terça-feira, 2 de outubro de 2012

Leituras diversas

O bom de ser um "anti-fluxista" é pegar trem e metrô vazios, geralmente com lugar para sentar. Desta feita não foi diferente. Voltava pra casa, pouco depois da uma da tarde. Peguei o trem na Estação Celso Daniel. Sentei ao lado de uma mulher que, mal sentara, já sacava da bolsa um livro. A imitei, e tirei da mochila o livro que começara a ler no dia anterior. Na minha frente se sentou uma bela mulher, com um estilo interessante: parecia beirar os trinta, esbelta, saia, meia-calça preta, cabelo laranja, alargador de orelha, piercings, braços cobertos de tatuagens. Não que eu ache que alguém com esse visual seja necessariamente rebelde, mas acredito (ingênuo...) que seja minimamente contestadora e não seja careta (no sentido existencial do termo).

Reparei no livro que a mulher ao lado lia: Ágape, do Padre Marcelo Rossi. Ri da distância de nossas leituras: me acompanhava na viagem História do olho, do Bataille (por sinal, depois de 120 dias de Sodoma, História do Olho soa agradavelmente pueril nas suas demi-escatologias). Antes de começar a leitura, o livro ostentado como a disputar com a pessoa ao meu lado (e o marca-páginas da Casuística aparecendo, claro), reparei uma vez mais na mulher na minha frente. "Fiz alguma moral com ela", pensei, ainda que não esperasse nada além disso: ter feito alguma moral com ela.
 
Segui minha leitura, com um olho no livro, outro na moça. Não demorou muito, a interessante mulher resolveu pegar também um livro. Calmamente tirou da bolsa um grosso livro preto. Interrompi minha leitura para ver o que ela estava lendo, já quase no final. Desacreditei ao ver que era um do Augusto Cury. Contestadora? Não-careta? Senti uma pontinha de decepção, por, muito provavelmente, não ter feito a "alguma moral" imaginada com a senhorita tatuada – o que não quer dizer, em absoluto, que trocaria meu livro pelo dela ou da mulher ao meu lado.
 
No metrô, apesar de não ser preferencial, ofereci meu lugar a uma senhora que entrou. Recusou: "estou bem em pé, e pra quem lê é melhor sentado". Insisti, recusou novamente. Agradeci. E por consideração à simpática senhora, escondi a capa do livro.

São Paulo 02 de outubro de 2012.

sábado, 22 de setembro de 2012

Da palavra ao ato, da margem ao palco: Cecília Meireles por Célia Gouvêa

Em setembro, na quinta Mostra Nômade de Dança, realizada na sede da Companhia Corpos Nômades, assisti a C-E-C-Í-L-I-A, belo espetáculo de Célia Gouvêa, veterana da dança brasileira. Em C-E-C-Í-L-I-A, Célia Gouvêa transporta o universo da escrita, o lirismo de Cecília Meireles, para o palco, para a dança. Eu, agora, tento fazer o caminho inverso, transportar a dança de Célia para a palavra. “Fazer o caminho inverso” não significa retornar, voltar ao ponto original. A linguagem, a arte, têm interstícios mil que fazem com que seus significados se desdobrem para além de uma mera positividade – representações prenhes de sentidos entre os meandros do que não foi dito. Daí que a visão que apresento pode ser diferente de outras, sem que isso implique em erro: não estamos no domínio da veridicção, mas da obra de arte aberta ao diálogo entre artista e público.

O desenrolar do grande rolo de papel em branco, com o que a coreografia começa, sinaliza esse espaço tenso de abertura, fechamento e permeabilidade: delimita-se um dentro e um à margem. Um limite do palco para a dançarina e um limite da dança com a escrita. Também, talvez, um limite à própria escrita. À margem o poema declamado, a palavra em relação com as demais na construção da tessitura do sentido. Dentro, a poesia dançada, a palavra em diálogo com o corpo, o corpo em diálogo com o espaço, e a palavra tendo extrapoladas eventuais sentidos imediatos.

A coreografia tem dois momentos bem distintos. O primeiro, mais breve, se faz à luz de Mulher ao espelho, e dança a não-permanência cantada por Cecília Meireles. 
 
Já fui Margarida e Beatriz.
Já fui Maria e Madalena.” 
 
Se o poema tem um tom melancólico (“só não pude ser como quis”), Célia o reinterpreta de modo leve – com pouco chão e pouco ar –, nos remetendo a um estar no espaço sem a resistência inquebrantável do solo: a água ou o ar: liberdade para se movimentar em toda e qualquer direção, como um pássaro ou um peixe. Mais: liberdade de sermos quem quisermos, escolher nosso próprio nome e traçar nosso próprio destino. Nos convida, em suma, a um lugar para além do nosso dia-a-dia.
O segundo momento tem Confissão a dar-lhe o tom inicial.

Na quermesse da miséria,
fiz tudo o que não devia:
se os outros se riam, ficava séria;
se ficavam sérios, me ria.”

A leveza inicial desaparece: no chão, de joelhos, ou em pé, arqueada, é bem marcado o peso da existência – de si, como pessoa, e de deus, como grande inquisidor. Por um lado, a necessidade de Célia tocar-se seguidamente para se certificar da própria existência – o que é feito com movimentos agressivos, ásperos –, por outro, a exigência de reza e penitências compulsivas.

O palco com poucos elementos e a iluminação sem grandes efeitos produzem, em conjunto com a postura e os movimentos, uma sensação de aridez. Neste ponto, a transposição de Cecília por Célia parece passar por Clarice Lispector, em um clima ao mesmo tempo tenso e delicado, estrangeiro e familiar. Talvez sejam as contradições de uma época em que vínculos são perdidos e não se sabe como ocupar o espaço por eles deixado, em que as emoções surgem confusas e abruptas, e não se sabe qual momento exige delicadeza, qual agressividade, com os sentimentos se derramando em catarata.

E seja arqueada pelo peso de deus, seja arqueada pelo peso da própria existência, tratam-se de dois momentos do mesmo estar em terra estrangeira, independente de ser o solo pátrio: a retirante que hesita o passo, como se houvesse ao retirante a possibilidade da escolha fundamental entre o ficar e o partir.

Aos mudos de nascimento
fui perguntar minha sorte.
E dei minha vida, momento a momento,
por coisas da morte.”
O peso da existência sobre uma terra hostil é também representado no encadeamento de substantivos do Romanceiro da Inconfidência, atirados como pedras. Uma liberdade que ainda precisa de mártires, uma fala que não possui todos os elementos da língua. Existência e incompletude. “Alvarás. Decretos. Cartas.” A vida que se perde entre burocracias exigidas para se viver.

A dança poderia ser apresentada como uma alternativa à linguagem falada, a preencher aquilo que lhe falta, que não se completa no papel em branco. Contudo Célia não se mostra interessada em ser arauto de soluções simplistas, e o peso da coreografia antes ilustra esse vazio, reforça que ele vai além da língua, vai além de um fato pontual: é uma condição do estar contemporâneo.

A apresentação se encerra na ausência: em silêncio, enrolada no papel em branco, braços em cruz.

São Paulo, 22 de setembro de 2012.