quinta-feira, 11 de julho de 2019

A esquerda precisa mudar o discurso

A esquerda precisa repensar sua estratégia de comunicação, convencimento e mobilização social - constatação óbvia, contudo, que precisa ser repetida. Precisamos deixar para segundo plano a análise de como chegamos no ponto onde estamos e traçar estratégias para sair da rota na qual seguimos, e isso inclui a forma de comunicar e angariar simpatizantes e militantes.
Apelar para cenários catastróficos inexoráveis é eficiente se se está em posição de vantagem. Não é o caso das forças progressistas no momento. E ao pintar o pior dos cenários, e de uma forma tão definitiva, em um contexto onde a derrota é muito provável, a tendência é desanimar cada vez mais a militância, afastar pessoas que poderiam se sensibilizar em um segundo momento e se unir à nossa luta. A estratégia catastrofista lembra muito as propagandas de prevenção da Aids, no início da década de 1990, em que pintavam a doença como um atestado de morte e acabavam por minar o psicológico de quem havia sido contaminado, piorando sua qualidade de vida e dificultando a convivência com a doença.
Tomo o exemplo da reforma da previdência aprovada neste infeliz dia 10, uma reforma de interesse exclusivo dos plutocratas nacionais e internacionais, uma volta a mais no  parafuso de hiper exploração do trabalhador, iniciado com a reforma trabalhista. Os 379 votos favoráveis demonstram a força de "persuasão" do governo e dos patrocinadores dos deputados (como a emblemática Tábata Amaral e sua “convicção individual” que nunca se opõe à de Huck e Lemann). Pintar o inferno na terra, sem chance de remissão, é afastar a população de mobilizações futuras, caso não alcance o intento (como foi o caso): mobilizar para quê, se está acabado? Acaba se tornando um discurso indutor do conformismo mais resignado - e não adianta depois, como Mino Carta, dizer que o “povo brasileiro” é que é passivo.
Passamos os anos do PT no governo federal dormindo em berço esplêndido, não será de uma hora para outra que conseguiremos novamente mobilizar setores amplos das camadas populares. Nada mais lógico que as forças reacionárias avancem vorazmente diante da resistência tíbia e diminuta: quanto mais ganharem agora, mesmo que percam parte no futuro, maiores as chances de, ainda assim, saírem com saldo positivo - para eles, em detrimento da população mais necessitada. 
Manter a resistência agora é imprescindível, se servir para barrar esse tipo de medida, ótimo, se não, que seja para marcar posição e começar a reconstruir um trabalho de base - que não cabe mais ser nos termos que foi no século XX. Uma coisa, porém, é preciso retomar fortemente da década de 1960 (ainda acho que o cerne de nossas questões e parte das nossas respostas estão neste período) e seu legado: o devir histórico. O futuro, ainda que possamos fazer previsões e ainda que as possibilidades de mudanças sejam maiores ou menores a depender do presente, não está fechado, de forma alguma - a não ser para quem concluiu sua passagem neste mundo (e não há como não lamentar a perda do Paulo Henrique Amorim neste momento da nossa história). Enquanto os seres humanos estão vivos, a história também pulsa, também está viva, e o futuro, em aberto. É possível reverter no médio prazo essa maré que nos afoga; as reformas aí enfiadas goelas abaixo via um simulacro de democracia não são leis divinas e podem ser alteradas - é possível que os próprios donos do poder queiram revê-las em parte, num futuro próximo, dado o grau de catástrofe que prenunciam, e o que a esquerda fará então? começará a discutir o que fazer? De qualquer modo, se não vier de cima, é possível que pressões de baixo obriguem a sociedade a refazer seu pacto social, como foi feito em 1988 - não estava vivo na época, mas não creio que uma Carta como a de 1988 parecesse muito factível dez anos antes.
Um primeiro passo que as esquerdas precisam, junto com essa afirmativa do devir, é construir uma narrativa de planos, propostas, e não apenas de denúncia. Acolher e ouvir as pessoas, e a partir de então construir coletivamente possibilidades, devires, novas utopias - é curioso que a própria ação pastoral social da igreja católica também tem tido dificuldade em fazer esse movimento (falo por experiência própria, pois participo de pastoral social, apesar de ateu). Talvez o que falte à esquerda seja se reconciliar com a religião - as boas religiões, os bons religiosos -, redescobrir essa “dimensão religiosa”, de arauto de alguma boa nova - precisaria, para isso, descer do seu pedestal hiper racionalizado (estéril). Num contexto de desalento e desespero, pouca gente vai se dispor a somar num movimento, num partido, numa organização que não sinalize algum caminho positivo, em que não se vislumbre algum tipo de melhora, que não traga uma mensagem esperança. A esquerda precisa trazer luz, porque as trevas já nos cobrem.

