domingo, 10 de junho de 2018

O evento temporal-psicológico da paralisação dos caminhoneiros

Faz dez dias os caminhoneiros encerravam sua paralisação. Imprensa, redes sociais e conversas de rua não tratavam de outro assunto. Ameaças de desabastecimentos, brigas e orações em postos de combustíveis sem combustível, as forças do livre mercado e da concorrência pondo o litro da gasolina a dez reais, a discussão se greve ou locaute, se um novo 2013 ou um novo 1973, se golpe dentro do golpe ou força do povo ou volta dos militares. Foi uma semana quente, tensa - histórica, dizem muitos -, e dez dias depois é assunto velho e de menor importância, uma lembrança vaga de algo que um dia aconteceu - ao menos dizem que aconteceu, os antigos. Essa percepção do pós-caos reforça minha impressão de que a paralisação dos caminhoneiros foi um evento temporal-psicológico - e a reação do status quo se centrou nesse aspecto.
A velocidade com que tal ato foi para segundo plano - sem nenhum grande acontecimento a ofuscá-lo, tragédia aérea, copa do mundo, revelação política bombástica, nada -, e como tudo voltou ao normal sem sobressaltos não deixa de ser espantoso, por mais que não seja surpreendente: com a mídia corporativa oligopólica fechada em um sistema (espetacular, diria Debord), agindo como primeira frente de ataque de guerrilha das elites predatórias, ela costuma impôr os temas para debate público - ou então desvirtuá-los, quando emergem pautas que não são dos seus interesses. Esfriado o caos, ela trata de soterrar o distinto público em velhas novas trivialidades ou pautas condizentes com a manutenção do status quo, como corrupção. A volta à "normalidade" e a fabricação do esquecimento, é bom frisar, não se restringe às pessoas que dez dias atrás, estimuladas pelas emissoras de tevê e mídia, acreditaram que o Brasil caminhava para uma nova Biafra, como é visível em muitos intelectuais que tentavam decifrar esse novo fato políticos - em geral esquecendo que em 2012, diante da paralisação em São Paulo, a mesma reação da população, com corridas aos postos e medo de morrer de fome por conta de uma guerra civil que começara e ninguém tivera coragem de avisar, noticiar.
Essa capacidade de acomodação e esquecimento me deixa perplexo, me faz lembrar da peça Oh, os belos dias!, de Beckett: o mesmo percebido como grande novidade, e sua repetição, cada vez em um grau piorado, sem ser notado.
Contudo, enquanto evento temporal-psicológico a que me refiro, foi a novidade sentida em São Paulo nos dias de greve.
Sem viagem planejada, sem encomenda por chegar, morando perto do metrô e dependendo apenas de trilho e tênis para locomoção urbana (o que é um grande privilégio nestes Tristes Trópicos, admito), não fui afetado diretamente pela paralisação. Por não ter tevê em casa nem me informar por Globo e seus satélites (que se dizem concorrentes), não entrei na histeria coletiva de comprar víveres para o resto do ano. Só não digo que a vida seguiu normal naquela semana porque esteve melhor. Imaginei que pegaria o metrô lotado. Para minha surpresa, estava mais vazio - fato fácil de ser compreendido: muitas pessoas dependem do ônibus, cuja frota havia sido reduzido, para chegar até o metrô. Enquanto conhecidos de Fakebook relatavam