quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Asco

Asco. Foi essa a sensação que me tomou ao ler a notícia da prisão de Guido Mantega, enquanto estava no hospital, acompanhando a cirurgia de sua mulher, em luta contra o câncer, por ordem do justiceiro Sérgio Moro. Houve quem falasse em "monstruosidade", outros em "desumanidade", eu realmente não sei como qualificar. O que Sérgio Moro fez foi deixar claro que tortura e atentado contra a vida são hoje expediente válidos no marco legal da justiça brasileira - indo além das torturas e assassinatos extra-judiciais das polícias militares, defendidas e estimuladas por políticos como Alckmin e criminosos televisivos como Datena. 
Não tive como não lembrar de meu pai, vitimado há menos de um ano pelo câncer, contra o qual lutou por seis anos. Quando a doença está estável, já é desgastante - mas convivível, meu pai soube seguir com a vida, a despeito da doença, e isso facilitava a vida de todos. Em momento críticos, como quando se é necessário recorrer a intervenções cirúrgicas, o desgaste aos próximos é difícil de ser descrito: rondam fantasmas mil, de se a cirurgia será bem-sucedida, se o pós-cirúrgico será tolerável, se depois disso tudo será possível retomar certa normalidade - e em caso de negativa a qualquer dessas interrogações, surgem mil outras de como será a vida a partir de então; tenta-se afogar toda possibilidade de pensar no pior, evita-se pensar no dia seguinte, porque é preciso sobreviver ao hoje, e isso, que costuma ser básico, é de uma incerteza angustiante nessas situações. Ao enfermo, a presença das pessoas queridas junto a ele ajuda na recuperação - ou numa partida mais tranqüila.
Sérgio Moro talvez nunca tenha sofrido a perda de alguém muito próximo - ou pode ser que seja um psicopata ou perverso a quem a vida do Outro, não importa quem, nada vale -, daí não conseguir se condoer do drama de Mantega, mas um mínimo de conhecimento - e isso seria de imaginar de alguém que passou em concurso para juiz - permite saber que o que ele está fazendo é atentar contra a vida de Eliane. Lembro de relatos da ditadura de Franco, na Espanha, em que era comum a prisão de casal e filhos e fazer um revezamento de tortura entre a família, de modo a tornar a coisa um pouco mais cruel. Discretamente, porém com pleno conhecimento do que faz, Moro aplica (também) esses métodos da ditadura franquista no Brasil - já o tem feito com a perseguição a familiares de Lula, agora deixa claro que não há qualquer comprometimento com a vida das "pessoas do mal" em sua sana persecutória.
A Polícia Federal deu sua contribuição ao triste quadro que remete aos tempos de recrudescimento nazista, ao cumprir a ordem judicial - dizer que foi "infeliz coincidência" é uma hipocrisia cretina: pessoas não vão ao hospital para se divertir, e os policiais sabem que o Hospital Albert Einstein é um hospital, como diz o nome, e não um cassino ilegal. Um dos procuradores da república de Curitiba defendeu a ação, dizendo que “não há como não cumprir uma ordem judicial”: a velha escusa nazista da ordem burocrática para realizar qual atrocidade for sem se comprometer: só cumpriam ordens. Vale lembrar que não são poucos os casos de militares (MILITARES) israelenses que se recusam a cumprir ordem de ataque contra palestinos - isso traz sanções, é certo, entretanto mostra que é possível descumprir qual ordem for (não estando num estado de terror), basta um mínimo de consciência e de empatia humana com o Outro. Ou, para ficar nos termos que os nazi-golpistas tanto gostam: basta ter um mínimo de ética e da moral cristã.
Ao fim, o efeito mais provável de mais essa arbitrariedade de Sérgio Moro é aumentar a espiral de ódio que envenena o país desde 2014 de maneira intensiva (e eu lembro do desenho de uma criança com discurso de ódio à Dilma, Lula e ao PT, aceito pela escola e louvado pela mãe). O desejo de que realmente ocorra algo próximo de uma guerra civil, anunciada por Requião na farsa do impeachment, parece nortear as ações dos golpistas: um estado de sítio serviria para legitimar o estado de exceção em que vivemos, as arbitrariedades em nome não mais do combate à corrupção, e sim da ordem e da segurança pública. Com seguranças, bons salários, status de heróis nacional, e nenhum poder a contrapô-los, justiceiro Moro e seus capangas do MPF e PF (a serviço dos donos do dinheiro) se divertem com a vida de milhões de brasileiros comuns.
Infelizmente, diante de tudo o que tem acontecido nos últimos tempos no país (a favelização geral do Brasil, ou seja, uma terra sem lei em que vale o desejo do mais forte, o arbítrio da autoridade sádico-estatal, e a vida humana nada vale [http://bit.ly/cG160313]) também eu me vejo sendo tragado pela espiral do ódio. Socorro!
Em tempo: In Nomine Dei. Ou alguém bota um cabresto em Moro, Dallagnol e cia, ou logo o Brasil viverá as cenas de Münster recriadas por Saramago.

