terça-feira, 19 de junho de 2012

Politicamente correto e preconceituoso

Quem me conhece sabe que não sou afeito ao politicamente incorreto: encaro-o como, via de regra, um verniz modernex utilizado como subterfúgio para ocultar uma inteligência limitada e um moralismo encruado. Se ficarmos nos exemplos dos humoristas que seguem essa linha, não lembro de nenhum que, quando chamado a falar sério, se mostrou digno de respeito por sua inteligência – podem ser espertos, vivos, mas capacidade de reflexão é algo que passa longe. Talvez alguém pudesse sugerir o Marcelo Tas, raposa esperta (que oculta muito bem sua plumagem), mas ele antes coordena seus miquinhos amestrados do que ele próprio apela para esse tipo humor. Exemplo do moralismo dos adeptos desse pensamento, dou sempre o mesmo: uma noite, passava em frente ao teatro Comedians, especializado em stand up comedy, e havia a tradicional enorme fila de pessoas descoladas que esperavam para rir de piadas de pretos, pobres, putas, gordos e gays. Estava havendo ali um forrobodó porque um dos espectadores insistiu em furar fila. Chamaram a polícia e o homem foi preso. Politicamente incorreto só com os outros, porque para si o mais tacanho respeito à ordem.

Nestes tempos de informática, zero e um, quem não me conhece vai achar que, por não coadunar com o politicamente incorreto, automaticamente defendo o politicamente correto. Equivocam-se. O politicamente correto soa como um mar de boas intenções para o século XXI em uma mentalidade pré-moderna, que não aceita a diversidade, a alteridade, e nega a democracia mais radical: aquela fundada no dissenso. Para não dizer que ainda não conseguiram se adaptar a contento no Estado democrático de direito – por mais precária e limitada que seja esta forma de organização da sociedade. Dizer o que pensa deveria ser livre, assim como arcar com os custos de suas opiniões: como disse Renato Janine Ribeiro em um dos casos envolvendo o comediante Rafinha Bastos: deixa ele falar, ele que não se faça de vítima depois, que tenha responsabilidade por aquilo que fala, diante de quem ofende, e responda judicialmente. Parênteses: utilizar de concessão pública – emissoras de rádio e tv – para divulgar preconceitos e racismos é outra história, porque aí entra a anuência do Estado. Fecha. Em entrevista à Folha, a advogada Janaína Conceição Paschoal traça bem as limitações (intelectuais e de concepção de mundo) da onda do politicamente correto que vivemos: enfatizar a prisão, ao invés de penas alternativas, serve para transformar ladrão de galinhas (ou torturador de galinhas, vá lá, agora que aprovaram a lei que pune quem maltrata animais com retenção) em homicida profissional (de gente) [http://bit.ly/2GTxaLc]. Como André Dahmer, dos Malvados, diz em uma tira: “um sistema penal preocupado com a segurança das galinhas”.


É no campo semântico que ocorrem dos mais quixotescos gládios – alguns dos quais, assumo, eu encampo, ao menos para meu próprio uso. E não só no Brasil. Denys Arcand em seu filme A idade das trevas (traduzido horrorosamente como A era da inocência) retrata o absurdo (e ridículo) do politicamente correto no Canadá. Isso para não dizer das feministas e sua luta contra o latim.

Foi uma amiga minha, cujo pai é angolano, que me fez me dar conta do tamanho do preconceito que o politicamente traz embutido: e traz como pressuposto positivo, e não como algo a ser combatido. Politicamente correto não diz “negro” ou “preto” para “pessoas de cor”, e sim “afro-descendentes” ou “afro-brasileiros”. Como o próprio termo diz, se trata de pessoas cujos ancestrais vieram da África. Oculta está a idéia de que tais ancestrais eram necessariamente negros. Vem daí a questão da minha amiga: ela é filha de um angolano não negro, mas moreno claro: deixa de ser afro-descendente? Pior se eu lembrar do porteiro do prédio que eu morava em Ribeirão: era moçambicano, e bem mais branco do que eu, que sou bem branquelo. Alguém tentando manter a pureza das boas intenções do termo pode argumentar que antes de serem africanos, eles têm origem européia: ótimo, voltaremos à questão de etnia, ligada ao solo, a uma tradição cultural – e só não falaremos em raça porque é politicamente incorreto. Mas mesmo a esse há argumentos: o mar Mediterrâneo não banha só a Europa: na outra margem está a África, a África branca (geralmente islâmica): Zidane, para ficar apenas num exemplo famoso, é neto de argelinos, e a Argélia fica na África. Se trata de branquelão tanto quanto eu. Deixa de ser afro-descendente por não ser negro?