que Paulista e Augusta pareciam cenas de filmes de zumbis (talvez mais influenciados por relatos midiáticos do que pelo que realmente observavam, não sei), Sé, República e Brás, as regiões que frequento diariamente, estavam mudadas, mas longe de qualquer cenário apocalíptico: lojas abertas, camelôs, pedintes, engravatados, transeuntes em geral, feirinhas do rolo, carros, motos, ônibus, bicicletas - tudo o que se vê num dia normal estava presente, apenas em menor número. E essa diferença quantitativa pode ser sentida qualitativamente também: São Paulo ganhou um ar mais humano, o número de pessoas e carros, ainda que grande, não era exagerado, as pessoas pareciam andar com mais calma nas calçadas, assim como os carros soavam menos afoitos nas ruas. Amigo contou que seu trajeto de casa ao trabalho, de ônibus, que geralmente leva uma hora, uma hora e dez, foi feito em vinte e três minutos. Outros amigos reportaram experiência semelhante no seu deslocamento. Talvez por esse ganho no ir e vir, as pessoas, com tempo extra, puderam caminhar como se caminhassem, e não como se estivessem treinando marcha atlética, puderam acordar quase uma hora mais tarde, puderam flanar meia hora antes de pegar o ônibus e ainda assim chegar antes em casa. São Paulo continuou uma cidade grande, continuou movimentada, com bastante gente, com muitos carros, mas se tornou, por uma semana, mais amigável, habitável, e até mesmo transitável - esse fetiche paulistano, de que a cidade serve pra passar o mais rápido possível (o outro fetiche vai na contramão desse, é a de adorar uma fila, de preferência de uma hora ou duas). Tanto que não fui o único a questionar o modelo de rodízio imposto aos habitantes da cidade, em que vinte por cento dos veículos são impedidos de transitar todos os dias: deveriam inverter o rodízio, segunda-feira, carros com placa um e dois circulam, terça, três e quatro, e assim vai - claro, acompanhado de expressiva melhora no transporte público, o que nunca foi do interesse de certa elite paulista e paulistana. A questão maior para essa solução é se a madame iria aceitar viajar em pé de igualdade com sua doméstica, encostando cotovelo em gentalha, pior: viajar em pé enquanto sua doméstica conseguira um lugar para sentar.
Retorno ao pós-caos. Esquerda e forças progressistas falham ao não repisar, dia sim, outro também, hora a hora, as causas e consequências dessa paralisação. Dado o grau de apoio da população a um ato político que perturbou profundamente seu dia a dia - uma greve!, essa coisa de vagabundos -, deveria ser encarado como um ponto de ancoragem de boa parte das críticas à idolatria ao livre mercado e livre concorrência - desde os aumentos diários de combustíveis, à gasolina a dez reais -, e na demonstração da importância do Estado, não apenas regulando setores e preços, como atuando diretamente no mercado, pois o Estado, mesmo distante, ainda é muito mais sensível às demandas e pressões sociais - ou o distinto público acha que conseguiria fazer um boicote coletivo à gasolina, para forçar uma Petrobrás privada baixar os preços? 
Lembrar sempre e sempre da greve dos caminhoneiros, para as críticas e rebater ideias divulgadas como verdades pela mídia: eis um interessante mote que não devemos largar.

