sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Huck, o candidato

Luciano Huck, a despeito do que diga, segue candidato à presidência da República Bananeira do Brazil. Artigos na Folha e ameaças da Globo são apenas jogo de cena: sua candidatura só pode ser dada como enterrada quando não tiver mais possibilidade de acontecer - abril, conforme as leis atuais, se não acharem mais apropriado mudá-las, tendo em vista a casuística do momento.
Primeiro fator de que segue candidato: Huck não teve essa ideia ano passado, em um jantar na casa de alguma socialite. É projeto acalentado há quase uma década: não achei que foi puro flerte quando li, em entrevista para a revista Alfa, em 2011, que o garoto propaganda da Globo desejava se tornar presidente da República, por mais que desconversasse (glo.bo/2o3cTMG, não achei a entrevista original). São ao menos sete anos desde que foi tornado público esse desejo, tempo para se preparar - não digo para a administração pública, mas para a campanha política -, fazer os contatos políticos e econômicos, preparar a imagem de maior impacto eleitoral. Não por acaso, Huck tem potencial de ser o candidato dos dois extremos da sociedade: dos com muito dinheiro, que saem que ganharão com o marido da Angélica, e dos sem nada que não uma esperança ignorante e vã de um dia tirarem a sorte grande - na Mega sena ou no Caldeirão do Huck.
Segundo fator: a exemplo das igrejas evangélicas, a Rede Globo sempre teve sua bancada legislativa - de Miro Teixeira a Lasier Martins -, e não há por que não ela não querer um testa de ferro seu assumindo o executivo federal (já que os Marinho não tem o carisma de um Berlusconi), ainda mais nestes tempos em que, por mais que siga hegemônica, tem seu poder enfraquecido como nunca antes - vide o caso de não conseguir manter a narrativa do golpe para além de um pequeno círculo de neofascistas, ou de sequer conseguir derrubar Temer, o minúsculo.
Terceiro fator: a crise política e o estado de anomia na (proto)nação são o cavalo selado passando na frente de Huck e Globo. O impedimento de Lula priva parte da população de seu candidato, e Huck tenta justo entrar nessa faixa do eleitorado - de muito trabalho, poucas recompensas, mas confiantes no futuro, sem ressentimentos, mesmo que pague pelo caviar que a elite segue a desfrutar com seu desemprego. Huck pode adiar para o futuro sua candidatura, porém 2018 se mostra momento mais que propício para aventureiros - como 1989.
Quarto fator: é do interesse do PSDB Huck candidato. Alckmin não tem conseguido decolar, apesar de todo apoio midiático e financeiro que tem tido. Um segundo nome de confiança das elites é importante: se Alckmin seguir a patinar, atira-se ao mar e embarca na canoa Huck - o exemplo vem das origens tucanas: PMDB, 1989. Se Alckmin avançar, Huck pode ser um ótimo cabo eleitoral no segundo turno, transferindo parte de seus votos ao Picolé de Chuchu. E não sejamos ingênuos: ao contrário das esquerdas, que adoram se atacar entre si (vide Erundina atacando Haddad, em debate de 2016), a direita, mesmo dividida, sabe que não cabe atirar dentro do próprio campo: Alckmin e Huck, mesmo que adversários, dificilmente entrarão em pugna. (Uma amiga levantava ainda a questão religiosa como outro ponto fraco do apresentador).
Vejo três grandes pontos fracos de Huck. Um deles, sua ligação com a Globo - parte da população já notou que a rede forjou uma série de fake news para pôr no governo Temer e um projeto que arruinou não apenas a nação como a vida das pessoas comuns. O segundo, suas muitas fotos com políticos que ficaram manchados com a atual crise, como Aécio Neves - pode rolar um "eu não sabia", porém ainda assim é vidraça para adversários: "se não conhece seus amigos de confiança, como vai ter controle da máquina estatal, cheio de desconhecidos, e em que responderá pelo ato de todos, podendo ser incriminado por 'ato de ofício indeterminado'?". Por fim, o sucesso eleitoral de Doria Jr e seu fracasso administrativo. Nenhum desses três pontos, por ora, são capazes de naufragar sua candidatura, mas podem custar a eleição. 
A reportagem da Folha de São Paulo, sobre o bolsa-jatinho de Huck, pode ser encarado como balão de ensaio do quanto sua candidatura resiste a ataques. O jornalismo lixo brasileiro é capaz de ir muito abaixo disso, escarafunchar a vida pessoal do apresentador e de sua família propaganda de margarina, e, caso descubra algo nesse campo, feri-lo gravemente frente seu eleitorado. Não defendo esse tipo de jornalismo ou de ativismo político, porém a mídia não se faz de rogada em usá-lo contra quem é de esquerda - e certamente não usará contra quem é amigo seu.
Fica, então, a questão: por que essa dança do "desiste, não desiste, desiste de verdade, não desiste de verdade, desiste, sim, ou não, desdesiste"? Ao que tudo indica, trata-se de estratégia de marketing. Além de deixar seu nome ventilado seguidamente mas não o tempo todo, busca fazer com que Huck entre - caso entre - na disputa como uma onda, um movimento "irresistível" que cresce. Lançou (lançaram, segundo ele) seu nome, as pesquisas deram um dígito, a Globo fez a ceninha de colocá-lo contra a parede: ou candidatura ou contrato; desistiu em artigo na Folha (onde estaria um resto de classe média intelectual liberal não fascista, e até algumas pessoas de esquerda, se é que ainda restam entre os assinantes desse panfleto), com referências à família e à sua caravana pelo país, que conheceria in loco - versão televisiva das caravanas lulistas de 1994? Foi relançado por ninguém menos que o ex-presidente FHC. Nova pesquisa, novamente um dígito, novamente Globo cobrando resposta, novamente ele desistindo do que já disse ter desistido - mas os contatos de bastidores seguem. Seu nome ainda constará nas próximas pesquisas eleitorais, será trazido pela mídia e por políticos, se mostrar um início de crescimento, Huck assumirá a candidatura, e o fim do contrato com a Globo será reforçador de seu "destino manifesto" para a presidência, do chamado das ruas que ele atende, abrindo mão de seus interesses particulares pelo bem do povo e da nação. Ganhará a aura de abnegado e um discurso a la queremismo getulista. Se assim ocorrer, salvo Lula, será difícil freá-lo - inclusive, ideal seria que Lula fosse barrado o quanto antes, para poder começar esse movimento e reinterpretá-lo nessa lógica de movimento espontâneo. Se não decolar nas pesquisas, não se lança candidato, fica tudo como está, e ele se prepara para 2022 (se tiver eleições). Portanto, até abril (ou até quando os neoditadores do judiciário decidirem), não vale o que diz o candidato, digo, o apresentador. 

