Encontrei o livro numa dessas
queimas de estoque da velha ortografia, livros por dez reais, que
pipocam em São Paulo. Não tinha qualquer referência da autora, e a
editora - Geração Editorial - tampouco ajudava. Na quarta capa, o
aviso de "um best-seller internacional eletrizante" piorava
ainda mais a situação. Resolvi arriscar a compra ao ler na orelha
que Cobras e piercings, da
japonesa Hitomi Kanehara (uma bonita rapariga, por sinal), havia
ganho o prêmio Akutagawa.
Cobras e piercings chega a ser perturbador, até mesmo a quem já encarou 120
dias de Sodoma, do Marques de
Sade - me parece difícil conseguir passar incólume ao fim da leitura: algo cutuca.
Escrito
aos dezenove anos, o livro me fez lembrar do primeiro romance do
gaúcho Daniel Galera, Até o dia em que o cão morreu.
Duas histórias adolescentes - a do brasileiro extremamente banal -,
que retratam uma geração sob a égide de Thanatos: o vazio da vida,
a falta de sentido, a pulsão de morte, o desejo do nada.
Lui,
a personagem principal, dezenove anos, poderia ter uma vida
confortável, não tem problemas familiares, seu estilo é o de
patricinha - apesar de recusar o rótulo -, mas abandona tudo por...
por nada, para nada. Por fastio e tédio vai viver no underground
japonês, em meio a adolescentes cujo visual agressivo esconde
insegurança e desejo de carinho, de colo, em que assassinatos podem
acontecer sem maiores remorsos. Ela se interessa por um rapaz antes
por sua língua bifurcada, e passa a ter o desejo de uma língua
igual - depois acrescida do desejo de uma tatuagem de um kirin - como
objetivo de vida. Parte do seu relato é marcado pelo aumento no
tamanho dos alargadores da língua. Vai viver junto com o rapaz, que
a sustenta, e sua vida ganha alguma estabilidade - o que implica que
ela não precisa se prostituir para sobreviver e pode beber o dia
todo, todo dia. Tanto a ampliação do furo na língua como a
tatuagem, percebe-se a certa altura, não são exatamente o que Lui
busca: seu desejo é antes de tudo pelo reconhecimento do Outro - é
a exclamação de admiração das pessoas próximas. Contudo, parece
viver em uma época em que só conhece relação entre sujeito e
objeto, não entre dois sujeitos. E dessa relação sujeito-objeto
(senhor-escravo), ela exerce seu caprichos sobre seu namorado,
enquanto se submete em um relacionamento sadomasoquista com seu
tatuador. O alheamento sobre o outro é tamanho - seu interesse
parece ser unicamente que Ama e Shiba a legitimem enquanto ser vivo
-, que ela sequer sabe o nome verdadeiro de seu namorado e seu
amante. A protagonista admite que suas "idéias e valores se
situam no mesmo nível das de um símio", sem que isso a
perturbe, sem que mereça um segundo momento de reflexão. No seu
caso com o tatuador sádico, reconhece que "só podia perceber
que continuava viva quando sentia dor" - dor essa que excitava
ambos -, e que seu "desejo sexual se parecia com o cão das
experiências de Pavlov" - reflexos condicionados, sem desejo
autônomo. O tédio que a leva ao submundo, a leva também ao
tatuador sádico, e acaba por dominar também sua vida nesse
submundo: o tédio não advém da vida certa e regrada, não advém
da vida louca e sem limites, o tédio é uma constante da qual ela
foge, comprometendo seu futuro em nome de nenhum presente, seu desejo
é o de morte, não porque odeia a vida, mas porque não vê sentido
em continuar viva - ocorre que tampouco vê sentido em morrer.
Para
além do enredo de assassinatos e sadomasoquismo, Kanehara retrata a
minha geração e a seguinte, que vive entre piercings, tatuagens,
auto-mutilações - do corpo, de ações, de sonhos, do futuro -, e a
fuga do nada que a atrai.
São
Paulo, 08 de dezembro de 2014.
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