"Se eu falar, não acreditam", comenta o vendedor da
loja de instrumentos musicais sobre o porquê estar gravando com seu
celular o que se passa defronte a loja. Por um momento fico a me
questionar ignorâncias: será que ele é de tão pouca confiança,
ou será que seus interlocutores só conhecem a dinâmica previsível
e pasteurizada dos shopping centers? Acima da loja, no primeiro andar
do prédio, uma mulher surge na sacada, talvez apenas por rotina de
ver o movimento da cidade, talvez atraída pela guitarra que não
toca nenhum sucesso musical e ainda assim se destaca. Logo outras
três pessoas estão com ela, assistindo. Pedestres passam, alguns
indiferentes, outros observando sem diminuir o passo, outros param
para tentar entender o que é aquilo - ou talvez não seja questão
de entender, mas de apreciar, tão-somente -, um vendedor ambulante
de carrinho de controle remoto faz oitos com a Ferrari - e assim
seguirá, salvo quando o rapa passar -, um segundo se protege do sol
escaldante na fina sombra do poste de luz, enquanto oferece água
mineral, pouco adiante outro guitarrista toca, esse, sim, sucessos,
clássicos do rock, na sua roupa prateada. É em meio a essa paisagem
banal do viaduto Santa Ifigênia, no centro de São Paulo, que cinco
dançarinos ocupam-no e interferem no caminhar de seus transeuntes.
Novos Experimentos, da iN SAiO Cia de arte, se insere muito bem
naquele ambiente urbano, os protagonistas sabem lidar com a
instabilidade de interagir com um público que não está ali para
assistir a dança ou a qualquer manifestação artística. A
inserção, entretanto, não é feita sem perturbar esse ambiente:
ela pode ser sentida nos espaçosos átrios formados nos trechos em
que os dançarinos se concentram: há algo especial, extra-ordinário
acontecendo ali - a arte não está no quotidiano da cidade, das
pessoas. Essa ruptura do ordinário traz reações as mais diversas,
da ranzinza indiferença ao acompanhamento atento, apesar do sol e da
pressa. Ranzinzice que eles muitas vezes são capazes de atenuar,
pressa que eles conseguem estancar - logo no início, quando as duas
dançarinas caminhavam lentamente uma em direção à outra, uma
mulher claramente apressada não conseguia continuar sua marcha, na
ansiedade de saber o que viria daquele encontro, dois passos, parava,
outro passo, estancava, e as dançarinas em seu passo lento, ela se
virava para assistir, até, enfim, ambas se encontrarem, a tensão se
resolver e ela poder seguir seu rumo. Ou quando o carro de polícia
teve de esperar o dançarino que não interrompia seu bailado para a
passagem da ordem. Diferentemente da performance Os cegos, na avenida
Paulista [j.mp/cG23dez13], Novos Experimentos pretende romper com o
quotidiano num confronto com a banalidade, não com as pessoas que a
vivem. Não se pretende agressiva, apesar de não deixar de ser
crítica: acredita que os freqüentadores do centro são capazes de
mais que olhar, são capazes de ver - basta um estímulo que os tire
do cinza da rotina.
Foto: Fabiana Choi [fafayc.wix.com/fabianachoi] |
O porém de sair com o intuito deliberado de assistir a uma
apresentação dessas, a uma intervenção no espaço urbano, na
ordem do dia, é não ser pego de surpresa, é não ser você a
buscar alguém quem te explique o que se passa ali - é apresentação
mesmo, já que não há nenhum círculo ou semi-círculo de
espectadores, apenas cinco dançarinos espalhados, um guitarrista,
quatro ou cinco fotógrafos e pessoas passando, algumas se detendo
alguns poucos minutos? Me pego observando mais que meu habitual os
espectadores, as pessoas que passam, os vendedores que comentam, o
carrinho de controle remoto que faz oitos. Passa um rapaz numa
bicicleta de entrega, distraído com seu celular - logo ele passará
de novo, sem ser sugado pelo celular atentará para aquela estranheza
e ficará um tempo a assistir à dança. Lembro do teatro da
Vertigem, "A última palavra é a penúltima", apresentado
na passagem subterrânea defronte o teatro Municipal - a diferença é
que não estou preso em uma vitrine, e na minha frente (e ao meu
redor) passam pessoas em seus trajes de todo dia, não atores.
Porém, não ser pego de surpresa pela dança não quer dizer que
não pode ser surpreendido durante ela: uma mulher, já passada dos
sessenta anos, acompanhada de uma criança, olhos cheios d'água,
pede um abraço a uma das intérpretes. "Não tive como negar",
comentou ela, ao fim da apresentação. Como não há como negar que
para as pessoas que passaram pelo viaduto Santa Ifigênia ao meio-dia
desta quarta-feira alguma coisa mudou, algum atrito no seu quotidiano
aconteceu, algum colorido exótico elas tinham para reportar a seus
próximos no fim do dia. Em que reverberará essa experiência?
Impossível saber, pode morrer junto com o dia, mas pode ter sido uma
flor que furou o asfalto.
São Paulo, 18 de dezembro de 2014.
2 comentários:
Perdi a intervenção, mas ganhamos uma bela crônica.
Obrigado, mas te garanto que a intervenção estava melhor.
Abraço.
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