quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Uma flor no viaduto Santa Ifigênia [Diálogos com a dança]

"Se eu falar, não acreditam", comenta o vendedor da loja de instrumentos musicais sobre o porquê estar gravando com seu celular o que se passa defronte a loja. Por um momento fico a me questionar ignorâncias: será que ele é de tão pouca confiança, ou será que seus interlocutores só conhecem a dinâmica previsível e pasteurizada dos shopping centers? Acima da loja, no primeiro andar do prédio, uma mulher surge na sacada, talvez apenas por rotina de ver o movimento da cidade, talvez atraída pela guitarra que não toca nenhum sucesso musical e ainda assim se destaca. Logo outras três pessoas estão com ela, assistindo. Pedestres passam, alguns indiferentes, outros observando sem diminuir o passo, outros param para tentar entender o que é aquilo - ou talvez não seja questão de entender, mas de apreciar, tão-somente -, um vendedor ambulante de carrinho de controle remoto faz oitos com a Ferrari - e assim seguirá, salvo quando o rapa passar -, um segundo se protege do sol escaldante na fina sombra do poste de luz, enquanto oferece água mineral, pouco adiante outro guitarrista toca, esse, sim, sucessos, clássicos do rock, na sua roupa prateada. É em meio a essa paisagem banal do viaduto Santa Ifigênia, no centro de São Paulo, que cinco dançarinos ocupam-no e interferem no caminhar de seus transeuntes.
Novos Experimentos, da iN SAiO Cia de arte, se insere muito bem naquele ambiente urbano, os protagonistas sabem lidar com a instabilidade de interagir com um público que não está ali para assistir a dança ou a qualquer manifestação artística. A inserção, entretanto, não é feita sem perturbar esse ambiente: ela pode ser sentida nos espaçosos átrios formados nos trechos em que os dançarinos se concentram: há algo especial, extra-ordinário acontecendo ali - a arte não está no quotidiano da cidade, das pessoas. Essa ruptura do ordinário traz reações as mais diversas, da ranzinza indiferença ao acompanhamento atento, apesar do sol e da pressa. Ranzinzice que eles muitas vezes são capazes de atenuar, pressa que eles conseguem estancar - logo no início, quando as duas dançarinas caminhavam lentamente uma em direção à outra, uma mulher claramente apressada não conseguia continuar sua marcha, na ansiedade de saber o que viria daquele encontro, dois passos, parava, outro passo, estancava, e as dançarinas em seu passo lento, ela se virava para assistir, até, enfim, ambas se encontrarem, a tensão se resolver e ela poder seguir seu rumo. Ou quando o carro de polícia teve de esperar o dançarino que não interrompia seu bailado para a passagem da ordem. Diferentemente da performance Os cegos, na avenida Paulista [j.mp/cG23dez13], Novos Experimentos pretende romper com o quotidiano num confronto com a banalidade, não com as pessoas que a vivem. Não se pretende agressiva, apesar de não deixar de ser crítica: acredita que os freqüentadores do centro são capazes de mais que olhar, são capazes de ver - basta um estímulo que os tire do cinza da rotina.
Foto: Fabiana Choi [fafayc.wix.com/fabianachoi]
O porém de sair com o intuito deliberado de assistir a uma apresentação dessas, a uma intervenção no espaço urbano, na ordem do dia, é não ser pego de surpresa, é não ser você a buscar alguém quem te explique o que se passa ali - é apresentação mesmo, já que não há nenhum círculo ou semi-círculo de espectadores, apenas cinco dançarinos espalhados, um guitarrista, quatro ou cinco fotógrafos e pessoas passando, algumas se detendo alguns poucos minutos? Me pego observando mais que meu habitual os espectadores, as pessoas que passam, os vendedores que comentam, o carrinho de controle remoto que faz oitos. Passa um rapaz numa bicicleta de entrega, distraído com seu celular - logo ele passará de novo, sem ser sugado pelo celular atentará para aquela estranheza e ficará um tempo a assistir à dança. Lembro do teatro da Vertigem, "A última palavra é a penúltima", apresentado na passagem subterrânea defronte o teatro Municipal - a diferença é que não estou preso em uma vitrine, e na minha frente (e ao meu redor) passam pessoas em seus trajes de todo dia, não atores.
Porém, não ser pego de surpresa pela dança não quer dizer que não pode ser surpreendido durante ela: uma mulher, já passada dos sessenta anos, acompanhada de uma criança, olhos cheios d'água, pede um abraço a uma das intérpretes. "Não tive como negar", comentou ela, ao fim da apresentação. Como não há como negar que para as pessoas que passaram pelo viaduto Santa Ifigênia ao meio-dia desta quarta-feira alguma coisa mudou, algum atrito no seu quotidiano aconteceu, algum colorido exótico elas tinham para reportar a seus próximos no fim do dia. Em que reverberará essa experiência? Impossível saber, pode morrer junto com o dia, mas pode ter sido uma flor que furou o asfalto.

