segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Eleições 2018: duas questões tornadas uma, Bolsonaro agradece

Minha primeira aula da minha primeira faculdade - psicologia na USP -, foi de filosofia. Em tese era só apresentação da disciplina, mas o professor já se perdia em seus pensamentos - marca registrada do "filósofo da goiabeira" -, quando entrou uma veterana em busca de calouros voluntários para um trabalho de alguma matéria. Interrompeu a aula gracejando: "uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, ou é ao contrário, Furlan?". Quando a veterana saiu, o professor adentrou por essa nova senda e passou a falar da importância em saber distinguir as coisas, que nem sempre conseguimos perceber que uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa. 
Me lembrei dessa aula do Reinaldo Furlan ao assistir ao primeiro bloco do debate da Record do golpe (e do Bolsonaro). Com outros afazeres, não assisti aos demais blocos, mas esse foi significativo: bombardeio pesado contra Bolsonaro (sem muita mira, na minha opinião), com artilharia cerrada também contra Haddad e o PT, apresentado como antípoda de extrema-esquerda do fascista. É a estratégia traçada há mais de um ano pela mídia e o PSDB, que até agora não deu resultado (ou melhor, deu, para Bolsonaro), e não sei se dará certo agora - ainda que haja novidades no contexto, como a facada e o #elenão, não acredito. Não sei se algum analista já comentou isso, eu só tive o insight ontem: nossa elite não é exatamente das mais espertas (mesmo a que posa de intelectual, como atestam, a título de exemplo rápido, os erros primários de português de FHC e Moro), no máximo eficiente para blietzkriegs - não para estratégias de médio e longo prazo que não passem pela porrada pura e direta -, e uma das suas falhas está em notar que Bolsonaro é um problema, o PT é outro. Salvo Boulos e Haddad, por razões óbvias, e Daciolo, por razões que a razão desconhece, todos os demais candidatos seguiram, ao menos nesse primeiro bloco que presenciei, essa toada: bater forte em Bolsonaro e por o PT como a outra face da moeda. Não notaram que essa é uma moeda que está bastante valorizada, em qualquer um dos lados - são 66% dos votos válidos, conforme o último DataFalha [http://bit.ly/cG180717].
Ao tentar pôr o PT como Bolsonaro de esquerda, a estratégia acaba legitimando Bolsonaro como o antipetista autêntico - e depois de trinta e oito anos da grande mídia atacando o PT, com especial ênfase nos últimos dezesseis, parte dos zumbis-fascistas-vestidos-de-patos não querem meio termo, querem a destruição "dessa raça" (como disse um ex-senador catarinense) apresentada como "câncer" da nação. Que Alckmin busque essa linha é o natural, uma vez que o PSDB se tornou herdeiro do ranço antipetista do malufismo, abandonou qualquer projeto de país - de governo, que seja (não estou considerando rapina do Estado e divisão do butim um projeto, talvez devesse) -, e se centrou apenas no antipetismo moralista udenista ou, mais recentemente, num neofascismo de compadrio vestido de cashmere. Marina e Ciro, por sua vez, possuem outras possibilidades de discurso, poderiam bater em Bolsonaro como fizeram, mas se apresentar como alternativa ao petismo, desvinculando as duas questões: uma é combater o fascismo, outra é superar o petismo (seja lá o que isso signifique). A estratégia, caso vingue agora, tende a favorecer Alckmin. Caso não vingue, tende a tornar ainda mais envenenado o ar do segundo turno, encaminha para um "todos contra o PT", nem que para isso vingue o fascismo, que está cada vez mais naturalizado como opção política legítima.
Será preciso muita mobilização, na internet, nas conversas ocasionais e nas ruas para vencer as eleições. E será preciso manter essa mobilização pelos próximos anos para garantir que valores democráticos prevaleçam.

01 de outubro de 2018

Ao acatar a pós-verdade criada pela mídia para Alckmin, Ciro e Marina saem perdendo.

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

O fascista comum: um pobre coitado.

