quarta-feira, 15 de maio de 2019

15 de maio: a flor e a náusea (outras flores virão?)

Com atraso, muito atraso – três anos e um dia, desde a posse de Michel Temer, para ser mais exato -, as pessoas envolvidas com educação – professores, estudantes, gestores, pais, cidadãos – parecem ter finalmente conseguido se organizar e se articular minimamente para fazer frente o desmonte da educação no Brasil – em especial a pública, mas não só.
O mérito dessa organização cabe a Abraham Weintraub, ministro da educação (sic) do governo (sic) Bolsonaro. Pode ser que tenha sido um lance estratégico, dando ensejo aos protestos de hoje, os quais serão subvertidos pela narrativa (oficial) distribuída por WhatsApp, favorecendo o governo; mais provável é que seja só ignorância, incompetência e incapacidade do ministro (a exemplo de todo governo).
Os protestos foram bonitos, tranquilos – com a polarização violenta da sociedade estimulada pela extrema-direita (nisto inclui Globo e similares), temia certa quebradeira por pessoas ali postas para isso, ainda mais diante dos poucos policiais que faziam a proteção das pessoas – e grandes. Tive a impressão de que sequer no ato da Paulista em defesa da democracia e contra o golpe, pela permanência de Dilma, com o Lula, tinha tanta gente – talvez as duas manifestações estivessem pau a pau, inclusive numa certa “energia” que corria entre os manifestantes. Mais que isso, convém reparar na guerra de narrativas: eu chegava em São Paulo às duas da tarde, hora programada para o início do protesto na capital, e a rádio do grupo Globo girava o país comentando como estavam os protestos – uma narrativa “neutra”, que comentava da pauta da reforma da previdência e no grande número de pessoas, sem elencar os problemas para as pessoas que queriam passar de carro pela Paulista e não podiam. Sem comprar o discurso de fora Bolsonaro, sem chamar os patos para a avenida, porém sem também deixar para dar uma nota curta no jornal da noite, no curto exemplo que tive, a Globo se abriu ao jornalismo sério como disfarce para fustigar o governo – e isso não é pouco, dada a pouca fibra do presidente e dos seus, é bem possível que ele sinta a pressão.
Contudo, o que realmente chama a atenção é só agora acontecer uma reação de tal monta, sendo que elementos tem sido dados desde o segundo governo Dilma, mas em especial desde o golpe de 2016: a ponte para o futuro, desvinculação dos recursos do pré-sal para a educação, a PEC dos gastos públicos (que não com juros), a reforma do ensino médio – tudo isso justificado pela mídia, pelos especialistas a serviço da mídia, pelo ilustrado ministro Barroso. Única reação digna de nota foram dos estudantes secundaristas ao fechamento de escolas, em 2015, ainda antes da Blietzkrieg golpista da trinca judiciário-mídia-capital. Não apenas isso: a instalação de uma CPI na Assembleia Legislativa de São Paulo, em 22 de março, por parte de Doria Jr e sua base, para investigar “desvio ideológico” nas universidades, é motivo suficiente para as estaduais paulistas estarem paradas, por ordem do reitor – que ou não entenderam a situação, e não perceberam que tem sua cabeça a prêmio, ou estão dispostos a agir a la Ernesto Araújo e em troca de poder para agora, entregam tudo (e todos) o que o chefe mandar. As universidades, porém, preferiram fingir que o ataque à sua autonomia não era com ela.
