terça-feira, 1 de abril de 2014

Os que protestam e os que reprimem

São três e meia da tarde de uma terça-feira. Na avenida Paulista uma manifestação fecha uma das pistas ao reunir um número considerável de pessoas. São agitadas bandeiras que não conheço. Há retratos em preto e branco - parecem fotos da época da ditadura - e a maioria está vestida de vermelho. Imagino que seja protesto lembrando o golpe civil-militar de sessenta e quatro. Uma faixa que consigo ler mais ou menos fala em "ocupar criar". Não é contra a copa, não há black blocs, não há estudantes. As camisetas dos manifestantes me situam: é um protesto do MTST, Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. Ouço depois no rádio que, sim, protestam contra o golpe, entretanto protestam também contra a repressão policial, e reivindicam moradia digna. A Polícia Militar faz a escolta. Não vejo o choque. Tampouco vejo a "tropa do braço". Os soldados não estão com os habituais escudos, utilizados em dias de protestos habituais. Em compensação, estão todos com suas armas letais no coldre - uma diferença bem marcante para os dias de protestos classe-média. Passo pelo corredor polonês de policiais que espreme os manifestantes. Um dos militares me assusta com seu olhar vidrado, sangue nos olhos, a mão na arma, em busca de um inimigo que justifique sacá-la e apontá-la. Ao redor, nenhum sinal de tumulto ou perigo que justifique sua agressividade (ainda que então restrita à simbólica). No mini-carro-de-som uma mulher saúda os manifestantes e cumprimenta polícia militar - ela conhece quem os escolta e que gritos de provocação podem ter conseqüências bem mais pesadas do que nas manifestações contra a copa das pessoas brancas e com teto. Não é só isso que marca a diferença para os protestos-base que agitam o país desde junho e são noticiados com alarde pela imprensa e comentados em profusão nas redes sociais. A pauta é menos genérica, porque aquelas pessoas vestidas de camisetas vermelhas não reivindicam o impossível: elas ainda reclamam o possível e necessário. Uma mulher, filho no colo, comenta com um pedinte: "quero que meus filhos cresçam e sejam alguém na vida". É esse o desejo de fundo, a pauta genérica não explicitada por aqueles que protestam: ser alguém na vida. Porque só é alguém na vida quem trabalha ou, preferencialmente, quem possui dinheiro. O protesto que presencio não é por mudanças profundas, é por inclusão - e isso dá uma idéia do tamanho do nosso atraso. Para quem é sub-cidadão, cidadão de terceira classe, entrar no sistema produtivo, ser explorado, é um avanço na sua condição social - só pode gritar contra o trabalho quem tem emprego ou quem não necessita, por alguma feliz fortuna da vida. Mesmo assim a maioria chancela esse sistema que a suga e pouco lhe devolve. E é por isso que reivindicam os trabalhadores sem-teto e tantos outros movimentos de excluídos: serem chancelados por esse sistema que as exclui; ser alguém na vida, ter um emprego que os explore e os faça útil (sic) à sociedade; uma moradia que não custe caro e horas em trens e ônibus hiperlotados até o trabalho; algumas migalhas de direitos que a classe-média-demófoba vê como reivindicação de privilégios: saúde, educação, segurança pública de qualidade. Sim, porque aquelas pessoas de vermelho também reivindicam segurança - mas segurança de verdade, que a solução habitual brasileira, a de atirar antes, perguntar depois, só lhes traz mais insegurança. Em meio às camisetas do MTST passam três pessoas também de vermelho - porém no peito está estampada a logomarca de um banco. São alguém na vida, esses três. Ao menos assim diz a sociedade, assim devem se sentir, diante daqueles que protestam. São cidadãos de segunda classe - quem sabe tenham até férias. A miséria de vida que compartilham com os sem-teto é a mesma. A mesma miséria dos policiais militares que fazem a escolta, uns com cara de tédio, outros com olhar de raiva. O militar com a mão na arma sabe que seu emprego não lhe garante realmente ser alguém na vida. Sua vida a serviço do Estado o torna um respeitável homem de bem de segunda classe, pronto para ser humilhado pelos homens de bem de primeira classe, no primeiro deslize que cometam contra alguém de cima e não de baixo. E os de baixo - esses cidadãos de terceira classe que protestam - estão tão perto que a raiva que ele traz no olhar talvez seja para encobrir a descoberta terrificante de ser um deles. A mão na arma serve para lembrá-lo da sua insignificante superioridade. 
O protesto corre pacífico, noticiam no rádio.

