terça-feira, 16 de setembro de 2014

Apenas outro momento da intifada brasileira.


Início da noite, me encaminho para a avenida São João, ao trecho que freqüento ao menos uma vez por semana, onde fica a Galeria Olido, um dos palcos da dança paulistana. Ficara sabendo do ataque militar - amparado pela justiça - aos trabalhadores sem teto no meio da tarde. Praticamente uma quadra antes da São João, na Ipiranga, carros dos bombeiros e da polícia ocupam a pista da esquerda. Alguns militares têm armas em punho, de guarda para abater algum maluco suicida que resolva atacar a tropa. Outros estão em rodas, como se fosse intervalo de trabalho, conversam, fumam e gargalham. A banalização do mal me vem à mente. Dou uma de joão sem braço e tento entrar na São João. "Está interditado, não está vendo?", fala um guarda, arma em punho. Obedeço e atravesso a rua. Havia visto imagens na tevê e fotos na internet. Justiça, reintegração de posse, ataque de objetos por parte dos sem-teto, revide da polícia militar - o roteiro é banal nestes tristes trópicos, tal como a cobertura da Grande Imprensa seguir a linha da polícia militar pacífica se defendendo de uma turba violenta. Era esse o discurso inicial sobre as manifestações do Passe Livre, ano passado - banderneiros, violentos, vagabundos. E onde estão aqueles milhares de homens-gado e mulheres-vaca a gritar "sem violência" e pedir mudanças? Ou o fato da PM não ter agredido aquela massa de chimpanzés mal-adestrados que gritavam "sem violência" é prova de que os sem-teto fizeram por merecer? Lembro dos manifestantes - "manifestantes" - vestidos com as cores do Brasil, tirando foto com os militares. Esse pessoal não veio para a São João, aqui estão só os chatos e os jornalistas. As imagens de mais essa intifada tupiniquim me dão mais que raiva, me dão vergonha: aqueles pobres-coitados fardados agem em meu nome. Não têm meu respaldo, mas têm o da maioria da população de São Paulo, que elege Maluf (estupra mas não mata), Alckmin (quem não reagiu está vivo), Aloysio (pela redução da minoridade penal, enquanto crimes de bilhões de reais são ocultados pelo seu partido), Serra (higienização social do centro de São Paulo) e tantos outros violadores dos direitos humanos, criminosos lesa-humanidade. Quando era ocupado por prédios abandonados, esperando valorização, e moradores abandonados à própria sorte pelo poder público, o centro era tido por um lugar sem vida, apesar da profusão de línguas, culturas, cores e sabores que o marcavam. Agora que pululam empreendimentos imobiliários e dinheiro floresce onde antes era quase um aterro social, as pessoas que nunca deixaram o centro morrer são tirados a bomba e balas de borracha para "revitalizar" com a vida de quem tem direito de viver. Na internet, fotos da depredação dos sem-teto: curiosamente, em mais de três anos que freqüento aquele local, à noite, com aquela e outras ocupações, nunca tive problema algum, nunca presenciei cenas de violência, que não a de seguranças privados e policiais militares. Dizem que a diplomacia é a guerra por outros meios, no Brasil, a justiça é a violência por seus próprios meios: que língua tão incompreensível falavam aquelas muitas famílias que não foi possível dialogar, negociar com elas? Por que a elas o único diálogo legítimo é o de obedecer as ordens dadas pela justiça, para favorecimento de um, em detrimento de muitos, em detrimento da cidade? Isso é diálogo? Resolver problemas na base da porrada é democrático? Os cinqüenta mil assassinatos por ano, as agressões gratuitas, por coisas pequenas, mesquinhas, insignificantes, a violência simbólica disseminada de alto a baixo da sociedade, tudo isso nos veio em mais uma epifania neste dia dezesseis de setembro, no centro de São Paulo. Vêm os carros do choque, já cumprida sua missão de garantir a propriedade. Reproduzo um gesto que os governantes do Estado mais rico da nação e seus eleitores fazem inconscientemente em suas salas de estar (e nas seções de votação): levanto o braço direito, em saudação nazista. Os carros passam, talvez por sequer entenderem o significado do meu gesto, talvez por não terem visto, talvez por estarem ocupados segurando suas armas, nenhum soldado me saúda de volta - assim como nenhum parece ter se sentido ofendido.

