segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Discurso fora de tempo

Há incômodos e incômodos que uma obra-de-arte pode causar no seu receptor. Há aquele incômodo que aflige ao sair da sala de espetáculo ou exposição: que mundo é esse que estou vendo, que não é o mesmo que via ao entrar? Às vezes de modo sutil, às vezes em detalhes até então tidos por insignificantes, a obra-de-arte, o espetáculo, nos devolve ao mundo com alguma nova inquietação, com uma nova fissura diante dessa realidade que levamos ordinariamente, no modo automático, para não ter que lidar com os golpes que nos atingem a todo instante. E há aquele incômodo que, ao fim da apresentação, nos faz pensar que alguma coisa no espetáculo está fora da ordem, fora da nova ordem mundial: não altera significativamente nossa percepção do mundo, em que a sucessão dos dias em uma cidade segue com a mesma naturalidade com que Terra gira ao redor do sol. Foi com essa sensação que saí da Galeria Olido, após a apresentação de Angu de Pagu, da Companhia Sansacroma, companhia de dança radicado no extremo sul da capital paulistana. Não que a apresentação seja ruim – pelo contrário – mas no fim o foco acaba ficando na obra.

Ao tratar da vida de Patrícia Galvão, a ativista comunista de meados do século XX, era de se esperar que houvesse um forte componente político na obra. Assim foi. Ora fiquei tentado a achar que a companhia se restringia ao ambiente da época; ora que tentava um diálogo com o presente – a começar pela distribuição do “Manifesto da antropofagia periférica”, do poeta Sérgio Vaz. Se era esse o caso, o uso excessivo da palavra, ainda mais quando se tinha um trabalho corporal de grande expressividade, me causou certo incômodo: o discurso de 1930 trazido para dialogar com 2013 perde muito do seu sentido, por mais que os problemas verbalizados persistam. Ouvir “temos que ir para as ruas” em uma sala de teatro soa o equivalente ao “consuma com consciência” de alguns anúncios publicitários: pode aliviar a consciência de alguns, mas é risível na sua efetividade.

Com a queda do bloco soviético, o discurso hegemônico se impôs com tamanha força que ficou muito difícil opôr a ele um contra-discurso, ainda mais quando esse discurso de oposição foi forjado em outra época, num contexto muito diferente. Ele acaba soando ultrapassado, não importa que as condições de reprodução social sejam, na sua base, as mesmas.

O poder atual autoriza um sem número de falas e atitudes de oposição, à esquerda e à direita. O que ele não tolera é a recusa.

Diante desse poderio, mais efetivo que um contra-discurso parece ser a desconstrução do discurso hegemônico, levá-lo ao extremo, até sua própria contradição. É o que foi feito, por exemplo, pelos Nini, na Espanha: a recusa da lógica do trabalho, negado pela própria sociedade que o defende como único valor: estamos desempregados, iremos nos desocupar juntos em praça pública, ao invés de buscar empregos que não existem e nos culparmos por uma condição que não somos responsáveis. Os saques de Londres, em 2011, também podem ser vistos como a recusa do desejo sempre postergado em favor da realização do consumo aqui e agora: não nos mataremos de trabalhar sonhando um dia em conseguir Apples, Nikes, Nokias para sermos felizes: temos direito à felicidade, e se ela se encontra nesses produtos, seremos felizes já (quem sabe se tivesse havido um segundo momento, esse movimento conseguisse se consolidar como uma contestação política mais efetiva, mas a repressão foi forte). Nestes tristes trópicos, movimentos como o MST, MTST, Rádios livres e congêneres são a recusa do discurso defendido por nossas elites, de que habitamos um país moderno, avançado e integrado – o modo menos “pós-moderno” desses movimentos, reivindicando direitos básicos é prova da nossa modernidade de retaguarda.

Nestes novos tempos, de fim das ideologias – pela vitória da ideologia do pensamento único – não faz sentido, fora do contexto de fábrica, locais de trabalho, grupos reivindicatórios, pregar a união das pessoas: ela se sentem unidas de alguma forma, na sua torcida no Big Brother, nos seus compartilhamentos de “Fora Renan” no Facebook, na sua ojeriza a um ou a todos os partidos políticos: há uma série de opções de falsa união disponibilizadas pelo sistema – apresentando como perigoso todo aquele que não é de um núcleo muito próximo, ou os bodes expiatórios (com ou sem razões) de sempre, com a vantagem de tais opções não exigirem esforços –, o que obscurece a real solidão de cada um defronte a tv, o computador, o palco.

