quinta-feira, 28 de maio de 2020

"Comunistas", atestados de pureza e empecilhos para uma união pela democracia


Bolsonaro deu hoje, 28 de maio, mais um piti de machão (crê ele ser de machão) e avisou que "acabou, porra!". Não fui atrás das reações a seu ato, mas desconfio que haja vários proeminentes políticos, jornalistas, intelectuais e formadores de opinião dizendo que "agora Bolsonaro passou dos limites", com uma certeza e amnésia indefectíveis, tal qual quando falaram a mesma frase dois, três, cinco, dez dias atrás; ignorando que Bolsonaro ultrapassou os limites em 1999, ao defender publicamente na tevê o assassinado do presidente da República. Depois disso não havia mais limites, era apenas conivência com um deputado do baixíssimo clero, e depois com um aliado de ocasião das elites nacionais e internacionais, que acabou por se tornar presidente. Esse papo de limite me lembra as aulas de física do segundo grau (que eu ia bem mal, por sinal), a Lei de Hooke, F=k.x, sendo que para Bolsonaro o k, que marca a constante elástica, tende ao infinito, e só será mesmo rompido quando for tarde demais para seus críticos dizerem que ele "ultrapassou os limites", pois ele terá realizado aquilo que é seu desejo: "a Constituição sou eu".
Enquanto isso, apesar de sabido da necessidade de se formar grandes frentes de respostas e ações - uma frente pela democracia formal que em tese vivemos, uma frente antifascista, e uma frente progressista -, as complicações postas pelos atores envolvidos nos fazem antes ter esperança numa quimera, de uma união formada da urgência imperiosa, do que de uma costura bem feita e organizada. E se acaso acontecer a união pela democracia - a frente mais premente -, não me surpreenderia que seja totalmente atrelada a algum projeto conservador, mesmo fascista, e às esquerdas não restar nada além que aderir, sem perspectivas para o depois - é o preço que se paga por não conseguir abandonar certo narcisismo que distorce a avaliação da própria força frente o contexto (e não se trata aqui de se render à "utopia do real", mas reconhecer que as esquerdas, via de regra, abandonaram o trabalho de base e estão, sim, muito fragilizadas, para além do bate cabeça das lideranças).
Se há dificuldade das esquerdas em chegar a um entendimento de defesa da democracia mais rasteira - essa que permite que se discutam os problemas sociais e se apresente propostas de soluções alternativas -, que dizer da necessidade de se unir a forças da direita democrática para barrar alternativas fascistas que se desenham em modelitos menos toscos que os atuais ocupantes do Planalto - esses que dizem que vidas importam mas seguem fomentando chacinas de pretos pobres periféricos, como se o problema do vírus fosse prejudicar os números de sua polícia.
Porém, mesmo uma união menos ampla, entre esquerdas e/ou forças progressistas, tem parecido difícil de acontecer, justo porque o modo de pensar não difere muito do pensamento neofascista dos bolsonariamos - sinal dos tempos, talvez -, apenas diferindo cosmeticamente. 
Se soa anedótico que todo mundo que rompa - ou apenas que não se alinhe imediata e acriticamente - com Bolsonaro se torne "comunista", as esquerdas são apenas um pouco (não muito) mais disfarçadas nesse quesito, ao cobrarem atestado de pureza para quem quiser estar ao seu lado na luta contra o fascismo e por um mundo mais justo. Pior: ao menos o bolsonarianismo repele aqueles que se afastaram, parte das esquerdas tem a proeza de repelir aqueles que se aproximam: a enxurrada de críticas a admitir Felipe Neto ao seu lado, por ele ter apoiado o golpe, mesmo ele fazendo publicamente autocrítica e atacando pontos caros do pensamento conservador, como a meritocracia, talvez aponte para um saber inconsciente da sua impotência para pôr em ação tudo o que gostaria - por conta tanto da vida real, da política real, do mundo real, quanto da fraqueza do trabalho de base e tibieza das lideranças -, que prefere se fechar num gueto, na garantia de não precisar ser cobrada por seus erros depois.
Parece-me que falta a nós uma leitura básica e não cristã, não moralista de Maquiavel: a ética política não é a ética das relações pessoais, antes das relações de poder; assim como as relações políticas são feitas com vistas ao futuro, mas com base no presente, afinidades presentes num contexto presente - o tal "wishfull thinking", as "profecias autorrealizáveis", não funcionam nem mesmo nos mercados de dinheiro fictício, como provou Soros, em 2002, com seu "ou Serra ou o Caos". Cobrar atestado de pureza de quem quiser lutar ao lado ou temer se unir a alguém que será adversário no futuro é o caminho para irrelevância - se não for para a derrota. 
Em 1983-1984 estavam no mesmo palanque políticos conservadores de famílias tradicionais, lideranças da esquerda pré-64, intelectuais de vários matizes e capacidades, um líder sindicalista em ascensão, políticos egressos da Arena: caminhos diversos que convergiram nas Diretas Já, e logo divergiram no caminhar da balbuciante democracia brasileira. Uma frente ampla feita apenas de poucos que concordam em tudo não será ampla, nem será efetiva - e o momento que vivemos nos pede efetividade antes de tudo, como condição para poder seguir trabalhando com as utopias que nos mobilizam.

