sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

O judiciário como linha de frente no avanço neofascista [Zeitgeist 2033]

O ativista português João Bernardo, em seu Labirintos do fascismo: na encruzilhada da ordem e da revolta, se nega a apresentar uma unidade coesa nos diversos fascismos do século XX: identifica quatro eixos, que ora colaboram, ora disputam entre si pelo poder, tendo como base social um grupo bastante heterogêneo, de grandes industriais a camponeses, passando por funcionários de colarinho branco. Na página 216 ele cita que Maurice Bardèche, "o mais sábio dos fascistas franceses, prolongou a lição de Ledesma Ramos [um dos principais ideólogos do fascismo espanhol] chamando a atenção para 'a impossibilidade de o fascismo se desenvolver fora dos períodos de crise. Porque ele não tem um princípio fundamental. Porque não tem uma clientela natural. É uma solução heróica. [...] É o partido da nação em cólera. E principalmente [...] dessa camada da nação que usualmente se satisfaz com a vida burguesa, mas que as crises perturbam, que as atribulações irritam e indignam, e que intervém então brutalmente na vida política com reflexos puramente passionais, quer dizer, a classe média. Mas essa cólera da nação é indispensável ao fascismo'. É certo que aquela situação de crise colocava problemas distintos a cada uma das classes e das camadas sociais, mas o fascismo pretendia possuir uma solução comum para essa diversidade de questões". 
"Nação em cólera em período de crise". Para além do momento interno do país e suas disputas de classe, o fascismo do século XX dependeu de um contexto global - redesenho do mapa geoeconômico e geopolítico, hiperprodução e crise do capitalismo. Nesta segunda década do século XXI, novamente uma crise do capitalismo enceta soluções pela via fascista - ainda que guardadas as diferenças para as experiências do século passado, e com muitas variantes acerca de como tem despontado em cada país. A ilusão, com o colapso do socialismo real, de uma "ordem multipolar" controlada pelos Estados Unidos se vê seriamente ameaçada pela emergência chinesa, que busca redesenhar o mapa da produção mundial conforme seus interesses.
A disputa econômica entre os EUA trumpista e a China acerca de tarifas, e a prisão da executiva da Huawei, Meng Wanzhou, no Canadá, a pedido dos EUA, é apenas a face mais evidente desse rearranjo de territórios ainda em aberto. Petróleo e tecnologia 5G (que vai muito além de internet rápida, e na qual a China larga em vantagem [https://on.ft.com/2D4EPaN]) são os grandes motores do momento, e o principal veículo para consecução dos objetivos, neste estágio do conflito, está no uso aberto do judiciário como instrumento de perseguição política. Essa nova fase da guerra comercial entre Ocidente e China, atacando diretamente pessoas, não começou com a prisão de Meng Wanzhou: em dezembro, Patrick Ho Chi-ping, executivo de Hong-Kong que trabalhava para empresas chinesas,  preso desde 2017, teve sua prisão confirmada pela corte federal de Manhattan, por propinas pagas aos governos do Chade e Senegal, na África. Agora é a vez da prisão de Piotr D, um executivo da Huawei polonesa - o maior mercado da empresa chinesa no leste europeu [https://on.ft.com/2SPgYBv]. Isso para não falar nas acusações de espionagem por parte da Huawei, ou de hackers sustentados por Beijing.
A China respondeu à prisão de Meng Zanwhou detendo dois canadenses, acusados de atentarem contra a segurança nacional. O Ocidente reagiu dizendo que se tratam de prisões arbitrárias - deixando de lado a seletividade da justiça estadunidense, pois não me consta que o general Keith Alexander esteja preso por espionagem internacional -, ao que o embaixador chinês rebateu, acusando os críticos de "suprematismo branco".
Possuidora de três grandes reservas petrolíferas - México, Venezuela e Brasil -, e considerada quintal do Tio Sam, a América Latina parece ter sido o grande laboratório para novas formas de intervenção política - popularmente conhecidas como golpe de estado -, diante do fracasso da tentativa de "reformas" via "levante popular" no Oriente Médio. Essas novas formas passam pela instrumentalização aberta do judiciário na perseguição de inimigos internos e externos, atuando sob uma frágil base de ritos formais - seguidos conforme a ocasião -, e se utilizando do direito penal para produção de presos políticos - Jorge Mateluna, no Chile, Milagro Sala, na Argentina, Lula, no Brasil (Rafael Corrêa só não faz parte da lista por estar exilado na Bélgica). A atuação do judiciário tem sempre favorecido os EUA e as elites locais aliados aos interesses do Império. Nos casos em que não atua diretamente, o judiciário avaliza o desrespeito às leis e à Constituição, em nome da caça ao inimigo - como no caso dos impeachment farsescos em Honduras, Paraguai e Brasil.