São Paulo, 18 de dezembro de 2014.


terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Transitar por Buenos Aires

O transporte de Buenos Aires, em seus vários modais, merece uma crônica. Começo pelos ônibus: a primeira impressão é de que são muito velhos, provavelmente causada pela pintura e seus adereços - mesmos nos novos. Reparando um pouco mais, creio ter visto alguns ônibus que no século passado eu já achava muito velhos - sinal que a impressão não é de todo equivocada. Pelos avisos, Buenos Aires parece estar ampliando (ou implementando) corredores exclusivos - inclusive não me lembrava do metrobus nas pistas centrais da Nove de Julho, mas pode ser que eu não reparara. E causa estranhamento também as pessoas fazerem fila nos pontos - e não apenas quando o ônibus pára, pela questão logística de que não pode entrar todo mundo pela porta do busão (tão logo chego no brasil, ainda no aeroporto, o motorista do ônibus mostra onde deve ser feita a fila, as pessoas seguem sua indicação, e na hora de estacionar para embarcarmos, o mesmo motorista pára no meio da fila).
Ciclovias, essas não vi avisos, mas espero estarem sendo ampliadas, pois há lugares em que a ciclovia se encerra do nada, num meio fio, após atravessar uma avenida movimentada. Em geral, elas me pareceram bem mal feitas, antes com efeitos cosméticos que efetivas - apesar de um número não desprezível de pessoas usar a bicicleta como transporte (e tomo como modelo as ciclovias implementadas em São Paulo por Haddad). Boa parte das ciclovias são apertadas, malemal passa uma bicicleta em cada mão e foram feitas próximas ao meio fio, sem nenhuma reforma e adaptação: algumas têm suas faixas ocupadas por lixeiras, muitas ficam na parte originalmente dedicada ao escoamento da água da chuva. Não é preciso ser gênio para saber que em dias de chuva não há ciclovias. Imagino, contudo, que isso não torne impeditivo o uso da magrela: impressão tive que os motoristas respeitam mais, ou melhor, respeitam (ainda que não tanto quanto creio ser o ideal), desde outros motoristas até pedestres - de onde não ver por que excluir os ciclistas. Esqueitistas vi poucos.
Buenos Aires não tem sinais que fecham todo o tráfego aos carros, para que os pedestres atravessem: sinal verde vale para ambos, e ao dobrar a esquina, a preferência é (de fato) do pedestre. O que talvez me irrite mais dos motoristas portenhos é que eles adoram buzina. Notei dois padrões de buzina: as que chamei de che, e as de boludo. As primeiras são aquele "pi" que eles soltam para qualquer coisa, como quando o sinal recém fica verde. A boludo estende-se no tempo, "piiiiiiiiiiiiiiii", quase vejo os motoristas gritando "boluuudo!" dentro seus carros, e são utilizadas para qualquer coisa, também, como, por exemplo, quando o motorista atrasa dois segundos depois que o sinal abriu. Parece que boludar na buzina alivia de prosseguir com ofensas - mas ajuda bastante na poluição sonora. Uma placa curiosa encontrei em Palermo: uma vaga na rua reservada especificamente para um carro, placa tal. Devia ser um morador com alguma deficiência de locomoção, ok, mas ter um lugar só seu na via pública, isso não lembro de acontecer oficialmente no Brasil
