Há incômodos e incômodos que uma obra-de-arte pode causar no seu
receptor. Há aquele incômodo que aflige ao sair da sala de
espetáculo ou exposição: que mundo é esse que estou vendo, que
não é o mesmo que via ao entrar? Às vezes de modo sutil, às vezes
em detalhes até então tidos por insignificantes, a obra-de-arte, o
espetáculo, nos devolve ao mundo com alguma nova inquietação, com
uma nova fissura diante dessa realidade que levamos ordinariamente,
no modo automático, para não ter que lidar com os golpes que nos
atingem a todo instante. E há aquele incômodo que, ao fim da
apresentação, nos faz pensar que alguma coisa no espetáculo está
fora da ordem, fora da nova ordem mundial: não altera
significativamente nossa percepção do mundo, em que a sucessão dos
dias em uma cidade segue com a mesma naturalidade com que Terra gira
ao redor do sol. Foi com essa sensação que saí da Galeria Olido,
após a apresentação de Angu de Pagu,
da Companhia Sansacroma, companhia de dança radicado no extremo sul
da capital paulistana. Não que a apresentação seja ruim – pelo
contrário – mas no fim o foco acaba ficando na obra.
Ao tratar da vida de Patrícia Galvão, a ativista comunista de
meados do século XX, era de se esperar que houvesse um forte
componente político na obra. Assim foi. Ora fiquei tentado a achar
que a companhia se restringia ao ambiente da época; ora que tentava
um diálogo com o presente – a começar pela distribuição do
“Manifesto da antropofagia periférica”, do poeta Sérgio Vaz. Se
era esse o caso, o uso excessivo da palavra, ainda mais quando se
tinha um trabalho corporal de grande expressividade, me causou certo
incômodo: o discurso de 1930 trazido para dialogar com 2013 perde
muito do seu sentido, por mais que os problemas verbalizados
persistam. Ouvir “temos que ir para as ruas” em uma sala de
teatro soa o equivalente ao “consuma com consciência” de alguns
anúncios publicitários: pode aliviar a consciência de alguns, mas
é risível na sua efetividade.
Com a queda do bloco soviético, o discurso hegemônico se impôs com
tamanha força que ficou muito difícil opôr a ele um
contra-discurso, ainda mais quando esse discurso de oposição foi
forjado em outra época, num contexto muito diferente. Ele acaba
soando ultrapassado, não importa que as condições de reprodução
social sejam, na sua base, as mesmas.
O poder atual autoriza um sem número de falas e atitudes de
oposição, à esquerda e à direita. O que ele não tolera é a
recusa.
Diante desse poderio, mais efetivo
que um contra-discurso parece ser a desconstrução do discurso
hegemônico, levá-lo ao extremo, até sua própria contradição. É
o que foi feito, por exemplo, pelos Nini, na Espanha: a recusa da
lógica do trabalho, negado pela própria sociedade que o defende
como único valor: estamos desempregados, iremos nos desocupar juntos
em praça pública, ao invés de buscar empregos que não existem e
nos culparmos por uma condição que não somos responsáveis. Os
saques de Londres, em 2011, também podem ser vistos como a recusa do
desejo sempre postergado em favor da realização do consumo aqui e
agora: não nos mataremos de trabalhar sonhando um dia em conseguir
Apples, Nikes, Nokias para sermos felizes: temos direito à
felicidade, e se ela se encontra nesses produtos, seremos felizes já
(quem sabe se tivesse havido um segundo momento, esse movimento
conseguisse se consolidar como uma contestação política mais
efetiva, mas a repressão foi forte). Nestes tristes trópicos,
movimentos como o MST, MTST, Rádios livres e congêneres são a
recusa do discurso defendido por nossas elites, de que habitamos um
país moderno, avançado e integrado – o modo menos “pós-moderno”
desses movimentos, reivindicando direitos básicos é prova da nossa
modernidade de retaguarda.
Nestes novos tempos, de fim das ideologias – pela vitória da
ideologia do pensamento único – não faz sentido, fora do contexto
de fábrica, locais de trabalho, grupos reivindicatórios, pregar a
união das pessoas: ela se sentem unidas de alguma forma, na sua
torcida no Big Brother, nos seus compartilhamentos de “Fora Renan”
no Facebook, na sua ojeriza a um ou a todos os partidos políticos:
há uma série de opções de falsa união disponibilizadas pelo
sistema – apresentando como perigoso todo aquele que não é de um
núcleo muito próximo, ou os bodes expiatórios (com ou sem razões)
de sempre, com a vantagem de tais opções não exigirem esforços –,
o que obscurece a real solidão de cada um defronte a tv, o
computador, o palco.
Se tivesse deixado ao público o silêncio que hoje o acomete em sua vidinha classe média (por
mais que esperneie em redes sociais e xingue atendentes de mercado),
se oferecesse a violência sofrida por Pagu como uma variação da
violência que atinge (com poucas variações) moradores da
periferia, talvez a Cia Sansacroma tivesse sido mais feliz na sua
crítica.
São Paulo, 18 de fevereiro de 2013.
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