sexta-feira, 3 de junho de 2016

Setes mergulhos [diálogos com a dança]

Acostumado a ver os intérpretes se porem à prova no meio da rua ou com o público no palco, Abissal, vai na direção oposta das últimas obras da iN SaiO Cia. de Arte, de Claudia Palma. Desta feita os artistas não estão na rua, em campo aberto para descobrir até onde vai a arte; tampouco o público não está junto, imiscuído aos artistas, mas é posto muito próximo do que foi delimitado como palco - e os artistas, quando não no palco, se tornam eles também público (visível para o grande público). "Delimitado como palco" porque, apresentado no Espaço Missão, do Centro Cultural São Paulo, o grupo teve liberdade para decidir por onde seus intérpretes circulariam. A escolha do Espaço Missão foi interessante, por ser um ambiente imerso, que deixa explícito o tempo todo que estamos abaixo do chão - e estamos todos, artistas e público, no mesmo nível. Sensação geográfica que coaduna com proposta de Abissal: o mergulho de cada intérprete-criador em suas paisagens internas. E esse mergulho está realmente presente, tão presente que, admito, vi não um, mas sete abismos próprios: talvez eu não tenha sido capaz de perceber o fio que percorre todos os artistas e dá alguma unidade a suas danças: com cada um mergulhado em seu abismo não consegui ver o estabelecimento de interação ou diálogo entre eles - realçado pela falta de contato físico. Danças individuais, duos de isolados. O abismo-palco todo iluminado do início ao fim não consegue tornar os intérpretes habitantes de um mesmo momento, apenas corpos ocupantes de um mesmo espaço, e tampouco dá impressão de distanciamento entre eles. É apenas um palco iluminado, que causa um estranhamento e uma expectativa ao se chegar: que abismo é esse, feito de claridade? Ainda mais que chão e a parede de fundo são claros - um prato cheio para se trabalhar com sombras. E foi pelas sombras que criei enorme expectativa - frustrada, o que influenciou na minha percepção geral da obra, admito. Aparecem poucas vezes, sem dar a impressão de terem sido pensadas, nem mesmo notadas positivamente: notei possibilidade de algo a la De Chirico nas sombras do chão, ou da multiplicação dos intérpretes em sombras-fantasmas na parede do fundo; mas foram espasmos de possibilidades. A nudez do espaço aumenta a responsabilidade dos intérpretes e seus abismos, único foco de atenção, passado o momento inicial de aclimação ao abismo-palco. Não decepcionam, tampouco arrebatam. Mergulham, mas não (me) abismam.

03 de junho de 2016


PS: não tem qualquer relação com a dança ou com a companhia, mas como cito o CCSP, apenas reitero meu desacordo com o processo de higienização social (a la Sesc) empreendido pelo Centro Cultural São Paulo durante a gestão Haddad [http://bit.ly/cG140528].

PS2: trocando impressões com uma das artistas do grupo - a partir deste texto, e além -, descobri que entendi errado o folder (e, creio eu, que nem tanto a apresentação): o que assisti foi a uma abertura de processo e não ao espetáculo dado por concluído - daí, creio eu, algumas das lacunas que levantei.

domingo, 29 de maio de 2016

Temeridades - notas sobre o governo golpista (1)

Michel Temer. A imprensa chama Temer de "presidente interino" ou "presidente em exercício", forma de dar a impressão de legalidade ao golpe de Estado que ele encabeça. Eu prefiro não usar eufemismos nesse caso, e chamo logo de "presidente golpista" ou "presidente em exercício do golpe de Estado". Enfim, Temer, nosso presidente golpista, parece ser mesmo a pessoa certa pro momento, um político síntese dos golpistas: eleitoralmente fraco, sem apelo popular mas com apelo junto aos donos da grana e da Grande Imprensa, politicamente forte; apreço zero pela democracia e tudo o que ela representa (povo, pobres, direitos humanos, liberdade, cultura) e dez pelo poder.
Nas últimas eleições que disputou, para deputado federal, em 2006, Temer foi o último dos políticos eleitos pelo PMDB, com cem mil votos. Isso, a princípio, não quer dizer muito: em geral políticos que encampam bandeiras de minorias - como direito dos negros, das mulheres, dos homossexuais, dos quilombolas, dos sem-terra, dos sem-teto, dos que perderam parentes assassinados pela polícia militar, etc - não conseguem votações expressivas, como artistas de tevê, jogadores e cartolas de futebol, ou políticos apoiados por igrejas evangélicas ou coronéis rurais dos sertões brasileiros, e chegam à câmara pelo quociente eleitoral. Ocorre que Temer não encampa qualquer bandeira de minoria. Minto: encampa a bandeira do 1% mais rico, aquele que controla as finanças e o país - o que ele não admite publicamente, claro, diz que age em prol dos "interesses da nação". Temer pode não ter qualquer base social, penar para ganhar eleição, mas sabe se mover no ambiente político, onde tem força desde os anos FHC: em 1997 chantageou o então presidente: ou era eleito presidente do congresso ou não haveria aprovação da emenda da reeleição, que tanto interessava a FHC. Nos anos Lula, se tornou importante aliado do PT - as chantagens, no caso, não foram públicas -, a ponto de ser alçado a vice na chapa com Dilma Rousseff.