16 de fevereiro de 2018


quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

O cão de Pavlov e o atendente de farmácia

Em um de seus experimentos sádico-científicos, Pavlov tocava uma sineta antes de aplicar um choque em um cão, que chorava por conta do sofrimento causado pelo choque. Passado um tempo, o cachorro já começava a chorar só de ouvir a sineta - muitas vezes sequer recebia o choque. Ainda mantendo a associação entre sineta e choque, passado outro tempo, o animal se habituava: ouvia sineta e tomava choque sem reclamar - bovinamente, diríamos hoje.
Não vivemos em laboratório, onde as variáveis estão controlada (ou ao menos assim dizem os cientistas), nem somos cachorros (por mais que no Brasil tenha "pet" que leve vida melhor que boa parte da população humana), mas nosso viver no automático nos leva para um ponto não muito longe dos experimentos pavlovianos - para alegria de publicitários, jornalistas, políticos e engenheiros sociais em geral. Meu exemplo é banal.
Uma amiga pediu para acompanhá-la na Farmácia de Alto Custo, do governo do Estado em parceria com a SPDM (Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina), que fornece gratuitamente remédios caros à população. Tinha medo de ir sozinha na farmácia, situada na região do baixo do Glicério, na várzea do Carmo, próximo à estação Pedro II do Metrô. Deveras, em meio a viadutos, mendigos, moradores de rua, usuários de drogas pobres, catadores de recicláveis, igrejas, migrantes, imigrantes e outros desvalidos da sorte, não é um local que a classe média se sinta em casa para uma caminhada. Meu cacoete de classe média logo fez com que me questionasse (não verbalizei, para não melindrar minha amiga) por que ela não comprava o medicamento, já que não é tãããao caro assim, e ainda que fosse pesar no seu orçamento, não implicaria cortar de nenhum gasto essencial. Meu anti-cacoete-classe-média logo me lembrou da grande besteira ideológica pequeno burguesa tropical essa ideia de que serviço público é para pobre e não para todos - tirando, claro, a universidade pública e o terceiro nível do SUS, porque aí a classe média não conseguimos bancar sem cortar de algum lado, e então fazemos questão de usar o serviço do Estado, disputando com pobres, porque é nosso direito. E é. Se acesso à saúde é um direito universal garantido pela Constituição, bem faz minha amiga de exigir seu direito, ao invés de pagar por uma relativa comodidade.
O serviço da farmácia pareceu bem organizado, e nesta quarta-feira de cinzas, rápido. Enquanto esperava minha amiga ser atendida, reparei no espaço, que desde que entrara, algum estranhamento me causava. O local era limpo, sinalizado com cores, mas havia algo fora da familiaridade classe média a que estou acostumado. Imaginei que talvez fosse a pintura, que não estava tinindo, como em grandes redes de farmácia ou nos McDonalds médicos que vejo no centro da cidade (sem desmerecer o lanche do Mc, que é ruim mas não para tanto). Talvez a falta de cores fortes preenchendo grandes espaços. Ou um televisor gritando rede Globo ou publicidade? A falta de uma logomarca grande chamando a atenção e uma placa bem a vista com a missão do estabelecimento? Reparei nos atendentes. Estavam todos de preto - incomum para um ambiente de saúde, mas não era isso. Notei que uma delas tinha a marca estampada na roupa, outra uma frase brega, o rapaz que entregava as senhas, camisa de jogo de RPG. Passou por mim a moça da faxina, roupa da terceirizada. Entendi, então, meu estranhamento: os serviçais, salvo da faxina, não estavam uniformizados.
