Estou
no centro de São Paulo, na região tida por "degradada"
(conforme o Houaiss: "1 destituído de
graus, títulos, funções etc. 2 rebaixado em sua condição moral;
corrompido, degenerado"), alvo de reiterados projetos de
"revitalização" (já que - dizem - a vida que há ali não
é de muito valor - se é que é de algum). Região degradada é toda
aquela em que as classes média e alta evitam ao máximo freqüentar
(quanto mais morar), seja por medo da violência (afinal, deu no JN),
seja por medo da insalubridade do local (e dos locais). Parênteses:
ao falar em insalubridade, me veio à memória a doutoranda em saúde
pública na Faculdade de Medicina da Unicamp que uma vez tive o
desprazer de conhecer. Ela dizia - sem nenhum tom de ironia, sarcasmo
ou provocação - que pobre era igual a rato: só servia para se
reproduzir e transmitir doenças [http://j.mp/cG200908udsp]. Noto
agora que, por ser formada em educação física e não em medicina
ou farmácia, a tal doutoranda era incompetente também na
compreensão do modus operandi
das ciências médicas atuais: tal qual rato, pobre também é usado
como animal de laboratório. Ainda que não com o mesmo preconceito
indecoroso, o discurso do medo não difere em essência. Fecha
parênteses. Entro em um restaurante árabe que conheço há tempos -
o melhor que já comi, além de custar menos da metade que o similar
da Augusta. A dona, uma libanesa, há tempos que não a vejo - talvez
fique durante o dia, eu tenho ido sempre à noite. O relógio que
anda ao contrário marca seis e vinte e cinco. Um dos donos fala ao
celular - em árabe. Certos momentos fala baixo, como se não
quisesse que o ouvissem. Só entendo seu receio quando o outro dono
vai até uma mesa e enceta uma conversa com outros quatro
conterrâneos - ao menos falam em algum língua que desconheço. Na
minha frente, fazem o pedido três portugueses. O garçom é um
andino, na cozinha, dois brasileiros. Mudança radical diante de três
anos atrás, em que trabalhava a família toda (e tenho a impressão
de que uma mocinha, nem quinze anos, tentava me paquerar), e havia
apenas um funcionário, que era garçom e entregador - e buscava
cerveja no bar ao lado, porque ali não vendem, por serem muçulmanos.
Enquanto espero meu lanche entra um negro (africano? haitiano?)
vendendo relógios, bijuterias e carregadores de celular. Cumprimenta
o dono com um sorriso, ele responde. Como não há ninguém
interessado, logo sai. Entra uma garota cheia de piercings, cabeça
raspada - à exceção do moicano-dread -, que tão-logo chega no balcão um
dos rapazes já avisa que vai preparar. Entra um outro homem, que
fala "frango", e recebe um sinal de positivo do rapaz
responsável pelos lanches. O dono que estava ao celular já encerrou
sua conversa e agora explica ao entregador o endereço - noto que
estou cansado ao não conseguir distinguir que idioma eles falam - se
português ou árabe. Pego e pago meu shawarma de sugôg (fala-se sujô) e vou até o metrô.
Futuras kitnets chics (ou quase) são anunciadas como studios hype.
Se for para nelas morar uma classe média disposta a agregar
diversidade a essa babilônia paulistana, que sejam bem vindos. Se
for para "revitalizar" a Luz, querer impor uma nova vida, a
homogeneidade e o deserto dos bairros tidos por bem freqüentados,
onde prédios e residências tem suas fachadas hostis à rua, e na
qual a presença de pessoa é sinônimo de suspeito, que deixem o
centro de São Paulo seguir degradado e desvitalizado dessa vida
estéril preenchida com dinheiro.
São
Paulo, 02 de junho de 2015.
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