10 de junho de 2018


sábado, 26 de maio de 2018

Ex Africa, Ad Mundo [Diálogos com as artes visuais]

Ex Africa se pretende um breve panorama da arte contemporânea africana, com instalações, vídeos, pop art, fotografias e mais. Em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil, no centro velho de São Paulo, é uma dessas exposições que ajudam a borrar nosso olhar de conceitos naturalizados - que por serem aparentemente positivos, recusamos o rótulo de preconceito, porém não deixam de sê-lo, como bem descreve Frantz Fanon no livro Pele Negra, Máscaras Brancas
Club Lagos, por onde a exposição começa, mostra videoclipes de música pop nigerianos. Esse brevíssimo apanhado videomusical atesta que na economia-mundo cores locais são diferenciais a serem pasteurizadas dentro de uma estética cosmopolita, embalados em mais do mesmo e aptas para a venda no globo todo. É música nigeriana mas soa quase um funk ostentação paulistano, ou uma Shakira, ou um k-pop - cada um na sua, mas com alguma coisa em comum (como dizia um slogan de cigarro), que o torna facilmente receptível por qualquer espectador adestrado (leia-se, com algum poder de compra para além de víveres básicos) dentro dessa estética global. Ou seja, não cabe um olhar de exotismo à África, como se fôssemos europeus do século XVIII e XIX, complacentes com aqueles seres (humanos?) incultos - para começar que sequer somos europeus. Ali somos convidados a deixar de procurar uma pretensa pureza (infantil) na arte africana e aceitá-la como arte terráquea.
A segunda obra em exposição é a instalação do egípcio Youssef Limoud, Maqam, que trata das ruínas que sobraram após as chamadas primaveras árabes ("ruínas" foi a principal chave que acabei por ler a exposição, mas isso não cabe nesta crônica, quem sabe numa próxima). Mais que a obra, o artista é um belo tapa em muitos, inclusive os carregados de boas intenções - como os politicamente corretos que usam "afro-descendentes" ao invés de "negros" -, que vêem o continente como um "continente negro", mostrando desde o início o quanto o ignoram, incapazes sequer de notar que considerável parte dele é branco - quando não que "a África não é um país" (como canta Emicida) -, e as diferenças entre os países e dentro dos próprios países - diferenças culturais, mas também fenotípica - são imensas [http://bit.ly/cG120619]. Somos ruínas de conceitos errados, errôneos, que carregamos crentes de que são conhecimento, a verdade.
A partir do terceiro andar da exposição, foi minha vez de tomar um doloroso tapa, por acertar no meu preconceito. Em meio a artistas de Zimbábue, Benin, África do Sul, Egito, Nigéria, Gana, Senegal e Angola, eis que surgem artistas brasileiros e ingleses. Estranhei. Logo achei uma explicação: devem ser artistas negros e que tratam de questões pertinentes ao continente, como a escravidão. Tropeço no meu preconceito - que eu julgava livre. Por que precisam ser negros? E porque "questões pertinentes" à África tem que ser escravidão, domínio europeu (e aí não esqueço o exemplo das torturas francesas na Argélia, já no século XX, e que não estão na exposição), pop cosmopolita e não música chaabi ou o som da banda Tinariwen (internacionalmente famosa, mas numa outra chave de apropriação das tradições), a riqueza da sua tradição oral e da sua percepção do mundo (majestosamente descrita (ao menos a leigos como este escriba) por A. Hampaté Bâ no texto "A tradição viva") e a arte que foi criada a partir desse repertório alegre, vivo? E por que precisam ser artistas negros? Talvez sejam, talvez não - isso implica na forma que sua arte é feita, porém não a torna necessariamente mais ou menos legítima. Me recordo do artigo "Seu sofrimento não é como o meu", de Walter Benn Michaels, publicado no Le Monde Diplomatique Brasil de maio, em que o famigerado "lugar de fala" é usado para negar a possibilidade de alteridade e empatia - do artista e, no limite, também do público, o que, levado ao paroxismo, implica na negação de uma humanidade comum aos humanos, e da própria arte. William Kentridge, por exemplo, é sul-africano e é branco (ele não está na Ex África, esteve na Pinacoteca alguns anos atrás). Continuarei a achar que geografia é destino? Que há um fenótipo oficial para uma região? Negro é africano subsaariano, europeu é branco, e eu, americano, sou um apêndice europeu, cego da minha condição subalterna, preso num narcisismo manco de criança enjeitada pelos pais.
Percebo, então, que a partir das migrações (forçadas) do século XVI, não se pode dizer que a África seja o "continente negro": primeiro porque não é; segundo porque a América é tão negra quanto - os filhos de africanos negros são tão americanos quanto os filhos de europeus branquelos. Recusar que a América é também um continente negro é dar razão aos discursos de extrema direita suprematista de que "os negros devem voltar para seu país". Insistir na África como negra é reafirmar um lugar no mundo que lhe foi fixada no século XVI, de atrasada, exótica, povoada de semigente, seguidora de religiões primitivas, capaz de fazer artesanato, nunca arte, condenada à pobreza, com suas favelas em meio a leões e girafas. E aí cabe aos europeus - e aos que acham que são, a elite colonizada descrita por Albert Memmi - irem salvar esse povo, essa terra, ensinando o verdadeiro deus e os verdadeiros valores - inclusive os artísticos.
Além de um panorama da arte contemporânea africana, Ex Africa reforça a necessidade de pararmos de ver a África como um outro mundo: estamos no século XXI, já foi decidida a questão se negros possuem alma, se muçulmanos são humanos; o mundo todo está conectado e vigiado, regido pela mesma lógica do lucro - e a arte como tentativa de fuga ou de acomodação, de denúncia ou de reforço a essa lógica. A África produz desde pop farofa pasteurizado a potentes obras críticas da sua realidade - que é também, apesar de suas diferenças, a nossa. Seguir ignorando e perder a oportunidade de compreender melhor nosso estar no mundo.

26 de maio de 2018