Admito um certo choque ao perceber como naturalizei a visão do uniforme em quem me atende. Passa-se a ideia de profissionalismo, dizem. Diria mais: passa-se a ideia de quem está na sua frente não é bem uma pessoa, mas o meio termo entre um homem ou uma mulher e um androide - na impossibilidade, por enquanto, de serem substituídos por robôs de verdade.
Entendo a necessidade de uniforme em muitas situações - escolas ou fábricas, por exemplo. Durante a idade escolar e ainda hoje sou grande defensor do uniforme: me poupa de pensar nessa maçada que é que roupa vou usar, se já não usei ela semana passada ou coisas do tipo. Porém sou homem, branco, classe média alta: socialmente valho por pessoa por meu fenótipo e renda, ainda que muitos de meus colegas de classe sintam necessidade de se afirmar por outros meios também - carro, restaurantes, roupas, viagens. Mesmo o uniforme para minha classe - o terno - é socialmente valorizado como nobre, com "personalidade".
A situação é diferente na "ralé", como chamou Jessé Souza, e noto como o uniforme de trabalho para essas pessoas tem um aspecto perverso: uma das grandes molas propulsoras do capitalismo espetacular está no vestuário, na moda - isso vem do século XIX, como atesta a literatura. Geralmente as pessoas que fazem o atendimento ao público são pessoas que tiveram menos oportunidades de educação e, consequentemente, de um melhor emprego. São vistos como semipessoas, semicidadãos pelos homens e mulheres "de bem" desta terra do "você sabe com quem você está falando?". Usar uma marca é uma tentativa de ganhar a parte da humanidade (ou toda ela) que lhes foi negada: foi uma das coisas que me chamou a atenção nos imigrantes na Missão Paz, ali perto da Farmácia de Alto Custo, no Glicério; ou o que se lê em romances do Ferréz ou nas letras dos Racionais, por exemplo. Não apenas isso: ideologicamente há a ideia - aceita acriticamente até por gente que se acha crítica - que marca, roupa, estilo, é parte da personalidade de alguém, quando não a define na essência. Portanto, ao serviçal, já considerado semigente, é também recusada a expressão da sua personalidade espetacular. Não é alguém por completo, nem tem direito de tentar sê-lo - tal qual o patrão ou os clientes brancos, classe média, cheios de estilo, que exigem serem recebidos com robóticos "bom dia" por pessoas uniformizadas - ironicamente, as gravações do atendimento no telemarketing tem mais vida e personalidade que os atendentes de carne e osso, que soam submissos serviçais zumbis do outro lado da linha.
Comento esse exemplo banal do desnecessário uniforme para atendentes. Vamos no automático, mal enxergamos, quando vemos, ainda achamos que tem pontos positivos, logo vira natural - pode um atendente sem uniforme? O caso poderia ser levado a outros aspectos do nosso quotidiano, mais emblemáticos. A violência que está aí, como o sol da manhã, a polícia que faz abordagem com arma na mão e dedo no gatilho às três da tarde no centro, os assassinatos pelos policiais, os policiais assassinados - tudo normal, pessoas tombam ao nosso lado, mas a vida segue. Ou o golpe de Estado e todo o desmonte do pacto social que vivenciamos: algum incômodo de início, alguma revolta, mas aos poucos vamos aceitando a sineta e o choque, no máximo engolimos a amargura e temos uma gastrite, camuflada com qualquer narcótico, tudo sem mudar de ritmo, sem perturbar a rotina - afinal a vida é assim,  não? E fugimos de enxergar se ela deveria mesmo ser assim.

14 de fevereiro de 2018