Depois de ter conspirado contra a presidenta, fazendo ser aprovado um impeachment que ele mesmo dizia que não havia qualquer base; rejeitado pela maioria da população em pesquisas de opinião, com 1% de intenções de voto em simulações de eleições, Temer assumiu o poder prometendo união e salvação nacional. Não explicou que nação ele quer unir e salvar: seu slogan de governo usa a bandeira da época dos militares e o site WikiLeaks divulgou documentos secretos dos EUA que dizem que o presidente golpista foi informante dos EUA. Extinguiu o principal órgão de combate à corrupção, a Controladoria Geral da União, e aprovou uma lei que proíbe qualquer manifestação onde ele esteja ou "possa ir", sob justificativa e "segurança nacional" (ou seja, qualquer manifestação pode ser enquadrada como perigosa à segurança nacional, ajudada pela lei anti-terrorismo sancionada por Dilma). Foi além: montou um ministério que fica "ombro a hombre" com qualquer gabinete conservador do segundo reinado: homens, brancos, proprietários, heterossexuais (mas, para provar que não são escravocratas, apenas racistas, demitiu o garçom negro que trabalhava para a presidência da República); nenhuma mulher, nenhum negro, nenhum mulato ou pardo, nenhum gay: chamaram isso de "meritocracia" (imagine o bafafá se Dilma tivesse montado um governo só de mulheres, ou só de negros, ou só de homossexuais, ou, pior, só de mulheres negras e homossexuais: nunca admitiram que era um ministério baseado no mérito, ainda que fosse tanto quanto o de Temer). No seu ministério "de notáveis", segundo ele, nove são investigados por algum crime de corrupção; seu ministro mais forte, Romero Jucá (PMDB), não durou dez dias e caiu depois de divulgado áudio em que ele articulava, em março, o impeachment de Dilma para estancar as investigações Lava Jato (ó!, que novidade); o Ministro das Relações Exteriores, José Serra (PSDB), é outro informante dos EUA, conforme papéis dos Estados Unidos divulgados pelo WikiLeaks; o da saúde, Ricardo Barros (PP) defende o fim da saúde universal e o fim do controle dos planos de saúde; o da educação e cultura, agora só educação, Mendonça Barros (DEM), foi contra Fies, Prouni, cotas e grande parte das propostas que ajudaram a incluir milhares de jovens no ensino superior brasileiro; o ministro da justiça e dos direitos humanos, Alexandre de Moraes (PSDB) conseguiu na justiça, quando secretário de Geraldo Alckmin, o direito da polícia militar usar armas letais (isso, pode ir armado de pistolas que criminosos usam pra matar) contra estudantes que protestavam contra o governador; o de desenvolvimento social e agrário, Osmar Terra (PMDB), já falou em cortar o Bolsa-Família; o das cidades, Bruno Araújo (PSDB), já suspendeu 11 mil casas do Minha Casa Minha Vida; e do da economia, Henrique Meirelles (ex-PSDB e egresso do sistema bancário), vimos "medidas necessárias", segundo os especialistas: corte de verbas para programas sociais e aumento de recursos para pagar os especuladores e os bancos (aqueles, que nunca se corrompem, apesar de toda o dinheiro de corrupção passar pelo sistema bancário, o suíço, que seja). E isso que só foram 15 dias de governo!

29 de maio de 2016

PS: este texto é parte do artigo "Breve apresentação de personagens para a compreensão do golpe de Estado no Brasil em 2016.", a ser publicado no Boletim SPM Informa, do Serviço Pastoral dos Migrantes, de junho de 2016 (www.casuistica.net/spminforma)

O presidente com o apoio "de todos os brasileiros" sai assim de casa