No plano federal, a inabilidade de Bolsonaro tem mostrado um tiro no pé das elites que o puseram lá, para afastar o sapo barbudo ou seu sucessor. Temer, político habilidoso, tinha deixado pronto o desmonte da educação pública de modo lento, gradual e seguro. Bolsonaro, ao acelerar o processo, articulou a reação e pode pôr tudo a perder. O corte de 30% nos orçamentos das universidades públicas, os cortes gerais na educação, as ameaça de fim de humanidades nas universidades, a ameaça de ensino residencial (homeschooling) são o escancaramento do que Temer tinha posto no horizonte, sem maiores reações. Primeiro com a PEC 95 (aprovada no dia em que caiu o avião da Chapecoense), que congelou gastos sociais por vinte anos – e entre tirar da saúde, segurança ou educação, é bem evidente que educação seria escolhido, por não ser algo de efeito imediato. A seguir, sua reforma no ensino médio, que tirou as ciências humanas – filosofia, sociologia, história – da grade obrigatória, e permitiu que parte das disciplinas fosse à distância (EaD). No médio prazo o que isso implicaria? A EaD diminuiria o mercado de trabalho para professores, diminuindo a demanda (e a sua necessidade, segundo a leitura dos cabeças de planilha) desses cursos. Os cursos de humanidades cuja principal ocupação é lecionar, sem a obrigatoriedade, tende a cair ainda mais (a concorrência em filosofia na Unicamp, por exemplo, foi de 5,1 candidatos por vaga em 1997, para 10,9, vinte anos depois, motivado, em boa medida pela abertura do mercado de trabalho nas escolas, durante o governo Lula); menos procurados, seriam cursos que poderiam ter suas verbas cortadas com “melhores” justificativas, de modo a acomodar a universidade no arrocho orçamentário imposto pela PEC. Ao cabo, primeiro os cursos de humanidades nas universidade públicas minguariam (nas particulares já são minguados), logo as próprias universidades – talvez os hospitais passassem para a pasta de saúde, como forma de garantir o funcionamento daquilo que boa parte da sociedade vê como único serviço prestado pelas universidades –, e isso, ao que tudo indica, sem maior alarde, sem conseguir mobilizar a população na sua defesa.
O ponto agora, uma vez que as pessoas preocupadas com a educação e com a educação pública no Brasil conseguiram se organizar, é manter a mobilização e levá-la para além de pautas reativas, de negação, incluindo no debate público problematizações e propostas positivas: a forma como a educação – tanto a básica quanto a superior – tem sido atacada e modificada, sem discussão com a população, com os interessados e com especialistas da área, e sem maiores reações da sociedade, mostra que há, sim, uma percepção de que algo não vai bem. Se acaso se centrar em voltar ao que era, este movimento iniciado dia 15 de maio não vai conseguir angariar apoio necessário para fazer uma contraofensiva aos desejos dos donos do poder (e não apenas dos ocupantes de turno do Palácio do Planalto). Assim como é urgente revogar os cortes nos orçamentos das universidades e retomar a vinculação das receitas do pré-sal à educação, é preciso propor uma discussão de ampla reforma da educação, repensar a função da escola (ainda faz sentido uma escola tão conteudista num tempo de internet? Melhor não seria centrar em aspectos de relações inter e intrapessoais?), o papel do ensino na vida de uma pessoa (é só meio para ascensão social, ou pode fazer sentido no momento presente do aluno?), a inserção da universidade na sociedade. É preciso que escolas e universidades se abram ao seu entorno (o projeto dos CEUs da Marta Suplicy é um bom exemplo), dialoguem com todos – dialoguem e não façam palestras -, entendam carências urgentes do grosso da população que não são contemplados pela universidade e conciliem isso com necessidades de médio e longo prazo de toda nação.
Foi aberta uma brecha, como a flor no poema de Drummond. "É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio." As forças democráticas e de esquerda da sociedade precisam aproveitá-la!