Tempos atrás, escrevi sobre o fascista comum, um zé ninguém como eu, como você, mas que diferentemente de mim (e, espero, de você que me lê agora), aderiu esfuziante ao cio da cadela fascista, desumanizando quem vê como diferente e achando que o mundo será bom o dia em que a harmonia será perfeita, graças à aniquilação de qualquer diferença - de posição política, opinião, cor de pele, gosto ou corte de cabelo [http://bit.ly/2xY2e9Y]. De início, cri que meus amigos e conhecidos que aderiram ao fascismo eram pessoas dotadas de má-fé e de burrice - não cabe falar em ignorância, porque são pessoas com ensino formal, acesso a livros e internet, não podem alegar desconhecimento, é má-fé na interpretação dos fatos ou falta de capacidade de cognitiva para tanto, certamente um misto dos dois. Ainda que o movimento dos patos batedores de panela tivesse fortes tintas fascistas, evitei taxar seus adeptos como tal, uma vez que a campanha da mídia goebbelsiana havia sido feroz contra o PT. Notei, no início do ano, que muitos dos meus amigos do Fakebook que bateram panela silenciavam sobre política, ou se diziam em decepção geral - haviam se tocado que foram feitos de pato, enganados feito crianças de quatro anos.
Com a campanha presidencial, discursos de ódio voltaram a ganhar legitimidade, e a postagem de um "amigo" do Fakebook me fez notar um outro aspecto do fascista comum que eu não atentara há seis meses: além de má-fé e burrice, o fascista comum é, no fundo, um pobre coitado, alguém com baixa auto-estima e sérias dificuldades em aceitar quem é, incapaz de se enxergar de fato no espelho, e que na ânsia de seguir acreditando na mentira que criou para si próprio, adere facilmente ao líder fascista, se autoenganando que essa identificação ao líder vai alterar quem ele é.
Tomo um exemplo muito específico, mas que creio significativo: um ex-professor que tive na SP Escola de Teatro. Em 2014 aderiu contente e caninamente a Aécio, questionou a legitimidade das eleições e chamou Dilma de estelionatária (por cumprir o programa que ele defendia); em 2015 bateu panela e não teve peias em chamar Dilma de vaca; em 2016 festejou que o Brasil havia sido devolvido para ele e torcia pela prisão de Luladrão, pouco importa que apenas por convicção; no início de 2018 estava silente, nada de política, sequer da prisão de Lula: só fotos em família. E continuava morando no Brasil, sinal que não soube aproveitar a oportunidade dada pelo golpe - ou não tinha dinheiro para tanto, de modo que precisa seguir camelando pelo pão de cada dia em terras tropicais.
Pelo visto, a campanha presidencial deste ano fez esquecer a vergonha que passou ao aderir sem pensar a líderes e pautas suspeitas, e permitiu a ele se libertar para assumir seus preconceitos - sem expressá-los claramente, como bom homem cordial. Em postagem precária de raciocínio, reduziu a política brasileira a PT e Bolsonaro para declarar voto no nazista. Como em texto que corre pela internet, há 11 opções entre PSL e PT, os debates apresentam boa parte desses candidatos, muitos deles possuem boa parte dos mesmos ideais do capitão, o que impede alegar ignorância: o voto fascista não é apenas por questão de antipetismo, mas de simpatia com suas bandeiras mesmo. 
Esse ex-professor é sintomático pela sua figura. Votar em Bolsonaro serve para negar a realidade mais bruta acerca de si próprio, até que um dia essa realidade seja brutalmente atirada contra seu rosto - e então ele, tardiamente, talvez perceba qual seu lugar na hierarquia fascista. Seu perfil na rede social é um desenho em que ele se apresenta como uma pessoa branca. Aqui no Brasil da cordialidade e do preconceito (mal) disfarçado, como temos um Pantone de cores para as pessoas, mil formas de alegar que alguém não é branco, ele pode ser identificado como "moreno"; nos EUA ou Europa, certamente seria "negro", sem necessidade de qualquer discussão. De volta ao Brasil, numa batida da polícia, certamente ele seria visado enquanto eu passaria tranquilamente - a depender da situação (como já me