Claro, a justiça sozinha não é capaz de manter o movimento, daí a necessidade de se ocupar o executivo para aplicar o receituário econômico conforme os ritos legais, e haver exército de prontidão para agir em caso de perturbação da ordem, e a mídia em permanente atuação - fator crucial para alimentar a cólera da nação e explorar bodes expiatórios.
Onde o judiciário pode ser um empecilho, intervem-se nele sem maiores pudores, como no caso da Polônia, Romênia e - exemplos bem mais complexos - Venezuela e Turquia. Aqui, Erdorgan talvez já conhecesse as novas técnicas de uso do poder via intervenção judiciária, e cumpriu a cartilha contra seus opositores antes que fosse feito contra ele - inclusive com o mesmo expediente usado por Moro contra Lula, de bloqueio/confisco de dinheiro dos "inimigos". Na Venezuela, o estado de guerra permanente não declarada contra o país, desde 2002, e intensificada nesta década, empurra o país para o colapso, e Maduro se sustenta como pode - diante de uma oposição que não merece qualquer voto de confiança (Gilberto Maringoni tem feito ótimas análises sobre o país) -, com apoio do exército e do judiciário. Isso, contudo, só é possível porque Chavez foi inteligente em repactuar os poderes do estado e desarticular as elites tradicionais, alinhadas com os EUA e o capitalismo de butim - ajudado por essas mesmas elites, de uma incompetência política invejável, talvez por nunca terem feito política -, reinstrumentalizando o judiciário dentro de sua "revolução bolivariana", o que lhe valeu, por não ser aliado dos EUA, a alcunha de "ditador" por parte de quem acha que os militares no Brasil eram um "movimento" ou uma "ditabranda". Tivesse mantido as estruturas herdadas quando assumiu o poder, teria caído há muito tempo, e seu sucessor, se viesse a assumir, já teria sofrido impeachment (não se trata de defender especificamente a reforma por ele feita, mas ressaltar que mudanças do tipo são fundamentais para garantir mudanças sociais e impedir contragolpes institucionais, feitos à revelia dos interesses do país e da maioria da população).
É para se observar como se comportará o judiciário brasileiro no governo Bolsonaro, em especial quando surgirem as crises: após intervir diretamente no resultado das eleições, com seu principal expoente integrando o governo, o judiciário deverá tentar manter a tutela do governo - como já havia ensaiado no governo Dilma. Contudo, essa mesma tutela é disputada pelo exército, que começou no julgamento de Lula e não deve ser aliviado agora que entrou de cabeça no governo fascista. Para fora das esferas de poder, o que podemos esperar é mais perseguição e sentenças arbitrárias contra opositores do governo - sejam da sociedade civil, sejam do próprio parlamento. 
A resistência, ao que tudo indica, deve vir de fora, num primeiro momento, via pressões de ONGs e da sociedade civil internacional. No plano interno, ainda carecemos de uma melhor organização - sociedade civil, movimentos sociais, partidos políticos -, e aceitar que precisamos abrir mão de purezas ideológicas em nome de acordos com aliados de momento - prontos para pular fora assim que não nos convier mais (e Rodrigo Maia não me parece um aliado de momento, diferentemente de Renan Calheiros e Gilmar Mendes). Bolsonaro já mostrou que fará um governo errático; os que se arvoram no poder já mostraram que logo começarão a disputar entre si, precisamos saber utilizar as brechas, antes que o regime se feche ainda mais.
No plano global, o judiciário deve aumentar sua atuação, não apenas arbitrando litígios econômicos, mas atuando na detenção e no indiciamento dos agentes econômicos "inimigos". Isso até o momento que não se puder mais agir apenas com essa carapuça e partirmos para conflitos abertos. A Venezuela parece ser o alvo da vez: enormes reservas petrolíferas, um governo encurralado e ampla crise econômico-social; Trump necessitado de recuperar popularidade para enfrentar a eleição ano que vem, o governo Bolsonaro precisando um bode expiatório para "calar democraticamente" as críticas e unir a nação, a China avançando sobre o petróleo venezuelano, e a Rússia pronta para fazer o que não conseguiu enquanto União Soviética - pôr os pés no quintal americano. Tudo isso, claro, em nome dos mais nobres valores dos direitos humanos, condoídos pela crise humanitária que assola os venezuelanos, como no Vietnã, no Afeganistão, no Iraque...

