Quem me conhece sabe que não sou afeito ao politicamente incorreto:
encaro-o como, via de regra, um verniz modernex utilizado como
subterfúgio para ocultar uma inteligência limitada e um moralismo
encruado. Se ficarmos nos exemplos dos humoristas que seguem essa
linha, não lembro de nenhum que, quando chamado a falar sério, se
mostrou digno de respeito por sua inteligência – podem ser
espertos, vivos, mas capacidade de reflexão é algo que passa longe.
Talvez alguém pudesse sugerir o Marcelo Tas, raposa esperta (que oculta muito bem sua
plumagem), mas ele antes coordena seus miquinhos amestrados do que
ele próprio apela para esse tipo humor. Exemplo do moralismo dos
adeptos desse pensamento, dou sempre o mesmo: uma noite, passava em
frente ao teatro Comedians, especializado em stand up comedy,
e havia a tradicional enorme fila de pessoas descoladas que esperavam
para rir de piadas de pretos, pobres, putas, gordos e gays. Estava
havendo ali um forrobodó porque um dos espectadores insistiu em
furar fila. Chamaram a polícia e o homem foi preso. Politicamente
incorreto só com os outros, porque para si o mais tacanho respeito à
ordem.
Nestes tempos de informática, zero
e um, quem não me conhece vai achar que, por não coadunar com o
politicamente incorreto, automaticamente defendo o politicamente
correto. Equivocam-se. O politicamente correto soa como um mar de
boas intenções para o século XXI em uma mentalidade pré-moderna,
que não aceita a diversidade, a alteridade, e nega a democracia mais
radical: aquela fundada no dissenso. Para não dizer que ainda não
conseguiram se adaptar a contento no Estado democrático de direito
– por mais precária e limitada que seja esta forma de organização
da sociedade. Dizer o que pensa deveria ser livre, assim como arcar
com os custos de suas opiniões: como disse Renato Janine Ribeiro em
um dos casos envolvendo o comediante Rafinha Bastos: deixa ele falar, ele que não se faça de vítima depois, que tenha responsabilidade
por aquilo que fala, diante de quem ofende, e responda judicialmente. Parênteses: utilizar de
concessão pública – emissoras de rádio e tv – para divulgar
preconceitos e racismos é outra história, porque aí entra a
anuência do Estado. Fecha. Em entrevista à Folha, a advogada Janaína
Conceição Paschoal traça bem as limitações (intelectuais e de
concepção de mundo) da onda do politicamente correto que vivemos:
enfatizar a prisão, ao invés de penas alternativas, serve para
transformar ladrão de galinhas (ou torturador de galinhas, vá lá,
agora que aprovaram a lei que pune quem maltrata animais com
retenção) em homicida profissional (de gente) [http://bit.ly/2GTxaLc]. Como André
Dahmer, dos Malvados, diz em uma tira: “um sistema penal preocupado
com a segurança das galinhas”.
É no campo semântico que ocorrem
dos mais quixotescos gládios – alguns dos quais, assumo, eu
encampo, ao menos para meu próprio uso. E não só no Brasil. Denys
Arcand em seu filme A idade das trevas
(traduzido horrorosamente como A era da inocência)
retrata o absurdo (e ridículo) do politicamente correto no Canadá.
Isso para não dizer das feministas e sua luta contra o latim.
Foi uma amiga minha, cujo pai é
angolano, que me fez me dar conta do tamanho do preconceito que o
politicamente traz embutido: e traz como pressuposto positivo, e não
como algo a ser combatido. Politicamente correto não diz “negro”
ou “preto” para “pessoas de cor”, e sim “afro-descendentes”
ou “afro-brasileiros”. Como o próprio termo diz, se trata de
pessoas cujos ancestrais vieram da África. Oculta está a idéia de
que tais ancestrais eram necessariamente negros. Vem daí a questão
da minha amiga: ela é filha de um angolano não negro, mas moreno
claro: deixa de ser afro-descendente? Pior se eu lembrar do porteiro
do prédio que eu morava em Ribeirão: era moçambicano, e bem mais
branco do que eu, que sou bem branquelo. Alguém tentando manter a
pureza das boas intenções do termo pode argumentar que antes de
serem africanos, eles têm origem européia: ótimo, voltaremos à
questão de etnia, ligada ao solo, a uma tradição cultural – e só
não falaremos em raça porque é politicamente incorreto. Mas mesmo
a esse há argumentos: o mar Mediterrâneo não banha só a Europa:
na outra margem está a África, a África branca (geralmente
islâmica): Zidane, para ficar apenas num exemplo famoso, é neto de
argelinos, e a Argélia fica na África. Se trata de branquelão
tanto quanto eu. Deixa de ser afro-descendente por não ser negro?
Vão me acusar de má-fé, pois eu
sei bem o que quer dizer afro-descendente, e apenas quero confundir
as coisas. É verdade: abuso da má-fé com o termo e sua acepção
politicamente correta. Acontece que a África não possui só negros,
como não é feita só de savanas com leões e girafas. Nem tudo
está perdido, contudo. Minha mãe deu uma boa sugestão de como
combater esse preconceito dos politicamente corretos sem abandonar o
termo “afro-descendentes”: basta chamar aos que tem origens na
África negra de “afro-negro-descendentes”.
Pato Branco, 19 de junho de 2012.