sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Buenos Aires Paradiso



Faz muito tempo que assisti ao filme Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore. Tanto tempo faz que não sei se as imagens que recordo do filme são realmente dele, ou são de minhas vivências desde então, confundidas nos confusos cafundós da minha memória. Se não me equivoco, a viagem do protagonista à cidade natal, para o enterro do antigo funcionário responsável pelas projeções do cinema local, é mais do que uma viagem no espaço: se dá antes no tempo. E na cidade, ele ainda pode assistir à demolição do seu passado, o cinema Paradiso.
É com a impressão de que farei uma viagem no tempo mais que no espaço que arrumei a mala para a semana que passarei em Buenos Aires.
Fui a primeira vez à cidade em mil novecentos e noventa e nove, no ápice da crise pós fim do plano Real, dólar a dois e pouco para um, peso a um para um. A Argentina ainda era modelo de sucesso para Mirians Leitões da vida. Eu era um adolescente com a cara cheia de espinhas, aparelho nos dentes e vasta cabeleira a me preencher a cabeça. Era minha primeira viagem para o exterior e Buenos Aires não era exatamente meu desejo: planejara de início a Escócia (e olha que na época eu não conhecia Mogwai e Belle and Sebastian), mudara a rota para Brisbane, Austrália, e acabara não saindo do cone sul da América do Sul. Havia um pouco de decepção, é certo, que foi superada pelo encanto portenho: eu, um caipira de Pato Branco, que havia ido três ou quatro vezes a São Paulo e morria de medo da cidade grande (e da pequena também), pude descobrir o prazer de flanar anônimo e a esmo. Por três semanas bati perna pelo centro expandido e alguns locais mais distantes (como a San Isidro da guia do curso de espanhol, Mariana), tirando fotos feito um turista japonês. Ao voltar ao Brasil, Buenos Aires se tornara minha Pasárgada - ainda que eu não fosse amigo do rei.
Voltei à cidade em dois mil e seis, quando meu irmão ganhou de aniversário uma viagem de mochilão até a Patagônia e eu fui junto como guia e intérprete - era também a primeira viagem dele ao exterior (Ciudad del Este, Puerto Iguazu e Bernardo de Irigoyen não contam). Abatida pela crise, a cidade ganhava ar de América do Sul, naquilo que, infelizmente, há de negativo no subcontinente: pedintes nas ruas, crianças cheirando cola, prostitutas se oferecendo a turistas. Apesar dos pesares (que, sete anos antes, não eram inexistentes, mas permaneciam longe das vistas dos turistas, do lado de lá da ponte da Boca), Buenos Aires seguia como minha Pasárgada: já visitara cidades no velho mundo, como Barcelona e Lisboa, que me encantaram também, porém não tanto.
E agora, me pergunto enquanto soco cinco camisetas, uma toalha e um chinelo na mochila, que será dessa viagem? Que 'eu' encontrarei lá, perdido na avenida General Las Heras, a andar e andar pela cidade? Há quase três anos Buenos Aires perdeu o posto de Pasárgada: desde que me mudei para São Paulo passei a amar esta cidade insana, de violência simbólica intensa, e não tenho vontade de morar em outro lugar - ao menos dentre as cidades que já passei: guardo em algum canto vontade de morar em uma Nova Iorque ou Tóquio imaginada de minhas leituras. Há um receio nesse reecontro, reconheço, um medo de descobrir algo que perdi e não notara. Assim mesmo deixo tudo preparado para não perder o vôo.

São Paulo, 21 de novembro de 2014

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Cria cuervos (sobre a expulsão do repórter do CQC de uma manifestação)

Assisto ao vídeo da expulsão do repórter do CQC da manifestação contra o PT e a Dilma, e a favor da ditadura militar, dia quinze de novembro, na Avenida Paulista. O manifestante que gravava a cena tece comentários ao fim da ação anti-mídia: "achei é que foi pouco". E foi mesmo. Não que merecesse mais - ou mesmo isso -, mas para quem viu o cortejo das esquerdas na última manifestação chamada pelo Movimento Passe Livre em junho de 2013, atacadas verbal e fisicamente por hordas de extremistas, achou a tal gritaria dos viúvos e das viúvas da ditadura nível iniciante: uns gritos, dedos em riste e a expulsão, sem ameaça séria ao repórter, que sequer precisou da ação dos policiais (que estavam do lado!) para conter o magote histérico. 
Como não sou jornalista não sou afetado pelo corporativismo (como atinge mesmo a excelentes nomes, como Paulo Nogueira), e tento evitar dois pesos duas medidas: por isso não condeno a ação contra o humorista. Já vi em greve da Unicamp, repórter da Folha de São Paulo tirar foto de papéis de divulgação publicitária, atirados por alunos numa ocupação da reitoria, para noticiar a perda de documentos importantes da instituição: se for para noticiar mentira (falo de fatos falsos, não se trata sequer de uma visão parcial), defendo que movimentos barrem a imprensa. Que a imprensa não se satisfaça com esse tratamento (por mais que muitas vezes mereça), acho do direito dela, e faz todo sentido não acatar cerceamentos - apesar de quando a polícia militar a impede de trabalhar, como no cerco aos manifestantes no hotel Linson, na Augusta, a Grande Imprensa no máximo solta uma nota de rodapé de pesar.
No caso dos manifestantes anti-PT e pró-militares de sábado, vale lembrar, antes de tudo, que o tal repórter é, antes de mais nada, um humorista, e o programa do qual participa tem como um dos seus expedientes principais, avacalhar com aquilo que estão acompanhando (eu ia dizer ironizar, mas para usar ironia é preciso um pouco de sofisticação intelectual e educação, algo que Marcelo Tas e seus pupilos, se possuem, não gostam de usar). Por mais boçais que sejam - talvez justo por isso -, os manifestantes na Paulista querem ser levados a sérios: o que esperavam que os manifestantes fizessem com quem chega para avacalhar em rede nacional com seu protesto? Que o receba com pompas de ser iluminado, só porque tem uma credencial de jornalista (se é que tem) e é acompanhando por um câmera? A situação é um pouco diferente no caso do repórter do Diário do Centro do Mundo, que cobria com intuito sério a manifestação - porém aqui trago o exemplo que vivi na Unicamp: se os manifestantes achavam que ele noticiaria inverdades, deveriam deixá-lo atuar, só porque jornalista se crê intocável? Jornalismo é uma profissão de risco, a depender de que linha o jornalista decidir seguir. Ser impedido de exercer seu trabalho por parte de um grupo de pessoas é um desses riscos, e isso não significa, necessariamente, cercear a liberdade de expressão - pode vir a ser, por exemplo, num caso de ameaças prévias ou agressões sistemáticas.
Aqui concordo, ainda que por um caminho diferente, com a análise de Paulo Nogueira, do DCM: a imprensa está criando seus próprios corvos. Pela sua incitação ao ódio, mas também pelo uso sistemático da mentira, ou da "desinformação", como preferem os mais pudicos. A recusa em contribuir, ou mesmo compactuar, com a imprensa se dá porque a população tem percebido - ainda que inconscientemente - que a imprensa não está ali para relatar os fatos, e sim para distorcê-los ao sabor dos seus interesses. E isso traz uma questão muito mais assustadora do que expulsão de jornalistas por extremistas: uma questão que atinge a população média, em tese longe de extremismos. Tratarei em uma próxima crônica.

São Paulo, 20 de novembro de 2014.