11 de janeiro de 2019

domingo, 6 de janeiro de 2019

Euforia e ressaca com a ilusão neoliberal [Diálogos com a literatura]

As viúvas das quinta-feiras, da portenha Cláudia Piñeiro, retrata ascensão e queda do triunfo neoliberal na Argentina, em fins do século XX: o estreitamento mundo, reduzindo tudo a cifras e valores, acompanha o estreitamento existencial da vida entre muros, entre os pares, acerbando os narcisismos das pequenas diferenças (ao gosto dos subúrbios estadunidenses descrito por Lewis Mumford) e uma protocomunidade que não possui qualquer chance de se tornar comunitária de fato (tratei de, encerrado o livro, me embrenhar por Mal-estar, sofrimento e sintoma: Uma psicopatologia do Brasil entre muros, do psicanalista Christian Dunker; ainda não terminei, mas ao que tudo indica, trata-se da mesma lógica do condomínio destes Tristes Trópicos). Se o Brasil se safou de queda igual à dos nuestros hermanos, foi por conta da resistência popular (desde a falecida Constituição de 1988) ter impedido o país de entrar com todo ardor no 171 neoliberal - algo que o atual presidente e seus super ministros prometem realizar.
O quotidiano do condomínio Alto de la Cascada descrito por Piñeiro é feito de normatizações abusivas, violências mudas, dores vivas e desejos insatisfeitos - tudo isso abafado, soterrado pela imagem de felicidade que todos são obrigados a ostentar. O desejo das classes mais abastadas de viver em segurança, dentro de um enclave murado, sob os olhares permanentes dos vigias: releitura pós-moderna neoliberal da velha comunidade de bairro, onde todos se conhecem e se ajudam - ao menos em aparências -, onde impera a moral e os bons costumes de um passado mítico.
Dos empregados das casas aos seus moradores, não parece haver espaço para alegria ou felicidade, oprimidos por uma série de exigências contraditórias, controladas de perto. Um baile de máscaras de mau gosto em um mundo que exige autenticidade mas condena todo desvio da norma.
É quase um sistema de castas - alguém não pode ser aceito plenamente se não for "puro sangue" - branco, cristão, endinheirado. Se for judeu e já estiver dentro, ignora-se o fato; se ainda não entrou, não entra - assim como coreanos, negros ou outros indesejados. O mesmo ocorre com os funcionários: uma vez funcionário, sempre funcionário, não importa que sua companhia tenha ajudado sua patroa a superar a depressão e só frequente os locais destinados aos moradores junto de sua - dona? Não pode, e as duas serão personae non-grata por isso. A harmonia de um condomínio não permite qualquer diferença significativa.
Ou então na criança adotada, destoante na cor da pele, e que ainda por cima já veio com nome - que os novos pais desgostam e por isso mudam, de Ramona para Romina - e para poder se apresentar, precisa escrever seu nome verdadeiro na areia, impedida de dizer quem de fato é.
Um paraíso artificial, os moradores do Alto de la Cascada vivem uma vida artificial: mantém seu padrão de gastos, seu estilo de vida, como se a crise que assola o país não tivesse vez dentro de seus muros, ocultando que perderam seus empregos e veem seus rendimentos minguarem - até o ponto em que serão obrigados a fugir do condomínio como proscritos por uma grande vergonha, uma grande humilhação, como se fossem leprosos dos tempos de antanho. Enquanto a fuga não se faz necessária, fazem caridade aos deserdados da sorte, que sobrevivem fora do muro graças a sua benevolência em empregá-los - caridade que não deixa de ser mais violência muda: a empregada que comemora a blusa da filha da patroa que será jogada fora e já vislumbra presentar sua filha, mas se vê frustrada em seu desejo de consumo de migalhas quando a patroa doa a blusa para um bazar beneficente - onde ela poderá comprar a preços razoáveis, se a blusa específica não tivesse sido dada pela organizadora do bazar à sua própria filha.
As viúvas das quintas-feiras mostra a euforia e ressaca com a ilusão neoliberal: a vida da mais pura platitude, sem preocupação que não o desfrute do que seriam seus prazeres miúdos hipertrofiados por anos de discurso ideológico em todos os meios possíveis. A vida boa numa casa de filme, num condomínio de publicidade. Uma vida de publicidade - estreita, sufocante, vazia, de aparências, na beira do precipício. E a próxima crise a jogar parte de seus moradores de volta ao mundo real.

06 de janeiro de 2019