terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

USP, metrô e cacoetes da academia

No Fakebook um amigo pede ajuda para uma matéria que está redigindo: quer saber o porquê de não haver estação de metrô dentro da USP, do veto de Rodas a ela. Solícitos amigos pós-formados nas melhores universidades brasileiras aparecem para ajudar - apesar de não terem muita idéia do imbróglio da estação, nem muita noção de urbanismo e cidade (não faz parte do objeto específico de suas pesquisas, logo não é do seu interesse), nem muita reflexão crítica sobre si e sobre a academia brasileira.
Uma das amigas o corrige: quem teria vetado a estação fora a Suely Vilela e não o Grandino Rodas, e informa que uma urbanista professora da FAU deveria dar a ele as informações. Fui no blogue da professora, ela fica na generalidade: "Segundo informações que obtive de um técnico do metrô, foi a reitoria da USP que não permitiu a instalação de uma estação dentro do campus, alegando questões de segurança".
Outro amigo diz ajudar na contextualização, já que não sabe nada mais específico: segundo ele, na década de 90 a USP era um grande parque para populares, e que há, desde essa época, a tendência de fechamento da universidade à comunidade, com a construção do muro e outros quetais, sempre em nome da segurança.
Também eu meti o bedelho, apesar de tampouco ser entendido no assunto (por obra do acaso, acabei não assumindo meu posto de OPS na Companhia do Metropolitano de São Paulo). Ainda que seja bem provável que a USP tenha sido consultada novamente sobre a estação quando na construção da linha amarela, em 2004, eu tinha ouvido falar do veto à estação dentro do campus universitário ainda no planejamento das linhas, na década de 70. Ouvira tal história de uma professora de outra universidade. Ela se mudara não fazia muito para o Brasil e se deparara com aquele imbróglio, facilmente resolvido, pois a USP não queria populacho a empestar seu ar (os termos ficam por minha conta). Ela teria percebido logo ali qual o ethos da academia tupiniquim. Ouvi história semelhante de uma amiga metroviária (a mesma que me contou do ramal Moema da linha azul), de que a hoje chamada linha amarela terminava na estação Jockey Club por conta da recusa da USP de que houvesse uma estação no seu território - teria aprendido isso no curso de formação. Como a matéria não era minha e eu só sabia de ouvir dizer, me limitei a dar as coordenadas ao amigo: "na década de 70, no planejamento da rede, teria sido proposto e a reitoria recusado. Metroviários podem te informar".
Meu amigo agradeceu à ajuda de todos e disse que entraria em contato com a professora da FAU. Aqui começo minha crítica à falta de auto-reflexão e aos cacoetes da academia brasileira, que poderia dizer que é um projeto de poder de uma elite periférica da casta dos donos do poder.
O comentário do amigo me fez lembrar uma tirinha da Mafalda, em que um dos personagens (acho que o Miguelito) questiona para quê havia brinquedos e tudo o mais antigamente, se ele nem era nascido. A USP como um parque aberto pode ser uma memória dele, digna de registro, mas que precisa de contextualização e crítica, ainda mais por se tratar de um sociólogo com pós-doutorado. Conhecendo minimamente a história da universidade pública brasileira, a USP ter sido uma espécie de parque na década de 90 parece antes obra de lentidão burocrática para acompanhar o crescimento da cidade ao seu redor do que qualquer real abertura à população - ok, vá lá, talvez fosse alguma lufada pseudo-democratizante na esteira de 1988: abramos os canteiros ao povo, antes que comecem a querer entrar nas salas de aula. É evidente a qualquer um que não se deixe inebriar por discursos de dever-ser que se pretendem atuais, que a USP, a exemplo das demais universidade públicas brasileiras - a gestão Haddad no Ministério da Educação me parece ter sido a primeira a tentar enfrentar de verdade isso, ainda que timidamente - é fechada para pretos pobres e periféricos de seu início até hoje: basta ver a cor da pele dos seus alunos, quantos negros fazem medicina, economia, engenharia ou arquitetura (vi mais alunos negros na PUC-SP que na Unicamp). Murar a universidade soa uma tentativa de voltar aos "bons velhos tempos" em que São Paulo e aquele povo ignorante era uma mancha urbana lá longe, e a pesquisa acadêmica podia ocorrer tranquila e segura, falando sobre os problemas sociais, daquela sociedade de homens pretos e mulheres pobres que diziam existir do outro lado do rio. Desde sempre - com suas honrosas exceções, é claro -, boa parcela da esquerda acadêmica se recusa a aceitar que é parte privilegiada do sistema e está muito bem assim, com pouco interesse em mudanças estruturais - pois seriam atingidos por elas. Afinal, mudar as estruturas significa abrir mão do poder, aceitar que seus doutorados são títulos de saberes parciais, precários e muitas vezes sem maiores aplicações práticas imediatas, e que no resto são ignorantes, podendo estar aquém de muitas pessoas que só terminaram o ensino médio (falta-nos a lucidez de Fernando Pessoa). Assumir isso, dentre outras coisas, faria com que perdessem, por exemplo, seu acesso à indústria do espetáculo como "especialistas" (esse genérico termo para calar a boca dos que não são), sem contar toda a deferência que ganham dos populares, bestializados com seu linguajar pomposo.
O comentário da outra amiga que citei - a exemplo do amigo e deste escriba, cientista social (no caso, antropóloga) na faixa dos 30 anos -, é a indicação de uma professora que pouco pode ajudar: apesar de urbanista, ela não é entendida em transporte público, e isso é evidente ao consultar seu blog. Entretanto, é uma doutora professora da USP, produtora e divulgadora do saber (pouco importa sobre o que), e sua palavra merece prioridade frente a de um serviçal uniformizado, um metroviário OPE (operador de estação), de quem se exige só segundo grau (minha amiga metroviária era formada em filosofia, mas seu diploma pouco valia na escala social de valor diante do cargo que ocupava). 
Só a universidade produz saber, só quem está nela ou passou por ela tem direito a se manifestar: é um discurso-oculto comum à academia, reiterado diariamente pela mídia e seus "especialistas". Por ser útil e confortável aos acadêmicos, esse pressuposto não é questionado - ressalto: talvez não seja má-fé, só falta de hábito de refletir um pouco sobre si próprio. Lembro de quando estudava na USP-Ribeirão, e o caderno local da Folha costumava entrevistar professores meus da psicologia sobre assuntos de política partidária - pelo que vi em sala de aula, na melhor das hipóteses eles eram tão entendidos quanto eu, mas eram doutores em psicobiologia e assuntos afins, logo, especialistas aptos a falar das disputas entre PT e PSDB. Ou quantas discussões não presenciei em que um dos interlocutores solta um disfarçado 'cala a boca' para o outro, porque ele é formado em qualquer coisa por uma universidade pública e outro não tem diploma algum - pouco importa que seu diploma seja de medicina e estejam falando do trânsito (de cientistas sociais e suas viseiras, esse assunto deixo para outra crônica). Nessa apropriação da universidade da produção do saber legítimo, não sei se é recente, ou eu quem tenho notado só agora, por ter me aproximado da área, após ter feito um curso livre de iluminação cênica, mas até a produção artística tem sido abduzida pela universidade: artista bom é artista com diploma universitário (basta ver quem vai dar oficinas por aí, se não forem oficinas para periféricos, os artistas sempre ostentam um título acadêmico).
Estou curioso sobre a matéria da não-estação de Metrô na USP. Por meu amigo não ser jornalista de formação, tenho esperança de descobrir novos aspectos dessa história. Independente disso, a não-estação de Metrô dentro no campus é outra metáfora involuntária que a USP oferece para compreender a visão que ela tem de si e da sociedade que a serve: por ser não apenas uma universidade de elite, como para a elite, nada mais lógico que evitar a nódoa de um transporte de massa a estacionar em seu interior: já pensou se esse povo ignorante resolve usar a biblioteca?