Se tivesse deixado ao público o silêncio que hoje o acomete em sua vidinha classe média (por mais que esperneie em redes sociais e xingue atendentes de mercado), se oferecesse a violência sofrida por Pagu como uma variação da violência que atinge (com poucas variações) moradores da periferia, talvez a Cia Sansacroma tivesse sido mais feliz na sua crítica.

São Paulo, 18 de fevereiro de 2013.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Inusitadices de São Paulo

São Paulo é uma cidade que autoriza uma descoberta nova a cada dia, que seja dos seus personagens urbanos, que seja dos seus bares e restaurantes.

Mês passado um amigo veio me visitar. De meio-dia fomos a um restaurante árabe na cracolândia, bom e barato (não só para os parâmetros de São Paulo), levados por uma amiga de “alma gorda e bolso magro”. À noite, eu e esse amigo fomos dar o rolê básico na Augusta. Quase na Roosevelt encontramos três amigos (dois deles que já figuraram em crônica aqui [j.mp/cGe25712]) num bar. Paramos para conversar. Ficamos um tempo ali, enquanto não decidíamos para onde ir, discutindo quase-amenidades como política, eleições, alternativas de esquerda, próximas cartadas do Lula, isso em meio a prostitutas que passavam (estávamos mais perto dos inferninhos do que dos teatros). Decidido que era hora de ir para outro lugar, um dos amigos propôs a Augusta, os demais preferimos algo fora do nosso habitual. O mesmo amigo partidário da Augusta não aceitou os inferninhos decadentes da Santa Cecília, sugerido pelo amigo lindo (para usar a expressão da crônica de antanho), que nos propôs, então, outro bar, “muito legal”. E lá fomos, o amigo do Garcia, que antes reclamava do preço da cerveja, agora reclamava não iríamos a inferninho algum e, andado cinqüenta metros, passou a reclamar também que teríamos que caminhar. O amigo lindo dizia que era um lugar cheio de mulheres lindas e descompromissadas, loiras, morenas, e uma ruiva no balcão. Pela primeira vez vou à “rive droite” (para dar um ar mais parisienne à crônica) do Viaduto Nove de Julho à noite – nunca tinha me aventurado para além do Estadão. A região é um tanto vazia, moradores de rua dormem sob as marquises, o amigo do Garcia segue reclamando. No Bixiga entramos numa rua completamente deserta. O amigo lindo avisa, é logo ali na frente. Chegamos a um sobrado de esquina. Parece haver pessoas no andar de cima, mal iluminado. A porta está fechada. O amigo lindo assobia, chama por alguém. Desce um homem, abre as portas (além da de ferro, para a rua, havia uma grade antes das escadas). O amigo lindo sobe, ver se podemos entrar. E eu que imaginava que os inferninhos da Santa Cecília que seriam barra pesada. Que lugar é esse que ele está nos trazendo, alguém pergunta. A gente pode subir, avisa o amigo lindo. Eu imagino que logo à entrada vai estar um segurança com uma pistola semi-automática exposta na cintura, que pessoas mal encaradas jogam pôquer em uma mesa – ou fazem uma reunião do “partido” –, e as muitas mulheres lindas já quase não têm mais nariz. Subimos, cumprimentamos os donos à entrada. Bem-vindos. As poucas pessoas que estão no bar nos observam – salvo um casal bêbado que brigava em uma mesa em separado –, cumprimentamos de longe e vamos para uma mesa no fundo. Não há segurança com pistolas, nem membros do partido, nem mulheres sem nariz (praticamente nem mulheres). Em compensação, há bandeiras do MST, do Corinthians, da Palestina, pôsters do Che e outros contestadores, nos guardanapeiros, adesivos de greve; no som, Gilberto Gil. É o Espaço de Cultura Latino-Americana. Um lugar de esquerda com preços de direita – que o amigo revolucionário do grupo compreendeu como necessário para manter as atividades e contribuir para a revolução. De revolucionário que se percebe num primeiro olhar, creio que o fato de não respeitarem a lei anti-fumo. Da minha parte, questiono a validade dessa tese da esquerda dos anos sessenta para os dias de hoje: da festa como local de contestação, mas enfim. Está miado hoje, já é tarde, mas é um lugar legal, se desculpa o amigo lindo. O amigo do Garcia reclama (do preço, da falta de mulheres, de ter caminhado, de ter subido escadas, da música que está tocando). Talvez pelo nosso espírito altamente contestador, exaltado ainda mais pelo lugar, a conversa que era de política e filosofia (os cinco da mesa com formação em filosofia e tendências esquerdistas, apesar do meu amigo revolucionário me achar um tucano direitista por não endossar o sistema representativo democrático liberal, e o amigo de Campinas ter pertencido a um grupo taxado de fascista no IFCH, por se contrapôr numa eleição ao Centro Acadêmico ao PSTU e ao PSOL) quando estávamos próximo aos puteiros, passa a ser de mulheres, em um tom que prefiro não prefiro reproduzir aqui – com um breve intervalo para discussão de ordens arquitetônicas e “ordens arquitetônicas meu cu”, como definiu o amigo do Garcia o neo-clássico brasileiro, mesmo o de antigamente. Ainda que sem emoções fortes, malucas, nóias e coisas do gênero, uma noitada bizarra.

