No fundo do palco, à esquerda,
cinco pessoas à mesa comem, bebem e conversam. São dois homens,
duas mulheres e um boneco na ponta da mesa, todos muito masculinos em
seus ternos. No centro do palco, um ventilador com três grandes pás
projeta sua sombra intermitente. Entra outro bailarino, vestido de
camiseta vermelha e moletom. Há um clima de tensão. Um dos homens
da mesa se levanta e vai até ele. Entre agressões diretas,
agressões à distância - em que o bailarino segue comandos de mão
- e sugestões de violência sexual, em cinco minutos o espetáculo
diz tudo o que tem a dizer. O que resta são pequenas variações em
cima do mesmo - tautologias do óbvio. Resultado: o tédio - e a
tortura do espectador por mais de uma hora diante de um som alto de
teclas de piano sendo violentadas. Falo do espetáculo "Colônia
Penal", do coreógrafo Sandro Borelli e da Cia Carne Agonizante.
Fui assisti-lo sem me inteirar
sobre o que versava exatamente. O cartaz no CCSP fazia referência
aos cinqüenta anos do golpe civil-militar de sessenta e quatro. O
nome me aludiu imediatamente ao homônimo conto de Kafka. Ao ver o
panfleto de apresentação, isso estava explícito: "da obra de
Franz Kafka". A leitura do conto demonstrada na apresentação,
contudo, é bastante precária, para dizer o mínimo: "O
escritor Checo faz uma análise crítica sobre o instituto da pena,
analisando os seus limites, a sinistra imposição de penas baseadas
em castigos corporais pelo Estado e ilustra com clareza e precisão
as barbáries que constituíam as técnicas medievais na aplicação
desses castigos punitivos. É uma crítica aberta aos regimes
despóticos nos quais o processo judicial e o direito de liberdade
são subjulgados". Quase "Kafka um acadêmico da história
das ditaduras" (para não falar na confusão de pena, Estado,
Idade Média), ao invés de um artista desnudador das burocracias
democráticas de direito. Por sorte a coreografia não segue esse
mesmo caminho, tem um clima que remete à ditadura brasileira da
segunda metade do século vinte.
Retomo a primeira cena. Estão os
cinco à mesa - ponto alto do espetáculo -, chega o jovem de
moletom. Um dos homens se levanta e começa a sessão de tortura,
inicialmente com gestos que conduzem o torturado de longe, depois com
contatos corporais, chegando a simulações de violência sexual -
que não soam tão violentas assim, visto que o bailarino se põe de
novo na posição inicial, como um cão de Pavlov acostumado aos
choques. O bailarino não é inerte, porém de uma passividade que o
deixa pouco acima da inércia. As agressões às vezes parecem fazer
alusão a torturas, ao pau-de-arara, por exemplo; no geral parece que
estamos diante de uma sessão de sado-masoquismo soft - cuja regra
primeira é que toda prática seja "sã, consensual e segura".
No meio do duo há tempo para o homem tirar o paletó, comer um
pedaço de pão, antes de voltar à tortura. Os demais quatro seguem
à mesa, comendo, bebendo, fumando e conversando, indiferentes ao que
acontece ao lado.
Se após os vinte longos e
cansativos minutos do primeiro duo engravatado-jovem de moletom a
coreografia se encerrasse, eu diria que é uma dança boa, que abre
questionamentos, uma série de interpretações: poderia ser a
tortura acontecendo no porão das pessoas de bem que jantam
despreocupadamente - e não porque não saibam, mas porque não se
importam, mesmo -; poderia ser a tortura psicológica das classes
superiores às classes subalternas; poderia ser uma alusão à
educação: o jovem que se acerca à mesa sem a toalete e a etiqueta
do momento, que vai aprendê-la no corpo, a respeitar a hierarquia, a
obedecer, a ser passivo, a se submeter. Contudo, a repetição da
cena um outras três vezes - com variações insignificantes - acaba
com qualquer potência da obra: bem dizia Debord que o tédio é
inimigo da revolução - eu diria que é também do questionamento.
Parece que Borelli tinha
preocupações com o tempo de duração de sua coreografia - como se
espetáculo bom fosse espetáculo longo -, mesmo que tivesse pouco,
muito pouco a dizer (admito: antes isso que falar as abobrinhas do
texto de apresentação). É no que ele peca: é demasiado sintético
no que tem a dizer, excessivamente prolixo no dizê-lo. Pecado
mortal, "Colônia Penal" é tortura para o espectador.
São Paulo, 30 de março de 2014.
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