aconteceu), eu até poderia peitar o policial enquanto ele teria que ficar com as mãos na cabeça, humilhando perante os demais. Também seria algo pela cor de pele para uma milícia fascista paraestatal. Não apenas isso. Para meu primo, membro de gangues neonazistas de Curitiba há vinte anos (apesar de ele ser negro, ou melhor, moreno), esse professor tem cara de nordestino, e seria um dos alvos preferenciais dos seus ataques (me vem à lembrança nós assistindo ao jornal televisivo e ele xingando os "baianos", bando de "preto", "feio", "vagabundo", "fedido" que "não gosta de trabalhar" e "se deixar, fica na praia e faz carnaval o ano todo", tínhamos uns 17 anos na época; hoje ele vive basicamente de mesada dos pais, enquanto patina como professor de yoga bolsonarista). Outro "porém": ele é casado com mulher, tem filho, mas é um homem de gestos delicados, jeitosos, muito distante de um macho alfa, e pode facilmente ser confundido com um homossexual - creio que fascistas e homofóbicos de plantão pouco se importarão em questionar se ele de fato é gay antes de começar a golpeá-la. Seu porte físico tampouco permite acreditar possibilidade de defesa - apanharia até para uma gangue mirim que tentasse abusar de sua esposa, que é negra, e que ele não deve achá-la bonita, pois não teme que ela tenha "o direito" a ser estuprada - o elogio mais eloquente que uma mulher pode ganhar de um homem fascista, ser penetrada à força -, sem falar que deve ser bem submissa, para ser do seu agrado - se acreditarmos no que ele próprio fala.
Fico a imaginar o quanto ele não sofria quando trabalhava com teatro (pelo seu Fakebook, tenho a impressão que largou a área). No meu curso, cerca de metade dos alunos era composto por mulheres; 40% eram negros, e uns 70% homossexuais. Fora do curso, nos palcos e coxias, o número de pessoas negras, de homossexuais e de mulheres também é bem elevado. Como devia controlar o nojo de ter lidar com esse tipo de gente todos os dias? E ainda parecer simpático, atencioso e muitas vezes servil (porque ele era um zé ninguém da área, assim como um professor mediano, facilmente substituível, que nunca pode, portanto, dar pitis de estrela)? Quantos anos não teve que segurar esse ódio, em nome de ter uma aparência de pessoa legal. O que nele motiva esse ódio todo? 
O antipetismo é claramente um subterfúgio para não ter que encarar o desejo (interdito) que o consome por dentro, feito um câncer. Certamente o que ele odeia não é o outro, é a si próprio: o outro é um espantalho que o distrai daquilo que o perturba - e ele, como fascista comum, é um perturbado: muito mais fácil dizer que a culpa é do outro, inteiramente do outro, e ele, um inocente. E em alguma medida ele deve ser mesmo um inocente: conscientemente virgem daquilo que o oprime desde dentro e não o permite gozar a vida de modo leve e prazeroso. Não conheço nada da sua vida, o que me impede maiores conjecturas sobre seu caso particular, a não ser generalidades a partir daquilo que ele alardeia em suas postagens cheias de ódio: um pobre coitado que se gostaria de ser da elite, se nega a enxergar que não é elite, nem nunca será em um governo fascista: por ser negro, por parecer nordestino, por parecer homossexual, e por ser um classe média remediado, sem dinheiro suficiente para, quem sabe, tentar comprar seu atestado de legítimo homem branco do sul - espécie de carta alforria (falsa) destes tempos - ou uma quinta em terras lusitanas. Talvez, como é tão comum nestes Tristes Trópicos, tenha uma história de privação, de humilhações ao longo de toda a vida por causa da sua aparência e do seu jeito: mas nesse ponto, em que caberia entender que a culpa é, sim, do outro - ainda que um outro abstrato e imiscuído com o contexto e a história -, ele aceitaria que se trata de uma falha sua, e que a adesão aos valores que sempre o oprimiram, encarnado nestas eleições em Bolsonaro (com em 2014 foi em Aécio e em 2015 em Cunha) o limparia de seu pecado original: não ser branco, de ascendência europeia, classe média alta.

27 de setembro de 2018