domingo, 10 de maio de 2015

Marilda G. [retratos feitos de memórias]

Não sabia perdoar. Assim como não sabia esquecer. Não sabia porque não queria. Não queria porque apesar de passado, é dessa matéria do tempo (ou seria da mente e dos afetos?) que se reconhece no presente. Não queria esquecer a infância de dificuldades, do labuta árdua do pai, do esforço da mãe, da maçã dividida entre as seis irmãs, do trabalho de bóia-fria em plantação de batata de japoneses, nas férias. Não esquecia também porque não eram lembranças ruins. Não queria esquecer a ascenção social que teve, a qual foi fruto de muito trabalho - mas também não queria esquecer que chegou aonde chegou por sorte: metade de suas irmãs não tiveram a mesma oportunidade, estancaram na rabeira da classe-média. Não esquecia das ajudas recebidas, tampouco esquecia das desfeitas. Mas não é por não esquecer que não sabia perdoar. Não perdoava porque para perdoar é preciso se achar superior à pessoa que merece o perdão, e ela não conseguia ver qualquer hierarquia existencial que justificasse superioridade ou inferioridade - não havia ninguém a perdoar, nem a pedir perdão. Não oferecia a outra face: evitava brigas, mas se se visse compelida a entrar numa, entrava para brigar. E passada a briga, passado o tempo - esse que pode ser cura, mas pode ser um lento veneno -, não alimentava revanchismo, dispensava ódios - não por perdoar, nem por esquecer, mas por saber distinguir presente do passado, por entender que apesar do tempo que sedimenta em nosso ser, somos dinâmicos. E num mundo onde as pessoas se vêem como vítimas do passado, como credores do bem-estar dos próximos e dos distantes, ela não faz esse tipo de leitura, de cálculos - e muitas vezes se pergunta se tem algo de errado consigo, por não cair nesse pensamento viciado de tantos que se dizem cristãos. E então lembra que para esses, ela poderia ser taxada de otária, por deixar o passado enquanto passado - mas prefere assim a mudar. Teimosa? Nesse aspecto, bom que seja. E a humanistas ingênuos, como este escriba, causa admiração: se a mão que outrora a apedrejava agora pede ajuda, não nega nem cobra: acolhe. E nessas horas eu me pergunto: quantos tem não apenas coragem, como dignidade de fazer isso?


10 de maio de 2015.

quarta-feira, 6 de maio de 2015

O banheiro coletivo

De início achei que fosse por algum prazer sádico: sempre que ia limpar a caixa de areia, os dois bichanos se punham a espreitar-me, em especial a gata (Mafalda?). Um pouco mais de convivência entre nós e vi que fazia um juízo equivocado acerca dos meus colegas de apartamento: a gata logo perdeu o medo e tem me ajudado na limpeza da caixa - o gato (Guile?), tem perdido o receio mais vagarosamente, ainda mais acompanha do que ajuda, mas já se insinua. Mafalda tem sido tão diligente na sua ajuda que continua o trabalho, mesmo quando já recolhi tudo o que havia para recolher, jogando areia por toda área próxima. Resultado: meu banheiro em estado lastimável, com barro por tudo. Não tive dúvidas: comprei uma caixa fechada, na esperança de tornar meu (nosso) banheiro minimamente habitável. Conseqüência: se recusam a entrar nela se estiver com a tampa. Sem a tampa, Mafalda segue ajudando ao seu modo.
E não é só a limpeza da caixa de areia que os atrai para o referido recinto: notei que minha ida ao banheiro é um evento para eles. No início era toda ida, agora estão um pouco mais seletivos: houve vez que eu tomava banho, porta obviamente fechada (o banheiro é pequeno, não tem box e se não fechar a porta molha o quarto), do outro lado uma sinfonia de miados reivindicava o direito de assistir às minhas abluções. Abri a porta e diante daquele mundaréu de água que caía, fugiram - e nunca mais quiseram me ver tomando banho. Escovar os dentes também não tem sido muito atrativo para eles: ficam um tempo a observar, logo cansam. Mas todo o resto que eu faço no banheiro, se acaso faço de porta aberta - e não tem porque fechá-la, se moro sozinho -, eles me acompanham e me assistem. Ficam a me observar, curiosos. Há vezes que sinto neles uma vontade de pularem e alcançarem aquele pedaço de mim que despeja água na retrete, mas até agora nunca tentaram de verdade. Penso que ganhamos todos com isso: eles evitam de cair no vaso, eu, de ter um arranhão em área delicada.


06 de maio de 2015
Imagem meramente ilustrativa do meu ideal para o banheiro.
Nesta foto, os irmãos assistem à máquina de lavar roupa.