quarta-feira, 19 de março de 2014

Joana C. [retratos feitos de memórias]

Nunca fomos amigos. Fomos colegas alguns anos - não sei precisar quantos. Lembro que por um período não simpatizava com ela, creio antes por brigas entre grupos - fundão contra frentão e vice-versa - do que algo pessoal. Não consigo lembrar quem era do frentão quem era do fundão - porque eu por vários anos fui do fundão, um fundão heterodoxo, que exigia silêncio e tiravas notas boas, mas fundão. Além das antipatias de grupos, achava ela uma guria sem graça fisicamente, mirradinha. Mudei minha opinião ao reencontrá-la, anos depois, quando já não morava em Pato Branco: tinha uns olhos, um olhar muito bonito. Um amigo se surpreendeu que eu nunca tivesse reparado - acho que se embelezou com a idade, foi isso, eis o que respondi. Até ontem, a última notícia que havia tido dela era uma matéria do jornal da cidade, que meus pais guardaram para que eu visse. Falava de Joana despontando como artista, escritora e agitadora cultural em Curitiba. Fiquei contente por ver alguém saído daquela cidadezinha de pequenez classe-média fugindo dos caminhos certos e seguros, tentando agitar uma cidade também classe-média, mas com mais gente. Anotei o blogue ou site que havia na reportagem, planejava visitá-lo e, quem sabe, chamá-la para participar da Casuística, a revista de artes antiartes e heterodoxias que eu agitava. Não entrei em blogue algum nem fiz qualquer convite. A revista acabou (há promessa de uma última edição, a de 2013), desvitalizada com a perda da co-editora e minha melhor amiga (também uma agitadora cultural), a Patrícia Misson, vítima de um ataque cardíaco, aos vinte e oito anos. Descobri ontem que, ainda que a Casuística retorne qualquer dia, não haverá convite algum para Joana: como Misson, ela morreu jovem, quando ainda dava seus primeiros passos (nem por isso pequenos e descartáveis) e ensaiava grandes realizações futuras: parada cardíaca aos trinta e um.

São Paulo, 19 de março de 2014.

segunda-feira, 17 de março de 2014

Quatro histórias a caminho do nada

Quatro cineastas de diversos estilos - o sucesso de bilheteria, o cult, o acadêmico, o amador. Quatro cineastas que, em algum momento, passam a fazer seus filmes a partir de suas vidas - tentam construir uma obra artística, não um produto da indústria cultural. Vidas que influenciam nas obras, obras que influenciam nas obras: o cenário de "Cineastas", do argentino Mariano Pensotti, apresentado no primeiro MITSP, é dividido em dois: na parte de baixo, a vida real; na de cima, o filme realizado por cada um dos cineastas. A divisão é clara e não permite mistura de ficção e realidade, por mais que se queira - a filha de um desaparecido político obrigada a filmar o roteiro de um desaparecido que retorna trinta anos depois não reencontrará seu pai morto; os objetos de um cineasta à beira da morte, uma vez filmados, não correspondem aos objetos em seu contexto. Personagens não descem, vidas reais não sobem. Em baixo a vida, em cima a representação, e a criação de um duplo, o ficcionar a partir do seu quotidiano, faz com que um ficção e realidade se influenciem, porém não se imiscuam.
O cenário de cima - o da ficção - desde o início é nu: precisa ser assim para poder ser composto com elementos de cena, postos e tirados ao sabor dos roteiros e de suas mudanças. O cenário de baixo, por seu turno, começa bastante carregado - mesas, cadeiras, caixas, poltronas, quadros, plantas - e vai se esvaziando conforme os quatro cineastas têm suas vidas abaladas, e junto com elas os filmes que estão rodando. O desnudar do palco pode ser uma alegoria do desnudar de cada um dos cineastas dos penduricalhos de sua vida, em busca do que realmente interessaria - seus ideais, suas origens, seus passados, seus futuros. No fim, cenário do filme e da vida real se equivalem: cenários nus iluminados por luz de serviço. A equivalência entre ambos deixa clara a invasão da ficção na realidade: o cenário nu não releva uma pretensa essência, antes uma verdade: a mentira de tudo, a espetacularização da vida, à moda do cinema. O um dia exemplo de bem sucedido gerente de McDonald's se dá conta de que é um Zé Ninguém facilmente substituível; a filha de desaparecido é obrigada a aceitar que seu pai está mesmo morto; o cineasta que vai até o cinema de sua infância se depara com um culto evangélico - pastiche de rituais de uma época que não existe mais -; a filha adotiva de uma família descendente de russos vai até a Rússia e encontra a vila de seus antepassados exatamente da forma como imaginava, exatamente como há um século, a mesma estrutura das casas, os mesmos rituais... para logo descobrir que é tão-somente um cenário de um seriado de época, e se ver em meio a uma festa eletrônica comemorando o fim das filmagens.
Por quanto entregamos nossos ideais? O quanto deixamos nossos sonhos serem ditados desde fora, por alguma espécie de deus ex-machina - mesmo sabendo da sua existência e do seu funcionamento? Nossa essência desnuda possui algo de nosso - possui algo? "Cineastas" pode ser vista como uma leve comédia para o fim de domingo. Pode ser vista também como um profundo questionamento do vazio de nossas vidas - de nossas vidas vazias -, preenchidas com ficções que não nos dizem nada.

São Paulo, 17 de março de 2014.