Mais recentemente uma amiga veio me visitar. Fomos à liberdade no domingo, perto das duas da tarde. O passo apressado para escapar da chuva que se prometia forte, e que até então se resumia a esparsos pingos grossos. É aqui, ela anunciou, e adentramos uma portinha que parecia ser de outra das galerias da Liberdade, com o diferencial de ser em uma rua secundária, perpendicular à avenida Liberdade e à rua Galvão Bueno. Na entrada, à esquerda, uma loja de camisetas (a do Godzilla, por exemplo, estava trinta e oito reais). Logo depois, três máquinas de vender bolinhas – dessas que tanto me animavam quando criança e que eram raras e caras (ao menos era o que dizia meus pais). A seguir, um velhinho japonês rabiscava um papel com violência, enquanto explicava – no tom ríspido que o idioma soa àqueles que, como eu, não o compreendem – ao seu cliente o que havia lido em sua mão. Minha amiga – uma “magra de alma gorda”, como ela mesma (com razão) se define – já havia me avisado: é uma portinha, e no fundo abre um salão. Ao atravessarmos esse corredor, finalmente chegávamos ao restaurante. Não deixei de me surpreender, apesar de avisado: não era um salão, antes um enorme galpão, com um baita ar de bandejão da Unicamp: luz fria, mesas coletivas, muito ruído (logo piorado pelo som da chuva forte), um grande buffet, com a cozinha exposta ao lado. No fundo, um japonês, na casa dos quarenta anos, camisa e calça social, dando uma grande impressão de seriedade – de que recém havia saído de algum culto religioso –, tocava blues (estadunidense). Ao menos não havia a coordenadora chata do bandejão pedindo palmas – o público, digo, os clientes eventualmente até aplaudiam. No buffet, várias saladas, sushis adentrando a decadência rococó-pós-moderna do sincretismo geral brasileiro que já se abatera sobre as pizzas, ou seja, sushis com recheios vários e bizarros (nenhum de mortadela, como na cantina do DCE-Unicamp, se bem percebi), peixes grelhados, tempurá, yakissoba e outros pratos quentes, inclusive churrasco. Na mesa ao lado, numa família de negros que parecia saída de uma sitcom americana, a filha mexia os ombros suingadamente ao som da música; na mesa da frente, dois casais – um deles com uma filha na casa dos dez anos –, muito tatuados, braços pescoços peitos, tiravam fotos e mais fotos e mais fotos e mais, da comida do lugar deles, com óculos, sem óculos, fazendo cara de mal, fazendo beicinho, rindo, fazendo vezinho; atrás de mim, minha amiga me sugeriu dar uma olhada, duas senhoras orientais pareciam brincar de estátua, tão pouco e tão lentamente se mexiam – dava quase agonia –; na nossa mesa, um homem oriental muito duro nos gestos, no se sentar, no aplaudir, no comer. Comentei que se a série de pequenos quadros na parede oposta à cozinha fosse substituída pela via crucis, aumentaria o inusitado, mas não soaria tão deslocado assim. E olha que você nem viu a mulher que, não sei se é a dona ou o que, está sempre aqui, uma senhora japonesa de cabelo vermelho. Imaginei uma versão japonesa para Peggy Bundy, do seriado Married with Children. A luz pisca, por causa da chuva, os funcionários (que não são orientais) puxam uma vaia, para aumentar ainda mais o ar de bandejão – não fosse pelo preço, pela comida, pelo público, pelos hashis, pela ausência de pombos. Na comanda, o valor anotado com caneta rosa. Ao contrário da comida japonesa, o churrasco não é muito bom. À noite levei essa amiga e outros dois a um restaurante chinês, que além de ter uma tesoura para cortar o macarrão, oferece ao vivo o show da arte do macarrão.

São Paulo oferece as mais inusitadas artes.

São Paulo, 12 de fevereiro de 2013.