11 de junho de 2019

PS: penso depois: talvez essa seja uma das chaves do discurso do Lula​, que persiste nas suas entrevistas na masmorra curitibana: conciliar denúncia e esperança assertiva.

terça-feira, 9 de julho de 2019

Minimalismo: um documentário branco [Diálogos com o cinema]

Admito: o filme me chamou a atenção porque achei que dizia respeito ao movimento artístico e não a um movimento moral. Passada essa frustração inicial, decidi assistir ao documentário de Matt D’Avella, Minimalism: a documentary about the important things (Minimalismo: um documentário sobre as coisas importantes), em cartaz no Netflix (é assim que fala?).
O documentário mostra um pequeno período da vida de pessoas brancas com dinheiro suficiente para ter uma vida confortável sem necessidade de trabalho alienado que descobriram que não precisam mais trabalhar para ter uma vida confortável, desde que abram mão de alguns excessos. Parece tautológico, e é – na minha escala de valores, isso seria o bom senso: trabalho se preciso, se não, vou aproveitar a vida frugalmente. Minimalismo é uma “filosofia” de vida, uma moral, uma ética pós-moderna pseudocrítica que defende uma vida simples, apenas com o que é necessário. Aqui o filme poderia entrar na ótima questão do que é necessário, inclusive ressaltando nossa “segunda natureza”, como diziam Marx e os antropólogos, que nos (im)põe necessidades vitais para além das biológicas – e que são, em boa medida, legítimas. Mas o documentário, como parece ser a própria ética ali exposta, é para consumo rápido, não para refletir, questionar, pensar: é uma auto-ajuda um pouco menos tosca, um pouco menos caga-regras, e com algum potencial para críticas posteriores – se as pessoas estiverem aptas e dispostas a tanto.
Além da branquitude de todos (exceto um entrevistado de terceiro plano), chama a atenção que nessa vida só com o básico (levando em conta as necessidades culturais, deixemos claro), carro não é excesso, por mais que se possa locomover com outros meios de transporte; notebook Macintosh não é excesso, por mais que um aparelho de marca genérica seja capaz de alimentar um blog; uma casa de subúrbio americano, com todo seu fausto (e fastio?), não é excesso; ou se for, uma casa própria, ainda que hipercompacta, é imprescindível. Por mais que o discurso perto do final fale em aprofundar os laços comunitários, o tal minimalismo é uma ética profundamente individualista-possessiva, afim aos ideias americanos, liberais, neoliberais, apenas levemente repaginado pela pós-modernidade com ares do Vale do Silício. Comunidade é bom, mas minha propriedade primeiro. Não por acaso os dois protagonistas, que tomam a maior parte do filme, Joshua Fields Millburn e Ryan Nicodemus – autores de um livro sobre a importância de não consumir o que não é essencial que saem em turnê pelos EUA vendendo um livro supérfluo –, conseguem facilmente adentrar a indústria cultural do país, em programas televisivos, para passar sua mensagem “revolucionária”, conforme o segundo negro que tem voz no filme, um qualquer que assiste à palestra dos dois. Seu potencial questionador é aquele que conhecemos aqui no Brasil com filósofos e historiadores pop, ou seja, inofensivo (dou o braço a torcer, Karnal ainda tem alguma substância, ainda que geralmente fique no rés-do-chão; Cortella é de uma precariedade constrangedora, não por acaso até Olavão e Pondé também se considerem filósofos).
Questionamento sobre o modo de produção? Muito superficialmente o filme passa pelo modo de produção de desejo, induzido pela publicidade, mas muito, muito, e bota muito superficialmente, sem nenhuma crítica, está ali só para lembrar: a publicidade nos induz a querer o que não precisamos. Às vezes. Talvez. Mas é do mundo ser assim, não reclamemos, apenas nos vacinemos contra, se for o caso. Produção material? E isso existe? Desigualdade de renda? De oportunidades? Questões sociais, definitivamente, não entram no horizonte dos minimalistas. Sequer a questão ambiental é trazida: não se apela aos desperdício de recursos naturais que a produção de lixo travestido de produtos traz, é tão somente uma tentativa de resposta super narcisista à crise do hedonismo desesperançado do consumismo desenfreado – menos mal que não se desenha, não no filme, como uma religião laica, onde há pecado porém não há deus. E nisso o título é explícito na precariedade dos ideais ali expostos, do egocentrismo, do etnocentrismo do tal minimalismo ético: ouso dizer que no mundo atual, as coisas importantes ainda são a fome, a miséria, o desmatamento, o trabalho alienado, a falta de perspectivas, questões que atingem a enorme maioria dos seres humanis; diminuir o consumo só é algo importante se você não passa fome, se você tem liberdade para escolher onde trabalhar, se vai trabalhar, se quer morar numa casa grande ou pequena, ter carro ou não. Com muito boa vontade, 10% da população mundial talvez esteja nesse patamar.
Ainda assim, para muitos, mesmo nestes Tristes Trópicos, Minimalism: a documentary about the important things pode ser um despertar da consciência. Se for alguém mais crítico – como este escriba se considera – vai ajudar a repensar alguns hábitos (e se indignar com tudo o que o filme negligencia). Se for crítico só até onde não incomoda (como certo pessoal das esquerdas (brancas) da zona sul carioca, zona oeste paulistana), vai aderir a uma onda que pode ser nova moda hypster de expressão da individualidade via consumo gourmet.

09 de julho de 2019