terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Um dia qualquer em Buenos Aires



No café da manhã do albergue lembro da viagem com meu irmão, em 2006: toca primeiro Manu Chao e a seguir Layla, do Oasis (foi depois de ouvir essa música, em Puerto Madryn, que decidimos assistir ao show deles, alguns meses depois, em São Paulo). Por falar em albergue, ainda não contei aqui: para entrar na hospedaria é preciso estar com o pulso devidamente equipado com uma pulseira azul clara que te dão, dessas de vip em festa. Me sinto quase uma criança trazendo no pulso o telefone de casa, para o caso de eu me perder dos meus pais. Depois de pensar um pouco, vejo que faz algum sentido: imagino um dos hóspedes, zero de conhecimento de espanhol, bêbado, perdido pela cidade, aquele telefone pode ser de grande valia. 
Vou até o Museu de Arte Moderna de Buenos Aires. A mostra de Leon Ferrari e a inspirada em Sonia Delaunay me interessam. Nesta segunda um guia conduz um grupo com vários cegos. Ele tenta explicar as formas e as cores da obras - a primeira ainda é capaz de eles imaginarem (ou visualizarem, e aqui me vejo com uma dificuldade em fugir de metáforas visuais), as cores, se forem cegos de nascença, não faz sentido. Para além do guia falando, há obras em relevo ou bordadas - como a de Chiachio & Giannone. O guia conduz a mão de um por um pelas obras nas paredes. Em uma delas, um tapete no chão, autoriza que pisem-na, desde que sem sapatos. Tateiam a arte. Um deles se deita no tapete, a luz forte da obra a iluminar seu sorriso amplo. Uma cena bonita, digna das obras lá expostas. 
Perto do museu, uma "escuela de pasteleros". Nas ruas, crianças saem da aula com seus jalecos brancos - me lembro de Mafalda. Me dou conta que descubro as vestimentas escolares portenhas só nesta terceira viagem porque as outras duas eu viera em época de férias. Ainda em San Telmo, já perto da Casa Rosada, adolescentes passam pintados, roupas rasgadas, parecem os calouros de universidade no Brasil - falta o escárnio com a população mais marginal, o "pedágio" nos sinais. Um rapaz me explica que são os ingressantes do colégio Nacional. Cartazes das eleições do Racing estão por toda parte. Em uma parede, uma pichação pede a igreja fora do Estado. Acho reivindicação não apenas válida como anacrônica - por outro lado, penso que essa ligação com a igreja católica impede uma ascensão ao poder de uma extrema-direita evangélica. Na avenida de Mayo, uma manifestação logo no início da tarde. "Barrios de pie" eu já conhecida das outras vindas. Há bandeiras do MST, Movimento Sin Trabajo. Desta feita nenhuma do PSTU. Em uma rua do centro me deparo com uma "librería y juguetería": a associação da brincadeira com a leitura talvez ajude a explicar um pouco a discrepância quanto à leitura entre a Argentina e o Brasil. Numa banca, uma revista chamada Pensadores traz na capa Getúlio Vargas. Uma mulher tenta enfiar seu cachorro rebelde dentro da sua bolsa. No Café Tortoni, turistas fazem fila para visitar o original transformado em pastiche. Numa esquina da Florida escuto uma banda que não me é estranha - é a Roman Jazz, que eu vira na praça da figueira (que não lembro o nome), em Floripa, e até comprara seu disco. Reparo na mudança de vestuário: ainda que não estejam chiques, não se compara ao camiseta regata - bermuda - chinelo ou descalços. Por falar em roupas, aqui a moda é mais marca esportiva do que californianas - pessoas com roupas destas grifes, em geral são brasileiras ou estadunidenses. E eu com minhas camisetas próprias (uma das funcionárias do albergue elogiou a minha da 3rd Line Buterfly). E sapato feminino rasteiro na Argentina tem pelo menos cinco centímetros. Vou ao parque Las Heras, ler um tanto mais de Los jardines secretos de Mogador (e beber de um chá pronto, mistura de várias ervas, de um amargor muito gostoso!). Uma garota passa vendendo livros usados - recuso e logo me arrependo, mas ela já está longe. Passa também uma garota vendendo incensos - e como tem incenso para vender aqui. Apesar de estar no meio do parque, longe de ruas, a poluição sonora me alcança - Buenos Aires me parece bem mais barulhenta que São Paulo. Crianças treinam futebol nos campos de grama sintética do parque. Outras apenas jogam futebol e se divertem, na grama natural de campos improvisados por entre as árvores. Certa hora dois cachorros enroscam os bigodes, para desespero de um dos donos - o do cachorro menor. No hay peligro, diz o outro. Uma garota lê Cortazar perto de mim. Não sei porque, me vem à memória a francesa que estava no mesmo albergue que eu, em Lisboa, e coincidiu de estarmos no mesmo ônibus para Madri. Ela chorava por ter de voltar à realidade, dizia que tinha passado momentos ótimos na capital lusitana. A tarde cai, tomo o rumo do albergue. Alcanço a Nove de Julho. Levo um susto quando um homem sai da caçamba de lixo. Um cachorro o espera fora, abanando o rabo na espera do dono. Soou uma cena muito Beckettiana - Fim de jogo. O realismo fantástico latino americano ganha os tons sombrios do teatro do absurdo. O sol se põe atrás do congresso.

