos em Chrom.Aqui", de Alex Soares, do grupo Mov'ola, na segunda vez que assisti à apresentação.

Talvez isso ajude a diminuir a coreografia: na primeira vez que a vi, consegui me deixar levar pelo desfrutar da dança, sem buscar se não haveria uma mensagem – até pela descrição do programa, "Estudos em Chrom.Aqui" parece não ter uma mensagem positiva a dizer, no sentido de ter um discurso que afirma algo: estaria muito mais para um discurso negativo de embaralhar o quotidiano, deixando ao espectador a possibilidade de uma outra percepção do mundo, ao fim da apresentação. Foi essa a sensação que saí da primeira vez: certo estupor e um repensar muito das minhas opiniões sobre o que vejo e vislumbro no dia-a-dia.

Talvez foi já com esse repensar efervescendo que vi "Estudos em Chrom.Aqui" esta segunda vez. E quem sabe por isso eu tenha me atido a detalhes da coreografia, e me deixado interpretá-la ao sabor do que me soava, conforme as emoções das minhas últimas vivências.

A coreografia começa com as bailarinas Aline Campos e Natacha Takahashi dançando iguais, porém a primeira à sombra, a segunda à luz. Sons de máquina e essa coreografia equivalente me fez pensar se os caminhos que trilhamos, claramente ou sem saber, não estariam, no fim, sujeitos à mesma reificação, ao mesmo carregar caixas sem sentido – como Sísifo.

Entra, então, o terceiro bailarino da coreografia, Woody Santana. Os três em cena dançam, até que uma das bailarinas, Natacha, se oculta atrás de um punhado de caixas empilhadas no fundo do palco.

Restam Woody e Aline, que carregam caixas – reais e imaginárias – da pilha para alguns lugares do palco – Sísifo? Toc? –, até começarem um duo de tensão e delicada agressividade. Em meio a essa harmonia que não é sincrônica, um lento escapar de Aline, como a caminhar pelo espaço. Woody ainda a segura, pelo pé, mas no fim o que Aline arrasta até um canto do palco – para depois se retirar – é o corpo inerte de Woody – como se carregasse um peso morto.

Reaparece Natacha, e o duo agora é de quedas, de sustentar-se com o Outro, sempre com grande delicadeza, leveza, apesar de haver certa tensão: uma nova harmonia sem sincronia.

Volta Aline. Em um caminhar hesitante, Woody se apóia em ambas, sem chão, mas também sem que uma delas – ou as duas – o segure firme. O próximo passo é um empurrar de Woody – que vai junto – para a beira do abismo. Há, então, uma disputa por Woody, por esse Outro que as empurra mas as segura, e Natacha sobra sozinha no palco, para o solo final. Traz ainda o braço esticado, como a esperar a mão de alguém que a acompanhe. Vai um tempo até desistir desse apoio que não vem, e ela recolha o braço. No final, a cada golpe, ela sente no peito o apagar das luzes e das cores, até que, sem ninguém que a segure, o corpo pendente pra trás, o golpe final e a escuridão – a queda solitária, finalmente.

São Paulo, 22 de abril de 2012.


sábado, 21 de abril de 2012

Toca Raul!


Virou piada sem graça e manjada, mas houve época que era pra valer gritar "toca Raul!" quando a banda era fraca – no repertório ou na execução, tanto faz. "Toca Raul!", foi a vontade que me deu de gritar, de verdade, depois de pensar um pouco sobre o filme Raul – o início, o fim e o meio, de Walter Carvalho, que havia assistido há pouco. O filme não chega a ser ruim, mas é um filme fraco, ainda mais quando se leva em conta todo o material que foi conseguido – inclusive é essa montueira de material que dá uma primeira impressão do filme ser mediano.

Difícil saber por onde começa o mau uso do material. Talvez pelo título, que não é verdadeiro: Raul – o início, o meio e o fim, deveria ser. Pois o filme perde a ótima oportunidade de fugir do calendário, embaralhar um pouco a vida – as imagens e as músicas, ao menos – de Raul, e fazer um filme menos literal e mais poético. Isso não implicaria em uma apresentação equivocada do roqueiro, apenas poderia dar chance a Raul Seixar compôr a trilha sonora do filme sobre a própria vida. Um exemplo. Conforme o documentário, Raul estava artisticamente quase morto na década de oitenta, sem gravadora, sem empresário, sem agenda, isso até ser resgatado por Marcelo Nova, do Camisa de Vênus. Quando morreu, em 1989, não fazia dez dias que tinha feito seu último show, em Brasília. Por que mostrar o caixão só após a morte biológica? Não tinha ele já sido fechado, para depois ser reaberto? Eventualmente, repetir imagens não seria problema. Inclusive, a fase decadente de Raul Seixas foi passada meio por alto, confusamente – lembro de cenas interessantes dessa fase, vistas em documentários sobre o músico –, dando a impressão que o ostracismo foi simplesmente porque Raul não conseguiu ser a metamorfose ambulante que a indústria cultural exige de seus produtos.

O final, como um todo, é precário, por demais apelativo: pra que mostrar Dalva, a empregada que encontrou Raul morto, entrando no elevador do Edifício Aliança, vinte anos depois, e tendo uma crise de choro? E durante todo o filme, por que intrigas entre os entrevistados, como ao contrapôr opiniões das ex-parceira de Raul, umas sobre as outras? Ou ao dizer a Paulo Coelho que a Sociedade Alternativa ainda o considera um membro? Risível a infalitidade desse tipo de provocação – não por acaso que riso foi primeira resposta do escritor.

Outro ponto negativo: Pedro Bial. Deu a clara impressão que foi imposição da Globo Filmes para aceitar fazer a distribuição. Se acaso foi fã de Raul Seixas, Bial dá ululantes mostras de que não conseguia entender o que ele dizia, e que não se deu ao trabalho de se interar sobre o assunto: disse, por exemplo, que Raul não tentou entrar na indústria cultural, diferentemente dos Tropicalistas, que ele agia por si próprio; poucas cenas depois, Raul diz que faz uma música fácil, pra ser o mais acessível possível. Antes já havia sido informado que ele aceitara assumir um figurino pra satisfazer a gravadora.

De qualquer forma, o filme tem seus pontos positivos, para além do tanto de material recolhido. Creio que o principal é a forma bastante ponderada e natural com que as drogas são tratadas. Paulo Coelho não se arrepende – nem deveria – de ter apresentado as drogas para Raul – que então só conhecia álcool e tabaco. Raul Seixas se acabou por causa de álcool e cocaína. Mas era a mesma cocaína que ajudava-o a se inspirar. Todos ali usaram, apenas ele se deu mal. Poderia ter sido diferente, Raul ter levado de boa e Paulo Coelho se afundado. O detalhe é que o filme desautoriza a creditar unicamente às drogas a decadência do músico: ele foi a exceção à regra na relação com elas, em não conseguir se deixar dominar – e não se trata de uma questão moral, definitivamente, e esse tipo de julgamento o filme tem todo o cuidado para evitar.

Em suma: o filme trabalha para criar uma imagem positiva de Raul, apesar dos seus altos e baixos, e sem distribuir culpas pelos pontos baixos do artista. Raul Seixas, contudo, por tudo o que foi e que fez, merecia um documentário melhor – e material para isso havia.

São Paulo, 21 de abril de 2012.