15 de maio de 2019

sábado, 27 de abril de 2019

Uma ópera que dialoga com o Brasil de 2019 [Diálogos com a ópera]

A escolha pode ter sido fortuita, não sei; se foi o caso, houve algo no inconsciente que certamente norteou a montagem da ópera La Clemenza di Tito, de Mozart, no Theatro São Pedro. 
Último remanescente dos teatros com nome de santo da capital (São Paulo, São José), ainda não foi consumido rapidamente pelo fogo, mas seguidamente está sob fogo estatal, que o queima lentamente (vide sua orquestra, pequena e jovem), sob permanente risco de corte drástico de verbas - quem sabe para transformá-lo em outra loja de cama-mesa-banho (como antigo espaço artístico no Brás), ou numa igreja evangélica, mesmo? -, fogo intensificado sob os atuais governos neofascistas e anti-intelectuais, anticultura (que não seja propaganda louvatória do poder e do líder).
La Clemenza di Tito a princípio é apenas uma ópera a falar de tempos remotos, composta para a coroação do rei Leopoldo II, da Boêmia. A montagem feita pelo Theatro São Pedro (direção musical do maestro Felix Krieger, e concepção, encenação e iluminação de Caetano Vilela), ao aproximar a Roma antiga do século XXI, busca certa sintonia dos elementos, mas também explora dissonâncias, coisas fora do lugar (ou do tempo), abrindo - principalmente no primeiro ato - uma possibilidade leitura política acerca do contexto brasileiro atual.
O cenário feito com andaimes sinaliza um império ainda em construção; há elementos de alguma imponência, brilhos e dourados, porém há algo roto, marcado do início até o fim no grande bloco de granito rachado que fica no centro do palco - sem que seja necessariamente decadência, ruína.
O grande ruído é o figurino. Na verdade foi tentando entender o porquê daquelas escolhas aparentemente infelizes que comecei a fazer a leitura política da ópera. Se o coro estava à romana, os soldados marcavam diversidade étnica, e também uma certa simplicidade no figurino, deixando de lado o realismo. Nos personagens principais, contudo, o ruído é evidente, incomoda, faz pensar. Vitellia com sua roupa vermelha e sua vasta cabeleira branca  parece rainha de cabaré. Sesto e Anio, gordinhos, barbudos, cabeludos, tererê no cabelo, algo meio hipponga, meio saído de Piratas do Caribe, meio saído da casa da mãe não faz muito. Tito com sua roupa cheia de dourado fajuto - se tem pose imperial, a roupa o desmerece.
Tito, quatro letras, como Lula. Um líder carismático, carinhoso, que evita grandes conflitos, preferindo sempre contemporizar e perdoar, deixar quieto (seja aceitando a recusa de Servillia ser esposa de Tito, seja como quando Veja publicou a fake news (então só notícia falsa) de que Lula teria contas na Suíça). Um líder talvez demais deslumbrando com um poder que mais reluzia do que deveras era - e a dificuldade em aprovar grandes mudanças estruturais, talvez mais que falta de vontade de Lula fosse falta de possibilidade, mesmo (como ficou evidente na facilidade com que se desfez, por exemplo, a vinculação de parte das receitas do pré-sal à educação). Pelo visto, nós que nos deslumbramos com o poder, Lula parecia ter mais noção de que o que reluzia ali era ouro de tolo.
Vitellia pode ser interpretada como a burguesia, sempre ávida pelo poder, ainda que não esteja apta para assumi-lo diretamente (por saber da sua incompetência; na ópera, por ser mulher). No fim, acaba por decidir por uma alternativa mais drástica e mais breve para tentar alcançar seu objetivo e acaba dando um tiro no próprio pé: Tito, ao aceitar a recusa de Servillia em casar com ele, escolhe Vitellia como segunda opção; mas nisso ela já havia ordenado Sesto matar Tito, o que significava que acabaria sem o trono.
Sesto é o estereótipo do povo que bate panela da laje de sua casa de bairro classe média. Maltrapilho que tenta imitar os brilhos do imperador, aceita matar Tito, a quem idolatra, para atender ao desejo de seu amor, Vitellia. Interpretado pela mezzo-soprano Luisa Francesconi, a voz muitas vezes mais fina que das mulheres dá um ar de impúbere ao rapaz - apesar das barbas -, e reforça a carência de autonomia. Ao fim do primeiro ato, se tudo indica que Vitellia perderá a chance de ser imperatriz, Sesto deverá ser condenado à morte.
O segundo ato encaminha a trama para um final feliz. Aqui a trama perde seus maiores contatos com o contexto brasileiro - ficando no plano do que poderia ser. É quando o cenário ganha mais ares de século XXI, com um tapume de metal pixado ao fundo - reforçando certo descompasso entre os elementos da montagem. Se na ópera a trama de Vitellia e Sesto acaba mal, mas Tito evita que qualquer um tenha final trágico, a vida real nos presenteia com um drama menos edulcorados: às mazelas do presente que boa parte da população suporta sequer há a justificativa de ser em nome de uma melhora no futuro - são apenas mazelas, como um ataque de gafanhotos, ainda que produzidas pelos donos do poder. A burguesia que fez festa com sua sagacidade desde 2014, se não está tão mal quanto povo, não tem o que comemorar. E Lula/Tito não aparenta ser mais o mesmo paz e amor de pouco tempo atrás - porém tampouco tem posição de poder na estrutura burocrática do estado para começar alguma mudança significativa desde de dentro. Sobra ao povo, Annios e Sestos, se mobilizar, buscar alguma brecha que permite respirar no presente e voltar a sonhar com algum futuro. Vivemos mais que uma crise econômica, e a ópera regida desde Brasília (ou seria Washington?), se se seguir nesse andamento, não terá final feliz para quem está no palco - e na plateia.

27 de abril de 2019