quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

A PEC da desestabilização

Com o Estado tomado pelas finanças, há uma busca agressiva por parte dos donos do poder pelo esvaziamento da política na sociedade, de forma a garantir a platitude necessária à maximização de seus lucros. A Política, a exigência dos "de fora" em serem incluídos no pretenso bem-estar geral da nação, desestabiliza, ou melhor, torna evidente a falta de qualquer estabilidade na sociedade contemporânea, é capaz de mudar rumos - os tais "contratos" que governos progressistas precisam respeitar quando assumem o executivo -, por isso deve ser combatida, por isso deve ser tratada como sinônimo de "palavrão" (quantas vezes Alckmin não desqualificou greves e movimentos reivindicatórios por serem "políticos", para não falar no seu pupilo, o lobbysta que não faz política mas disputa eleição e ainda não saiu do palanque). Uma das funções de Lula no executivo federal, enquanto grande conciliador nacional, foi dar um pouco de sossego a uma turba que se politizava via lutas e reivindicações sociais, e ameaçava questionar privilégios, reivindicar direitos. Houve quem anunciasse ali o fim da política. Exagero: Lula, inteligente e experiente, sabe que política é imanente à sociedade humana, o que o ex-presidente fez foi manter a política em intensidade muito baixa - talvez seu grande erro: conseguiu considerável apoio e tranqüilidade durante seu mandato, mas deu as condições ideias para a gestação da serpente que vem engolindo o PT, as esquerdas e a incipiente democracia brasileira.
O grupo que assumiu o poder com o golpe de Estado de 2016 aparenta mais esperto que o PT, mas tenho cá sérias dúvidas: parecem crentes demais para conseguir perceber o que se passa ao seu redor. A PEC 241/55 pode ser vista como a tentativa de institucionalizar o fim da política sem precisar recorrer a uma ditadura de linhas totalitárias (o golpe de 64, convém lembrar, manteve alguma política acontecendo). O golpe, contudo, pode sair pela culatra: soa absurda a idéia de uma sociedade que prescinda da política - e qual não é o principal instrumento de disputa política no Estado moderno que não o orçamento, desde a cobrança de impostos até a alocação dos recursos? Tentar sufocar a política é dar fermento para que ela ressurja com muito mais força e vigor - o que pode gerar reações igualmente vigorosas e violentas do lado oposto, da anti-política (de inspiração nazi-fascista). 
Ainda antes de possível revolta popular nas ruas, há sinais de que a PEC surge capenga, e quem o diz é um dos porta-vozes oficiais do golpe. O Datafolha não possui credibilidade, mas é reconhecido por ser falho e adulterar dados para favorecer suas posições - vale lembrar a notícia, a partir de dados forjados, deturpados e mal apresentados, que diziam que 50% da população queria a permanência de Temer, pouco antes do desfecho do golpe contra Dilma [http://bit.ly/2hPtcHp]. Pois é esse instituto quem anuncia que 60% da população é contra a PEC 241/55 [http://bit.ly/2hy0749], isso mesmo com toda propaganda feita pelo jornalismo da chamada Grande Imprensa, de que a tal emenda evitaria a quebra do país e permitiria a retomada do investimento e do crescimento. A lógica é simples: com dinheiro garantido para os juros da dívida, os "investidores" (termo genérico para especulador) voltariam a aplicar no país, por dar estabilidade ao seu investimento.
O dado do Datafolha deixa claro que, apesar da emenda constitucional, não deve haver estabilidade nos próximos anos, a não ser que se recorra a uma ditadura aberta e se implemente a tão sonhada paz de cemitério (com trabalhadores zumbis) que o mercado elogia. Se se mantiver o mínimo do lustro de democracia formal, a oposição à PEC deve ser bandeira forte em 2018, no mais tardar em 2022, quando seus efeitos serão sentidos (ainda que economia não seja ciência exata, há certos direcionamentos cuja direção é evidente e permite antever muito do que espera). Alckmin, nome forte da extrema-direita tupiniquim, já deu entrevista criticando a proposta [http://bit.ly/2gMX9Kj] - a esquerda, desnecessário falar. A tendência, portanto, é de permanente crise entre os poderes - com agudização da crise de representatividade dos políticos eleitos para o legislativo -, ou uma nova ementa à constituição que desfaça a PEC dos golpistas. De qualquer modo, contrariamente ao que dizem os analistas da Grande Imprensa, a PEC 241/55 deve afastar qualquer estabilidade jurídica e econômica, condição para atrair investimentos ou mesmo especuladores. Por mais um caminho, o golpe deve deixar como maior legado a instabilidade - e há aqueles que saberão ganhar muito com isso.

14 de dezembro de 2016


sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Sexta qualquer de ordem e progresso e humilhação

Duas da tarde de uma sexta-feira em uma cidade grande de um país que se anuncia democrático e de direito, se diz civilizado e abençoado por deus. Perto da praça da Sé, três militares revistam quatro suspeitos. São quatro negros/morenos e talvez seja esse seu crime. Todos os sete aparentam ser brasileiros - ou seja, falantes nativos de português - e dotados do que se chama de "razão". Poderiam, portanto, se comunicar verbalmente, mas os PMs nada falam - tudo o que tinham para dizer, "mão na cabeça", foi dito no início da abordagem e obedecido sem questionamento. Puxam os suspeitos pela gola da camisa para a esquerda e para a direita, como se fossem incompreendidos se dissessem "um passo para a esquerda, por favor", ou como se toda sua autoridade caísse se uma daquelas quatro pessoas não cumprisse de imediato a ordem. Dois militares revistam, o terceiro fica na cobertura, a mão no coldre, pronto para sacar a arma e atirar, caso uma daquelas pessoas com as mãos na cabeça e sem esboçar qualquer reação faça alguma mágica e ponha em perigo um dos três funcionários a serviço da ordem, ou caso tentem fugir daquela abordagem suspeita - nunca o encontrei, mas certamente em nossa Constituição há um artigo que diz que qualquer insubordinação contra a polícia é passível de pena de morte com execução sumária, pena agravada se for preto pobre e periférico. O espetáculo serve para a humilhação dos quatro homens, expostos à multidão que acompanha a ação policial. Sigo meu trajeto, mas tenho a infelicidade de ouvir um dos diálogos entre dois dos espectadores. Ele lamenta ao outro, decepcionado: é o Choque, tinha que ser a Rota! Ordem e progresso. No Brasil, o Estado corrompeu - com aplauso das elites e de um lumpem ignaro que almeja um dia ser elevado a capitão do mato - o "monopólio legítimo da força" em "monopólio (pretensamente) legítimo do terror" - e agora começa a democratizar o terror para todos os que não agradem aos donos do poder, os patrões dos PMs que fazem essa cena deprimente. Ainda escrevo o rascunho desta crônica quando, quinze minutos depois da cena, vejo os três militares passarem na minha frente - ou seja, não havia nada que exige encaminhamento daqueles quatro homens. Os militares caminham candidamente, como se passeassem no parque num domingo de folga. Talvez tenham a sensação de dever cumprido, ao impôr a humilhação pública a três inocentes culpados por serem periféricos freqüentando a via pública como se tivessem esse direito, por serem negros num país que ainda ressente como injustiça o fim da escravidão.

18 de novembro de 2016