21 de fevereiro de 2017



PS: já que falei de metrô, dois amigos me falaram de uma "plataforma fantasma" da linha azul (antiga norte-sul) na avenida 23 de Maio, no ramal Moema, mas não souberam me indicar a localização. Já achei a estação fantasma, a Pedroso, da nati-morta linha sul, mas a tal plataforma, nunca. Se alguém souber onde fica, me mostra!

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

O que é isso?!

Quando acordo, Mafalda, minha gata, costuma estar dormindo no pé da cama. Ao tocar o despertador, ela levanta a cabeça e me observa: se apenas desligo o aparelho e volto a dormir, também ela volta aos braços de Hypnos; se dou sinal de que irei acordar, ela também desperta e de pronto começa a miar seu miado reclamão - descobriu cedo que, pela manhã, é gastar ATP à toa tentar me acordar. Se Guile está com ela, já sei: falta comida no pote ou a caixa de areia está muito suja, daí o reforço do irmão para reclamar. O esquema não muda se Natália dorme na minha casa - pela manhã está ela no pé da cama, a ocupar o espaço que Natália não alcança.
Esta semana veio dormir aqui em casa também o Vinícius, seis anos, filho da Natália. Apesar de muito sociáveis, Mafalda e Guile ainda guardam reservas para com esse ser humano diminuto com muita energia que pula e grita e berra e corre atrás deles ("correr" é aqui utilizado como licença poética, aos quatro ou cinco passos que meu apartamento permite que sejam dados antes de encontrar uma parede ou um móvel) e o máximo que sossega é por dois minutos, quando tenta pescá-los com algum fio sem graça. Já foram mais ariscos, porém ainda não se entregam tranqüilamente aos seus agrados - é perceptível uma certa tensão enquanto recebem festinha, e correm ao primeiro berro do garoto, o que não costuma demorar sequer um minuto.
Enfim, dormiu o Vini aqui, em um colchão no chão, já que minha cama sequer é de casal para dar conta de comportar três corpos humanos neste calor paulistano. No outro dia, sei da manhã, Natália acorda e vai para sua aula, fecho a porta para ela e volto para a cama. É quando reparo nos dois gatos. Estão parados ao lado da cama, no chão, entre minha cama e o colchão onde Vini dorme. Tão logo notam que os observo começam a miar inconformados, como a perguntar o que significa aquele colchão atrapalhando a livre circulação da sala até o quarto e, pior, com o pequeno ser elétrico escarrapachado nele. Alternam observações ao Vini e miados para mim, que ao invés de responder ou tomar qualquer atitude, pego meu tablet e tiro uma foto da inusitada cena, antes de voltar a dormir. Os gatos, não sei o que fizeram, a partir de então. Talvez tenham voltado a seus afazeres, ou aproveitado para descansar um pouco mais, já prevendo que em breve a casa estaria tomadas por gritos e risadas altas e tentativas de pescaria de gatos e outras atividades que me cansam só de olhar, às oito da manhã.

20 de fevereiro de 2017