segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Entre cobras piercings e o nada

Encontrei o livro numa dessas queimas de estoque da velha ortografia, livros por dez reais, que pipocam em São Paulo. Não tinha qualquer referência da autora, e a editora - Geração Editorial - tampouco ajudava. Na quarta capa, o aviso de "um best-seller internacional eletrizante" piorava ainda mais a situação. Resolvi arriscar a compra ao ler na orelha que Cobras e piercings, da japonesa Hitomi Kanehara (uma bonita rapariga, por sinal), havia ganho o prêmio Akutagawa.
Cobras e piercings chega a ser perturbador, até mesmo a quem já encarou 120 dias de Sodoma, do Marques de Sade - me parece difícil conseguir passar incólume ao fim da leitura: algo cutuca.
Escrito aos dezenove anos, o livro me fez lembrar do primeiro romance do gaúcho Daniel Galera, Até o dia em que o cão morreu. Duas histórias adolescentes - a do brasileiro extremamente banal -, que retratam uma geração sob a égide de Thanatos: o vazio da vida, a falta de sentido, a pulsão de morte, o desejo do nada.
Lui, a personagem principal, dezenove anos, poderia ter uma vida confortável, não tem problemas familiares, seu estilo é o de patricinha - apesar de recusar o rótulo -, mas abandona tudo por... por nada, para nada. Por fastio e tédio vai viver no underground japonês, em meio a adolescentes cujo visual agressivo esconde insegurança e desejo de carinho, de colo, em que assassinatos podem acontecer sem maiores remorsos. Ela se interessa por um rapaz antes por sua língua bifurcada, e passa a ter o desejo de uma língua igual - depois acrescida do desejo de uma tatuagem de um kirin - como objetivo de vida. Parte do seu relato é marcado pelo aumento no tamanho dos alargadores da língua. Vai viver junto com o rapaz, que a sustenta, e sua vida ganha alguma estabilidade - o que implica que ela não precisa se prostituir para sobreviver e pode beber o dia todo, todo dia. Tanto a ampliação do furo na língua como a tatuagem, percebe-se a certa altura, não são exatamente o que Lui busca: seu desejo é antes de tudo pelo reconhecimento do Outro - é a exclamação de admiração das pessoas próximas. Contudo, parece viver em uma época em que só conhece relação entre sujeito e objeto, não entre dois sujeitos. E dessa relação sujeito-objeto (senhor-escravo), ela exerce seu caprichos sobre seu namorado, enquanto se submete em um relacionamento sadomasoquista com seu tatuador. O alheamento sobre o outro é tamanho - seu interesse parece ser unicamente que Ama e Shiba a legitimem enquanto ser vivo -, que ela sequer sabe o nome verdadeiro de seu namorado e seu amante. A protagonista admite que suas "idéias e valores se situam no mesmo nível das de um símio", sem que isso a perturbe, sem que mereça um segundo momento de reflexão. No seu caso com o tatuador sádico, reconhece que "só podia perceber que continuava viva quando sentia dor" - dor essa que excitava ambos -, e que seu "desejo sexual se parecia com o cão das experiências de Pavlov" - reflexos condicionados, sem desejo autônomo. O tédio que a leva ao submundo, a leva também ao tatuador sádico, e acaba por dominar também sua vida nesse submundo: o tédio não advém da vida certa e regrada, não advém da vida louca e sem limites, o tédio é uma constante da qual ela foge, comprometendo seu futuro em nome de nenhum presente, seu desejo é o de morte, não porque odeia a vida, mas porque não vê sentido em continuar viva - ocorre que tampouco vê sentido em morrer.
Para além do enredo de assassinatos e sadomasoquismo, Kanehara retrata a minha geração e a seguinte, que vive entre piercings, tatuagens, auto-mutilações - do corpo, de ações, de sonhos, do futuro -, e a fuga do nada que a atrai.


São Paulo, 08 de dezembro de 2014.

domingo, 7 de dezembro de 2014

K-popers no CCSP

Passando pelo Centro Cultural São Paulo ouço gritos histéricos vindos da sala Adoniran Barbosa. Dão a impressão de haver ou um astro pop a la Michael Jackson, Beatles, ou uma gincana de colégio muito empolgante e disputada. Na entrada da sala, um cartaz me diz que é algo nesse meio termo: "K-Pop Tournament", torneio de danças cover de bandas e cantores e cantoras pop da Coréia do Sul. Não sei muito detalhes, se é monopólio como a brasileira, ou olipólio, sei que Coréia do Sul possui uma forte indústria cultural, com novelas com ótimo nível técnico exportadas para os países vizinhos, e uma série de boys e girls bands e artistas solos que cantam um pop super redondo, com clipes e coreografias que impressionam pelo rigor - e, a exemplo de Nova Iorque, essa indústria cultural forte acaba por criar uma cena independente interessante. O CCSP é um lugar que reúne pré-adolescentes e adolescentes empolgados com bandas de k-pop: diariamente é possível ver grupos ensaiando, e aos finais de semana é impossível não vê-los. Por mais que considere as danças (e as músicas, via de regra) do estilo antes ginástica hiper-coreografada e tenha torcido o nariz quando escutei, certa feita, uma discussão ao meu lado em que três rapazes já acima dos vinte anos se diziam artistas por dançar k-pop, acho interessante se reunirem para dançar - desde que não exagerem no volume da música. Nutro a esperança desses jovens serem menos homofóbicos (há muitos gays, alguns que tenho visto lentamente se montarem para dançar como mulheres) e num futuro se dedicarem a uma dança mais que técnica e bonitinha, mas significante e causadora de tensões no público.
Enfim, à competição, que acompanhei brevemente, cinco músicas incompletas. Coreografias (as coletivas) muito sincronizadas, de precisão coreana, a sucessão entre os competidores praticamente sem pausas - tempo para o anúncio (impossível de ouvir por causa dos gritos) da próxima atração e já está a música rolando, os adolescentes pulando, a platéia gritando. Mais interessante que os dançarinos é o público, que não apenas canta junto (em coreano), como acompanha a coreografia, sentados, com gestos contidos. Isso para não falar nos gritos histéricos, de homens e mulheres, nos momentos oportunos: notei que as músicas possuem uma ou duas pausas, em instantes propícios para os gritos dos fãs. E não é torcida: é quase todo mundo gritando para todas as apresentações (o que me leva a perguntar por que fazer uma competição, e não apenas um dia de apresentações). Às vezes alguns cartazes, feitos de canetinhas e folha de caderno, são levantadas. Quem se apresenta segue impassível a tudo isso, concentrados na coreografia. Um casal (piá e guria), ao que tudo indica, vai além da coreografia oficial e se beija ao fim da apresentação - o público alucina. Eu dou risada, volto para casa, além de já me dar por satisfeito, tenho coisas na mochila pra guardar na geladeira. Me pergunto como não deve ser um show de um astro do k-pop, como anunciado em uma mesa perto da saída da sala. Acho graça, mas ao mesmo tempo minha jugular crítica me faz ter um quê de profundo incômodo com tudo isso.

São Paulo, 07 de dezembro de 2014.

Ps: uma coisa que admito ser muito legal, mesmo estando nessa lógica de mercadoria é a t-girls band (isto é, transexuais), Lady (레이디)
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