Buenos Aires - São Paulo, 09 de dezembro de 2014.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Entre cobras piercings e o nada

Encontrei o livro numa dessas queimas de estoque da velha ortografia, livros por dez reais, que pipocam em São Paulo. Não tinha qualquer referência da autora, e a editora - Geração Editorial - tampouco ajudava. Na quarta capa, o aviso de "um best-seller internacional eletrizante" piorava ainda mais a situação. Resolvi arriscar a compra ao ler na orelha que Cobras e piercings, da japonesa Hitomi Kanehara (uma bonita rapariga, por sinal), havia ganho o prêmio Akutagawa.
Cobras e piercings chega a ser perturbador, até mesmo a quem já encarou 120 dias de Sodoma, do Marques de Sade - me parece difícil conseguir passar incólume ao fim da leitura: algo cutuca.
Escrito aos dezenove anos, o livro me fez lembrar do primeiro romance do gaúcho Daniel Galera, Até o dia em que o cão morreu. Duas histórias adolescentes - a do brasileiro extremamente banal -, que retratam uma geração sob a égide de Thanatos: o vazio da vida, a falta de sentido, a pulsão de morte, o desejo do nada.
Lui, a personagem principal, dezenove anos, poderia ter uma vida confortável, não tem problemas familiares, seu estilo é o de patricinha - apesar de recusar o rótulo -, mas abandona tudo por... por nada, para nada. Por fastio e tédio vai viver no underground japonês, em meio a adolescentes cujo visual agressivo esconde insegurança e desejo de carinho, de colo, em que assassinatos podem acontecer sem maiores remorsos. Ela se interessa por um rapaz antes por sua língua bifurcada, e passa a ter o desejo de uma língua igual - depois acrescida do desejo de uma tatuagem de um kirin - como objetivo de vida. Parte do seu relato é marcado pelo aumento no tamanho dos alargadores da língua. Vai viver junto com o rapaz, que a sustenta, e sua vida ganha alguma estabilidade - o que implica que ela não precisa se prostituir para sobreviver e pode beber o dia todo, todo dia. Tanto a ampliação do furo na língua como a tatuagem, percebe-se a certa altura, não são exatamente o que Lui busca: seu desejo é antes de tudo pelo reconhecimento do Outro - é a exclamação de admiração das pessoas próximas. Contudo, parece viver em uma época em que só conhece relação entre sujeito e objeto, não entre dois sujeitos. E dessa relação sujeito-objeto (senhor-escravo), ela exerce seu caprichos sobre seu namorado, enquanto se submete em um relacionamento sadomasoquista com seu tatuador. O alheamento sobre o outro é tamanho - seu interesse parece ser unicamente que Ama e Shiba a legitimem enquanto ser vivo -, que ela sequer sabe o nome verdadeiro de seu namorado e seu amante. A protagonista admite que suas "idéias e valores se situam no mesmo nível das de um símio", sem que isso a perturbe, sem que mereça um segundo momento de reflexão. No seu caso com o tatuador sádico, reconhece que "só podia perceber que continuava viva quando sentia dor" - dor essa que excitava ambos -, e que seu "desejo sexual se parecia com o cão das experiências de Pavlov" - reflexos condicionados, sem desejo autônomo. O tédio que a leva ao submundo, a leva também ao tatuador sádico, e acaba por dominar também sua vida nesse submundo: o tédio não advém da vida certa e regrada, não advém da vida louca e sem limites, o tédio é uma constante da qual ela foge, comprometendo seu futuro em nome de nenhum presente, seu desejo é o de morte, não porque odeia a vida, mas porque não vê sentido em continuar viva - ocorre que tampouco vê sentido em morrer.
Para além do enredo de assassinatos e sadomasoquismo, Kanehara retrata a minha geração e a seguinte, que vive entre piercings, tatuagens, auto-mutilações - do corpo, de ações, de sonhos, do futuro -, e a fuga do nada que a atrai.


São Paulo, 08 de dezembro de 2014.