Vão me acusar de má-fé, pois eu sei bem o que quer dizer afro-descendente, e apenas quero confundir as coisas. É verdade: abuso da má-fé com o termo e sua acepção politicamente correta. Acontece que a África não possui só negros, como não é feita só de savanas com leões e girafas. Nem tudo está perdido, contudo. Minha mãe deu uma boa sugestão de como combater esse preconceito dos politicamente corretos sem abandonar o termo “afro-descendentes”: basta chamar aos que tem origens na África negra de “afro-negro-descendentes”.


Pato Branco, 19 de junho de 2012.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Uma crônica ou uma guria.

Sexta recebi mensagem de uma amiga, a mesma que me sugeriu uma substituta oriental a Ruth, a balconista: "chochile à tarde que hoje vamos te arranjar uma crônica ou uma guria". Mandou tarde o sms: eu havia combinado de me encontrar com alguns amigos de Ribeirão, e estava já no CCBB, na exposição "Corpos presentes", de Antony Gormley.

Breve parênteses para comentário: a parte interna eu preciso ir de novo, ver com mais calma. A parte externa, espalhada pelo centro da cidade, essa eu já havia visto em outros momentos, e acabei discordando dos meus amigos, talvez por ter começado por elas: aquelas estátuas no alto dos prédios, na interação com a urbe, não me soavam como suicidas – à distância, pareciam eretas e rígidas demais para estarem como hesitando para o salto final –, e sim como vigilantes em postos avançados, nesta cidade super-vigiada, super-protegida (de quem, do que, para quem, são outras questões). Fecha parênteses.

A falta do cochilo não impedia a saída à noite, de qualquer forma. Acontece que depois do CCBB fomos à Galeria Olido, assistir à coreografia "Farmácia", e de lá subimos a rua Augusta. No meio do caminho, recebo nova mensagem da Misson, avisando que está, junto com outros amigos, no mesmo bar da semana passada. Esqueceu que na semana anterior havíamos parado em dois bares: vou para o segundo, já quase na Paulista, estão no primeiro, próximo à região dos inferninhos. Cansado, com a meia molhada desde às três da tarde, voltei pra casa e não me animei em sair, quando depois me ligaram, insistindo.

Isso não significou, contudo, que ela não tivesse me arranjado uma crônica! Apenas que ao invés de qualquer possível acontecimento ou desacontecimento da madrugada, sua própria mensagem me serviu de mote.

Porque notei o quanto estou desacreditado entre meus amigos, por mais que a sorte já tenha sorrido (e eu correspondido, detalhe importante) pra mim este ano – talvez eles sejam daquela teoria do raio que não cai no mesmo lugar duas vezes no mesmo ano. Pois na mensagem de Misson, apesar da sua boa vontade em me ajudar, não dava para fazer a leitura "vamos te arranjar uma guria, mas se não rolar, ao menos terá uma crônica". A frase vinha invertida: "vamos te arranjar uma crônica, quem sabe não consiga até uma guria". Ou seja, o fracasso era dado certo, como a crônica que dele derivaria – mais um sinal de que ando com fama de transformar tudo em texto. Só se algo realmente extraordinário acontecesse eu poderia me arranjar com uma nova Camila, a moreninha da balada – "alguém legal pra me abandonar", como na música do Lobão.

Acabei indo para a balada no dia seguinte, com os amigos de Ribeirão. Havia até uma atraente moça – essa perceptivelmente oriental –, com belas maçãs do rosto (ou bochechuda, como digo), que passei um bom tempo encarando, pra ver se a sorte não sorria para mim de novo. Mal me olhou. Ao menos o som era bom e deu pra dançar. Mas no fim, me restou a crônica, como sempre – e meia boca, ainda por cima. Admito: Ruth me é mais inspiradora.

São Paulo, 14 de junho de 2012.