São Paulo, 01 de abril de 2014.

domingo, 30 de março de 2014

Da tensão ao tédio: "Colônia Penal", de Sandro Borelli e Cia Carne Agonizante.

No fundo do palco, à esquerda, cinco pessoas à mesa comem, bebem e conversam. São dois homens, duas mulheres e um boneco na ponta da mesa, todos muito masculinos em seus ternos. No centro do palco, um ventilador com três grandes pás projeta sua sombra intermitente. Entra outro bailarino, vestido de camiseta vermelha e moletom. Há um clima de tensão. Um dos homens da mesa se levanta e vai até ele. Entre agressões diretas, agressões à distância - em que o bailarino segue comandos de mão - e sugestões de violência sexual, em cinco minutos o espetáculo diz tudo o que tem a dizer. O que resta são pequenas variações em cima do mesmo - tautologias do óbvio. Resultado: o tédio - e a tortura do espectador por mais de uma hora diante de um som alto de teclas de piano sendo violentadas. Falo do espetáculo "Colônia Penal", do coreógrafo Sandro Borelli e da Cia Carne Agonizante.
Fui assisti-lo sem me inteirar sobre o que versava exatamente. O cartaz no CCSP fazia referência aos cinqüenta anos do golpe civil-militar de sessenta e quatro. O nome me aludiu imediatamente ao homônimo conto de Kafka. Ao ver o panfleto de apresentação, isso estava explícito: "da obra de Franz Kafka". A leitura do conto demonstrada na apresentação, contudo, é bastante precária, para dizer o mínimo: "O escritor Checo faz uma análise crítica sobre o instituto da pena, analisando os seus limites, a sinistra imposição de penas baseadas em castigos corporais pelo Estado e ilustra com clareza e precisão as barbáries que constituíam as técnicas medievais na aplicação desses castigos punitivos. É uma crítica aberta aos regimes despóticos nos quais o processo judicial e o direito de liberdade são subjulgados". Quase "Kafka um acadêmico da história das ditaduras" (para não falar na confusão de pena, Estado, Idade Média), ao invés de um artista desnudador das burocracias democráticas de direito. Por sorte a coreografia não segue esse mesmo caminho, tem um clima que remete à ditadura brasileira da segunda metade do século vinte.
Retomo a primeira cena. Estão os cinco à mesa - ponto alto do espetáculo -, chega o jovem de moletom. Um dos homens se levanta e começa a sessão de tortura, inicialmente com gestos que conduzem o torturado de longe, depois com contatos corporais, chegando a simulações de violência sexual - que não soam tão violentas assim, visto que o bailarino se põe de novo na posição inicial, como um cão de Pavlov acostumado aos choques. O bailarino não é inerte, porém de uma passividade que o deixa pouco acima da inércia. As agressões às vezes parecem fazer alusão a torturas, ao pau-de-arara, por exemplo; no geral parece que estamos diante de uma sessão de sado-masoquismo soft - cuja regra primeira é que toda prática seja "sã, consensual e segura". No meio do duo há tempo para o homem tirar o paletó, comer um pedaço de pão, antes de voltar à tortura. Os demais quatro seguem à mesa, comendo, bebendo, fumando e conversando, indiferentes ao que acontece ao lado.
Se após os vinte longos e cansativos minutos do primeiro duo engravatado-jovem de moletom a coreografia se encerrasse, eu diria que é uma dança boa, que abre questionamentos, uma série de interpretações: poderia ser a tortura acontecendo no porão das pessoas de bem que jantam despreocupadamente - e não porque não saibam, mas porque não se importam, mesmo -; poderia ser a tortura psicológica das classes superiores às classes subalternas; poderia ser uma alusão à educação: o jovem que se acerca à mesa sem a toalete e a etiqueta do momento, que vai aprendê-la no corpo, a respeitar a hierarquia, a obedecer, a ser passivo, a se submeter. Contudo, a repetição da cena um outras três vezes - com variações insignificantes - acaba com qualquer potência da obra: bem dizia Debord que o tédio é inimigo da revolução - eu diria que é também do questionamento.
Parece que Borelli tinha preocupações com o tempo de duração de sua coreografia - como se espetáculo bom fosse espetáculo longo -, mesmo que tivesse pouco, muito pouco a dizer (admito: antes isso que falar as abobrinhas do texto de apresentação). É no que ele peca: é demasiado sintético no que tem a dizer, excessivamente prolixo no dizê-lo. Pecado mortal, "Colônia Penal" é tortura para o espectador.

São Paulo, 30 de março de 2014.