terça-feira, 2 de junho de 2015

O centro degradado e sem vida de São Paulo

Estou no centro de São Paulo, na região tida por "degradada" (conforme o Houaiss: "1 destituído de graus, títulos, funções etc. 2 rebaixado em sua condição moral; corrompido, degenerado"), alvo de reiterados projetos de "revitalização" (já que - dizem - a vida que há ali não é de muito valor - se é que é de algum). Região degradada é toda aquela em que as classes média e alta evitam ao máximo freqüentar (quanto mais morar), seja por medo da violência (afinal, deu no JN), seja por medo da insalubridade do local (e dos locais). Parênteses: ao falar em insalubridade, me veio à memória a doutoranda em saúde pública na Faculdade de Medicina da Unicamp que uma vez tive o desprazer de conhecer. Ela dizia - sem nenhum tom de ironia, sarcasmo ou provocação - que pobre era igual a rato: só servia para se reproduzir e transmitir doenças [http://j.mp/cG200908udsp]. Noto agora que, por ser formada em educação física e não em medicina ou farmácia, a tal doutoranda era incompetente também na compreensão do modus operandi das ciências médicas atuais: tal qual rato, pobre também é usado como animal de laboratório. Ainda que não com o mesmo preconceito indecoroso, o discurso do medo não difere em essência. Fecha parênteses. Entro em um restaurante árabe que conheço há tempos - o melhor que já comi, além de custar menos da metade que o similar da Augusta. A dona, uma libanesa, há tempos que não a vejo - talvez fique durante o dia, eu tenho ido sempre à noite. O relógio que anda ao contrário marca seis e vinte e cinco. Um dos donos fala ao celular - em árabe. Certos momentos fala baixo, como se não quisesse que o ouvissem. Só entendo seu receio quando o outro dono vai até uma mesa e enceta uma conversa com outros quatro conterrâneos - ao menos falam em algum língua que desconheço. Na minha frente, fazem o pedido três portugueses. O garçom é um andino, na cozinha, dois brasileiros. Mudança radical diante de três anos atrás, em que trabalhava a família toda (e tenho a impressão de que uma mocinha, nem quinze anos, tentava me paquerar), e havia apenas um funcionário, que era garçom e entregador - e buscava cerveja no bar ao lado, porque ali não vendem, por serem muçulmanos. Enquanto espero meu lanche entra um negro (africano? haitiano?) vendendo relógios, bijuterias e carregadores de celular. Cumprimenta o dono com um sorriso, ele responde. Como não há ninguém interessado, logo sai. Entra uma garota cheia de piercings, cabeça raspada - à exceção do moicano-dread -, que tão-logo chega no balcão um dos rapazes já avisa que vai preparar. Entra um outro homem, que fala "frango", e recebe um sinal de positivo do rapaz responsável pelos lanches. O dono que estava ao celular já encerrou sua conversa e agora explica ao entregador o endereço - noto que estou cansado ao não conseguir distinguir que idioma eles falam - se português ou árabe. Pego e pago meu shawarma de sugôg (fala-se sujô) e vou até o metrô. Futuras kitnets chics (ou quase) são anunciadas como studios hype. Se for para nelas morar uma classe média disposta a agregar diversidade a essa babilônia paulistana, que sejam bem vindos. Se for para "revitalizar" a Luz, querer impor uma nova vida, a homogeneidade e o deserto dos bairros tidos por bem freqüentados, onde prédios e residências tem suas fachadas hostis à rua, e na qual a presença de pessoa é sinônimo de suspeito, que deixem o centro de São Paulo seguir degradado e desvitalizado dessa vida estéril preenchida com dinheiro.




São Paulo, 02 de junho de 2015.

segunda-feira, 25 de maio de 2015

A coreografia do poder - Sobre a Cisne Negro Cia de Dança e Trama [diálogos com a dança]

