Estou no Sesc.
Obediente aos comandos pós-modernos, espero o painel luminoso avisar
que é minha vez. Enquanto isso avanço com a leitura de Conhecimento
do Inferno, do Lobo Antunes. Ao centro da sala, as mesas para
inscrições, matrículas e afins. Ao centro desse centro, de um
armário com ar de guichê antigo, impressoras cospem guias e
formulários. Nessa organização espacial não há lugar para o
conservador - penso em Todos os Nomes, do Saramago -, o mais
próximo seria justo onde estão as impressoras. Sai a clara hierarquia entra o sutil panóptico. De repente ouço
certa barulheira vinda de não sei onde - um tanto incomum a uma ala
administrativa do sempre bem-comportado-bem-controlado Sesc. Logo
aparecem os autores de todo aquele barulho: um grupo de alunos da
rede municipal de São Paulo. Pelos dentes faltantes de vários,
devem estar na faixa dos sete anos. Passam por mim fazendo pequenas
brincadeiras entre si, apesar do olhar desaprovador da professora.
Eles passam, volta o barulho. É outra turma. Param ao pé da escada
que desciam - estou sentado embaixo da escada, sou o único desse
lado da sala. "É pra vocês ficarem em fila", diz a
professora, em tom duro. Os alunos são até mais comportados que o
primeiro grupo, mas não andam na formação militar exigida pela
professora. Ela reprime: "Eu mandei ficar em fila!". Mandar
- o verbo me dói. Manda quem não tem autoridade, apenas abusa
autoritariamente de sua hierarquia. Olho rapidamente a mandante: quem
dá ordens a crianças de sete anos não é educador, é, no máximo,
adestrador - a mulher não é professora, é uma fracassada que tem
diante de si vinte futuros para destruir, e pela amostra que tive, não posso duvidar que o faria com esmero e prazer sádico. Reparo nos alunos, crianças que exalam inocência e certa impressão de medo. Um deles, ao passar
por mim, me cumprimenta com um tchau tímido. Me surpreendo, e em certa
medida até me desconserto: com minha comprida barba, depois de
escutar o que dissera a professora, não me julgava alguém com ar
muito simpático, ainda mais a crianças. Respondo com igual gesto.
Outros se empolgam em me cumprimentar também - todos com tchaus. Eu
vario em minhas respostas, ora tchau, ora jóia, ora só um aceno,
ora sorrio. Passa o grupo todo. Outras duas turmas ainda estão por
vir, em nenhuma delas vejo professora como a do segundo, ainda que não
me pareçam simpáticas (de positivo, a professora do terceiro grupo
era uma transexual). No último grupo, recebo novo cumprimento, de
uma garota, que sai do gesto e vai para a falar: "oi".
"Olá", respondo, e termina nisso nossa breve interação -
reparo que esse grupo não anda em fila e isso não é problema para
a professora. No pátio abaixo, cuja visão se abre atrás de mim,
sentam-se nas mesas - talvez para o lanche, ainda que eu não veja
comida. Há conversas, barulhos, certa algazarra. Lembro da minha
infância, o barulho do recreio na escola Dona Frida, na esquina de
casa - segunda escola da cidade, destruída para dar lugar aos lucros
da especulação imobiliária. Volto ao meu livro: "um luxo que
os asilados se não podem consentir porque os amputámos do passado e
do futuro e os reduzimos, por meio de injecções, de electrochoques,
de comas de insulina, a bichos obedientes de expressões trituradas
pelo desinteresse e pelo medo". Com a algazarra ao fundo, noto
que Lobo Antunes, se trocasse electrochoques por reprimendas e comas
insulina por ataques à auto-estima, poderia estar falando da
educação pública do estado de São Paulo depois de vinte anos de PSDB, da
proposta dos boçais do "Escola sem Partido", da educação
confessional evangélica ou das escolas apostiladas especializadas em
formar idiotas que passam no vestibular, mas ele está falando dos
internos do hospital Miguel de Bombarda, asilo psiquiátrico onde
médicos transformam humanos em vegetais. Lembro da professora que manda, penso em muitos dos que hoje detêm o poder no país, de alto a baixo, do presidente ao pai da família tradicional brasileira: seu sonho é o de transformar toda escola em um Miguel Bombarda mirim, em que os alunos se conformam feito bichos obedientes à mutilação do seu presente, feita em nome de um futuro no qual sua autonomia não é maior que a de um boi, e em que o sentido da vida se esgarça em obedecer, trabalhar e consumir - sem pensar, sempre sem pensar.
13 de setembro de 2016.
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