Porém, o que mais me motivou a esta crônica foi o metrô, aqui chamado mais acertadamente de subte - vale lembrar que o Metrô de São Paulo, só com as novas ampliações vai se tornar efetivamente metropolitano. Sem muito contato com o modal paulistano, e talvez sob efeito da comparação com os ônibus, não tinha registro de serem tão antigos assim. Havia os trens de madeira, que iam para a praça de Maio, mas esses eram propagandeados como propositalmente mantidos, serviam como ponto turístico. Para não caminhar tanto antes dos shows, vou de metrô até estação mais ou menos próxima do local do festival (uns quatro quilômetros, talvez). Entro na estação Avenida de Mayo. De lá me encaminho até a Diagonal Norte, troco de linha e vou até a Plaza Italia. Simples, pero no por completo. Além de funcionários mal humorados e pouco dispostos a dar informações (diferença grande para os funcionários do metrô paulistano, e não falo isso para puxar saco de amigos), sinalização ruim e caminhos bizarros tornam a troca de linha uma aventura, quase uma caça ao tesouro: é preciso se encaminhar para o fim da plataforma, onde diz saída tal, virar à esquerda, descer a escada, caminhar por um túnel razoável, entrar na segunda direita, caminhar um tanto mais, subir outra escada e pronto: estou do outro lado da estação, pronto para tomar o metrô de volta para a Avenida de Mayo. Mais uma caminhada pelos subterrâneos portenhos, sobe desce, desce sobe, túnel, vira, corredor, vira, túnel, corredor, salva a princesa, sobe, desce, magia, sobe desce, escada, escada, meia lua xis e, agora, sim, me encontro na plataforma certa para seguir viagem - em companhia de um casal formado por um italiano e uma venezuelana, que não economizou no dedo quando o funcionário nos deu a informação de como chegar aonde gostaríamos.
Por ser antiga (imaginava ser da década de 1920, uma amiga me contou que a rede é de 1913), as estação são apertadas, até um pouco claustrofóbicas, por conta do pé direito baixo. Azulejos as enfeitam e as diferenciam, dando um ar menos padronizado - soa estranho, mas não deixa de ser simpático. Falta um pouco de manutenção, contudo: paredes descascando, cheiro de mofo e grandes ventiladores para fazer o ar circular - para não falar nos trens um tanto antigos, dando aquele ar de modernidade de ontem, que comentei quando falei do nome da empresa que administra o Aeroparque (detalhe: os de madeira, me contou minha amiga, foram tirados por conta de reiterados problemas, talvez circulem de domingo). Entendi o porquê de precisar fechar toda a linha B durante o final de semana para implementar ar-condicionado: não parece ser tarefa simples, antes uma considerável adaptação. O terceiro trilho corre pelo alto, há pedra brita entre os trilhos - para não falar de lixo jogado pelos usuários e água da chuva da noite. Na estação, na plataforma de embarque, um ambulante vende doces em uma mala - tranquilamente, sentado no chão. No trem, um brasileiro abre seu teclado e toca Bob Marley, enrola um portunhês (estágio anterior ao portunhol) e pede uma contribuição. As cinco pessoas sentadas na minha frente dariam um curta: uma jovem com fone de ouvido masca chicletes displicentemente, uma mulher perto dos quarenta sentada rígida tem o olhar perdido, um senhor (desses cinematográficos que não são raros de encontrar em Buenos Aires) apoiado em sua bengala, traz o olhar entre o leve fastio e a leve irritação, e, por fim, dois adolescentes, um com óculos de aro grosso, aparelho, espinhas - visual meio nerd -, e outro com óculos escuros, boné aba reta e estilo mano, cantam empolgados junto com o artista de metrô. Atrás deles propagandas. Primeiro imagino que quase todas irregulares, por parecerem lambe-lambe, mas depois passo a achar que a de "canto y escena" é regular, enquanto a de "sevicio de jardinería", por estar colada muito aleatoriamente, é irregular. Agora já acho que as duas são irregulares. É feriado, o número de passageiros é tranquilo, prefiro nem imaginar como é durante a semana - ou, pior, durante a semana com greve dos ônibus, como dali a dois dias. Chego à Plaza Itália sem sobressaltos, pronto para os shows, depois de uma viagem que começou com a visão de um Jesus Cristo do Porta dos fundos do outro lado da estação.

Buenos Aires - São paulo, 16 de dezembro de 2014