São Paulo, 16 de setembro de 2014.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

O destino manifesto de José Serra: fundar e afundar o PSDB

Se de início não empolgava, a candidatura do tucano Aécio Neves agora definha - graças à entrada de Marina Silva na corrida eleitoral. Não creio que Aécio possa já ser excluído do segundo turno, porém é uma tarefa cada vez mais árdua, dificultada por cálculos estratégicos do PSDB, preocupado em não queimar pontes com a candidata da providência divina. Estar nessa situação incômoda - alguns analistas apontam a possibilidade do PSDB se tornar um partido médio no congresso após estas eleições - não deve ser posto na conta do mineiro, pelo contrário, ele corre o risco de pagar pelos erros alheios. Erros da cúpula do PSDB ao aceitar a candidatura de José Serra, em 2010. Tivesse disputado a presidência há quatro anos, como era seu intuito, Aécio seria conhecido nacionalmente e estaria próximo do patamar de votos de Marina. Isso para não falar na guinada à direita mais reacionária dada por Serra (em direção a Alckmin, é verdade, mas até então essa direção era mais aflorada no PSDB paulista e escamoteada no nacional), reforçada por Aloysio Nunes no senado federal - um desserviço não apenas para o partido como para o país.
Ocorre que o PSDB parece ser, diferentemente do PT, um partido que não aprende com seus erros. Deu a legenda para que Serra disputasse a prefeitura paulistana em 2012 e agora a vaga no senado.
Serra tem chances de vencer a disputa contra Suplicy: pesquisas dão empate técnico entre os dois - se é que pesquisas valem algo, em 2010 Aloysio Nunes teve um milhão de votos a mais do que apontavam as pesquisas -, e o tucano conta com a candidatura de aluguel de seu pupilo político, Kassab - que até então eu não entendia por que estava disputando o senado e não a câmara, muito mais importante para o futuro de seu partido. Ouço a vinheta do PSD: pergunta se o eleitor lembra de algum projeto de Suplicy voltado para São Paulo. Pergunta capciosa - eu mesmo não lembro, e olha que sou costumaz ouvinte da Voz do Brasil. Mas logo me dou conta: também não lembro de nenhum da Marta ou do Aloysio. Assim como não lembro de projetos para o Paraná propostos por Roberto Requião, Álvaro Dias ou Gleisi Hoffman. Pouco depois vem a propaganda de Serra, prometendo defender a grandeza de São Paulo no senado federal - só faltou a música do Ira! "Pobre São Paulo" como trilha sonora. O mais alarmante: seu discurso claramente fascistóide, de orgulho varonil do solo, encontra eco na população paulista - ao que tudo indica, principalmente numa classe média remediada e ignara (apesar de seu diploma da USP ou da PUC) e desiludida por não conseguir alcançar a parte rica da Belíndia, tendo que conviver com a rafuagem ascendente, seus iguais só que mais pobres (de grana): e se o Nordeste alcançar São Paulo?
Se vencer a disputa pelo senado, não me surpreenderia Serra insistir no seu destino manifesto de ser presidente do Brasil e concorrer em 2018. Entretanto, se perder, o estrago para o PSDB pode ser enorme - aí sim eu poria o PSDB sob forte risco de se tornar uma legenda média, se tiver sorte. A cada eleição majoritária que Serra concorre, portas são fechadas a possíveis novos nomes do partido. Se a disputa em 2010 tem custado a deste ano, a de 2012 custará a de 2016 e já dá para vislumbrar a conta destas eleições em 2018: supondo que Alckmin se reeleja, mais provável que ele dispute uma vaga no senado, junto com Aloysio, ou a presidência da República, se Aécio sair queimado e Serra não conseguir, outra vez, a vaga. Que outro nome de projeção estadual tem o PSDB para disputar o executivo? O campineiro Carlos Sampaio, que não ganha nem a prefeitura da cidade? O Matarazzinho, envolvido nos casos de corrupção do Metrô e da CTPM? Serra de novo? A disputa pela prefeitura de São Paulo, em 2016, seria a saída para fazer um novo nome para disputar o estado dois anos depois - porém esse nome teria mais força somente para 2022.
Quem me conhece sabe que não tenho qualquer simpatia com o PSDB, mas tampouco encampo o anti-tucanismo visceral. O que lamento é a guinada ao reacionarismo udenitsta dada pelo PSDB de São Paulo, especialmente por Serra, em 2010 (de onde a míngua do partido ser positiva), e a ausência - temporária, creio, espero, porém por quanto tempo? - de um interlocutor de peso com o PT federal. A incompetência do PSDB em defenestrar Serra pode custar mais do que ao partido: à própria democracia liberal burguesa tupiniquim.

São Paulo, 09 de setembro de 2014.