22 de setembro de 2016

ps: leio que Moro revogou a prisão. Hipócrita. Não o fez por qualquer respeito a Mantega e sua companheira, e sim porque isso pegou muito mal à sua imagem.


terça-feira, 13 de setembro de 2016

Quando professoras mandam, alunos embrutecem

Estou no Sesc. Obediente aos comandos pós-modernos, espero o painel luminoso avisar que é minha vez. Enquanto isso avanço com a leitura de Conhecimento do Inferno, do Lobo Antunes. Ao centro da sala, as mesas para inscrições, matrículas e afins. Ao centro desse centro, de um armário com ar de guichê antigo, impressoras cospem guias e formulários. Nessa organização espacial não há lugar para o conservador - penso em Todos os Nomes, do Saramago -, o mais próximo seria justo onde estão as impressoras. Sai a clara hierarquia entra o sutil panóptico. De repente ouço certa barulheira vinda de não sei onde - um tanto incomum a uma ala administrativa do sempre bem-comportado-bem-controlado Sesc. Logo aparecem os autores de todo aquele barulho: um grupo de alunos da rede municipal de São Paulo. Pelos dentes faltantes de vários, devem estar na faixa dos sete anos. Passam por mim fazendo pequenas brincadeiras entre si, apesar do olhar desaprovador da professora. Eles passam, volta o barulho. É outra turma. Param ao pé da escada que desciam - estou sentado embaixo da escada, sou o único desse lado da sala. "É pra vocês ficarem em fila", diz a professora, em tom duro. Os alunos são até mais comportados que o primeiro grupo, mas não andam na formação militar exigida pela professora. Ela reprime: "Eu mandei ficar em fila!". Mandar - o verbo me dói. Manda quem não tem autoridade, apenas abusa autoritariamente de sua hierarquia. Olho rapidamente a mandante: quem dá ordens a crianças de sete anos não é educador, é, no máximo, adestrador - a mulher não é professora, é uma fracassada que tem diante de si vinte futuros para destruir, e pela amostra que tive, não posso duvidar que o faria com esmero e prazer sádico. Reparo nos alunos, crianças que exalam inocência e certa impressão de medo. Um deles, ao passar por mim, me cumprimenta com um tchau tímido. Me surpreendo, e em certa medida até me desconserto: com minha comprida barba, depois de escutar o que dissera a professora, não me julgava alguém com ar muito simpático, ainda mais a crianças. Respondo com igual gesto. Outros se empolgam em me cumprimentar também - todos com tchaus. Eu vario em minhas respostas, ora tchau, ora jóia, ora só um aceno, ora sorrio. Passa o grupo todo. Outras duas turmas ainda estão por vir, em nenhuma delas vejo professora como a do segundo, ainda que não me pareçam simpáticas (de positivo, a professora do terceiro grupo era uma transexual). No último grupo, recebo novo cumprimento, de uma garota, que sai do gesto e vai para a falar: "oi". "Olá", respondo, e termina nisso nossa breve interação - reparo que esse grupo não anda em fila e isso não é problema para a professora. No pátio abaixo, cuja visão se abre atrás de mim, sentam-se nas mesas - talvez para o lanche, ainda que eu não veja comida. Há conversas, barulhos, certa algazarra. Lembro da minha infância, o barulho do recreio na escola Dona Frida, na esquina de casa - segunda escola da cidade, destruída para dar lugar aos lucros da especulação imobiliária. Volto ao meu livro: "um luxo que os asilados se não podem consentir porque os amputámos do passado e do futuro e os reduzimos, por meio de injecções, de electrochoques, de comas de insulina, a bichos obedientes de expressões trituradas pelo desinteresse e pelo medo". Com a algazarra ao fundo, noto que Lobo Antunes, se trocasse electrochoques por reprimendas e comas insulina por ataques à auto-estima, poderia estar falando da educação pública do estado de São Paulo depois de vinte anos de PSDB, da proposta dos boçais do "Escola sem Partido", da educação confessional evangélica ou das escolas apostiladas especializadas em formar idiotas que passam no vestibular, mas ele está falando dos internos do hospital Miguel de Bombarda, asilo psiquiátrico onde médicos transformam humanos em vegetais. Lembro da professora que manda, penso em muitos dos que hoje detêm o poder no país, de alto a baixo, do presidente ao pai da família tradicional brasileira: seu sonho é o de transformar toda escola em um Miguel Bombarda mirim, em que os alunos se conformam feito bichos obedientes à mutilação do seu presente, feita em nome de um futuro no qual sua autonomia não é maior que a de um boi, e em que o sentido da vida se esgarça em obedecer, trabalhar e consumir - sem pensar, sempre sem pensar.

13 de setembro de 2016.