Querer representar um éthos nacional é um cipoal que deveria fazer com que qualquer artista pensasse e pesasse bem seu objetivo, a forma como fazê-lo e como apresentá-lo. Não a ponto de desistir, mas para evitar qualquer caminho batido, que ofusque o que a obra pode ter de positivo. Vale para qualquer país, porém creio que ganha ares ainda mais complexos no Brasil, cuja formação da idéia de nação está antes atrelada ao território que a um povo (Antônio Carlos Robert de Moraes faz uma interessante análise nesse sentido em Território e história no Brasil).
O coreógrafo Rui Moreira até teve cuidado na apresentação de seu espetáculo Trama, de 2001, dançado pela Cisne Negro Cia de Dança no CCSP, no penúltimo fim de semana deste maio. Ele trata de avisar no programa: "Neste Brasil mestiço, misterioso e mágico, todos os retratos são tendenciosos, parciais ou comprometidos". Como não podia deixar de ser, portanto, tendencioso também é o retrato que ele traça do "contagiante caminho da alegria neste País". Contudo, por mais que seja avisado da parcialidade, há algo no ângulo por ele assumido que merece uma maior reflexão.
Antes, um breve comentário sobre a primeira obra do programa, Sra. Margareth - excertos de "Monger", do coreógrafo israelense Barak Marshall - que reflete também minha atual opinião sobre a Cisne Negro (não sou um profundo conhecedor da companhia para fazer assunções mais peremptórias). Sra Margareth é um espetáculo bonito, engraçadinho, simpático, porém de um conformismo assombroso. Segundo o programa, ele "conta a história de um grupo de funcionários presos no porão da casa de uma patroa abusiva". O argumento do espetáculo abre uma ótima oportunidade para uma crítica sobre as relações sociais entre classes, sem precisar comprometer o humor das vivências retratadas. Oportunidade que é jogada fora não apenas na descrição recém reproduzida, como na própria peça: ao problema ser a patroa abusiva o caminho mais óbvio é deduzir que fosse a patroa boazinha, não haveria problemas: seriam os mesmos dez funcionários para servir uma pessoa, e isso seria harmonia social. Por sinal, não li na coreografia nenhuma prisão em porão: prisão, apenas a da fome: para comer é preciso trabalhar, e a Sra Margareth era impassível ao demitir as ineptas para servi-la (seria esse o seu abuso, exigir competência e eficiência?).
Sobre Trama, enfim. A forma como retrata a presumida alegria destes tristes trópicos, sem tensão e sem gênese, como se a alegria fosse um traço genético do Brasileiro - esse metafísico ente de nossa unidade nacional -, não apenas conta só metade da história: ela reproduz o discurso do poder. Não se trata sequer de retratá-lo - pois se retratasse esse discurso, teríamos uma crítica potente -, ele o reproduz, reforça, ilustra. Ele convida o público a se conformar.
Vemos corpos alegres, gingados, sedutores - a tal "malemolência" que um narrador (sic) de futebol adora atribuir como nossa característica-mor. De onde vem esse gingado? Para onde leva essa sedução? O coreógrafo passa ao largo de qualquer problematização. Tal qual a emissora oficial da ditadura civil-militar, Rui Moreira - e a Cisne Negro - tenta forjar uma imagem positiva do Brasil e do Brasileiro a partir do esquecimento e da inconseqüência. Será mesmo que vivemos num país em que a sexualidade é encarada com leveza, como diversão? Tenho sérias dúvidas, antes me vejo morando em um país repressor do corpo e dos afetos, muito longe de qualquer liberdade, de qualquer leveza: mais gritante que o padrão imposto e aceito de corpo, ditado pela mídia, é o fato de que tirar a roupa em público seja crime, por exemplo; ou que beijar em público seja considerado impudico, merecedor de reprimenda e insultos - e não atribuo isso à guinada conservadora que estamos presenciando, potencializada pelo crescimento evangélico. Terá o Brasileiro sempre esse corpo gingado? E sequer questiono se seria todo brasileiro assim, assumo que Moreira estaria retratando um tipo específico, "mais povo", o tal mulado-made-in-Brazil-for-export. Mesmo esse, teria essa tal malemolência em qualquer situação? Nas rotineiras abordagens policiais que presencio nas ruas de São Paulo - sempre contra esse Brasileiro típico -, me deparo sempre com corpos duros, rígidos, a cabeça baixa, nenhum sorriso.
"Ah, mas apesar de toda a precariedade do quotidiano, o Brasileiro segue sorrindo, segue feliz, segue otimista", poderia ser argumentado. E eu não discordaria, e sim questionaria: será que sorrir, tentar ser feliz, otimista, não é a forma que o tal Brasileiro achou para lidar com a precariedade de vida que o poder lhe impõe? Por que, então, não mostrar de onde ela vem, para onde ela aponta? Nada. O Brasileiro é feliz por natureza, e isso é o que importa, ponto.
Trama é a louvação do Brasil Grande da Ditadura, da unidade nacional feita da aniquilação das diferenças e dos diferentes apregoada ainda hoje pela Rede Globo. Trama antes de ser arte é propaganda.


25 de maio de 2015