28 de maio de 2020

PS: falo das esquerdas por ser o campo no qual me incluo, mas não quero com isso responsabilizar exclusivamente as esquerdas pela dificuldade em formar essa união pela democracia ou contra o fascismo. É notório que (boa) parte da direita, aproveitando de sua superioridade na correlação de forças atual, tenta vincular a defesa da democracia com reformas estatais anti-povo, às quais as esquerdas se opõem radicalmente. Vale notar a diferença para Macron, por exemplo, que suspendeu as propostas polêmicas desse tipo em favor de centrar na questão do combate à pandemia, conseguindo assim uma efetiva união nacional.

PS2: como de costume, não sei escolher título.

terça-feira, 28 de abril de 2020

O pensamento mágico ao qual nos agarramos

Uma das (muitas) coisas que a pandemia de coronavírus escancarou é nossa (extrema) dependência do pensamento mágico. Trata-se de algo desde sempre evidente e utilizado, mas que neste momento ganha contornos grotescos - justo por não estarmos (ainda) no fim da linha, quando vale apelar para (quase) qualquer coisa.
Foto de Adrien Olichon
https://bit.ly/2WjA0Tn
Como seres inseridos na cultura e sujeitos do inconsciente, penso que o que chamo aqui de "pensamento mágico" seja algo normal na nossa forma de se relacionar com o mundo: não damos conta de compreender plenamente o que acontece em nosso entorno, não somos capazes de entender tudo o que se passa em nosso interior, o apelo a causalidades simplistas e "mágicas" é uma forma de podermos lidar com esses desconhecimentos e seguirmos nossa vida quotidiana. A questão maior é até que ponto esse tipo de pensar (e sentir) está arraigado em nós, forçando negar a realidade óbvia - a começar pela nossa própria ignorância (e impotência) - em favor de projeções simplistas, frutos do desejo - individual ou socialmente compartilhado.
Os exemplos nesta pandemia abundam. Logo no início, minha mãe conta que uma mulher na farmácia a interpelou e explicou: bastava não ficar pensando no vírus, que isso resolvia: o problema era que o pensamento atraía o vírus. Minha mãe, ainda que sem formação universitária, é consideravelmente cética e inteligente, respondeu que não sabia do vírus ser capaz de ler pensamentos, e por ora preferia seguir o isolamento social, mesmo. A mulher era a versão quântica da ação do presidente: enquanto no mundo se discutia como minimizar a pandemia e proteger a população, aqui discutíamos se o vírus existia realmente (afinal, ninguém nunca viu o vírus transitando pela cidade), se a pandemia era de verdade; e caso fosse, se era fruto do avanço humano sobre biomas desconhecidos ou uma arma comunista feita em laboratório. Mortos? Todo mundo vai morrer um dia.
Desde o início, pastores mercadores da fé e aproveitadores da ignorância já venderam rezas milagrosas aos borbotões, já exorcizaram o vírus, intimaram-no a sair do país - e isso feito não como um pedido de ajuda a um deus todo poderoso e déspota, mas como ordem a um deus vertido em office boy de treisoitão na cintura. E se não é deus em pessoa, ciências milagrosas que despontam: por quanto tempo, sem qualquer base que não achismos, discutimos a cura instantânea e perfeita com cloroquina, ao invés de insistirmos no isolamento social? Com a ciência não messiânica demonstrando que a cloroquina não é tão milagrosa, busca-se um novo elixir: o vermífugo do astronauta não durou dois dias, agora temos o anticoagulante - os EUA já tiveram água sanitária. E não se trata de dizer que há um remédio com possibilidade de alta eficácia no tratamento contra o vírus, o anúncio é que a descoberta seria da cura pura e simples: um estalar de dedos, dois comprimidos e a vida normal de volta em quarenta e oito horas.
Como disse, esse tipo de pensamento só floresce com mais força agora, mas não é novidade. Lembro do professor de tapeçaria no Senai, que anunciava que sei lá que raiz curava tal doença, que havia um óculos que acabava com a miopia, mas que os médicos e as farmacêuticas ocultavam da população porque com a cura acabaria sua fonte de lucro - médicos, segundo ele, não são confiáveis. Claro, médicos prescrevem, muitas vezes, tratamentos longos, custosos (economicamente e mesmo de tempo e paciência), não raro querem alterar dietas, hábitos de vida do paciente - e comumente cometem erros médicos por displicência. A internet está cheia de diagnósticos irrefutáveis e curas infalíveis: médico para quê? Perda de tempo (e tempo é dinheiro!). Que venha o novo emplastro!
Das religiões, os exemplos são ostensivos, desnecessários de serem elencados. Mesmo em certas camadas da classe média dita progressista e ilustrada abundam crenças pseudoreligiosas (ou seriam pseudocrenças religiosas) de puro pensamento mágico: coaching quântico, animal ancestral, vidas passadas, astrologia, reiki e outras coisas do tipo. Porém, a "boa" religião, aquela que não se utiliza da boa-fé alheia para enriquecer e/ou acumular poder (e não me refiro apenas a seitas cristãs), também ela trabalha com o pensamento mágico, e se souber seu papel, serve justo para canalizar essa necessidade, assim como para conformar a pessoa à sua insuperável ignorância, por mais conhecimento que adquira (neste ponto, lembro sempre que me decidi ateu e parei com intermináveis discussões sobre deus ao ler um artigo do Frei Betto, em que ele pontuava que fé e conhecimento são duas áreas separadas, sem correlação). Há também a pseudociência - e nem falo dos sites de internet, e sim dos charlatões com PhD, mesmo: antes de Didier Raoult e o milagre da cloroquina, tivemos Lair Ribeiro acabando com o câncer de Marcelo Rezende sem quimioterapia (dizem que depois de morto, a doença estancou).
A espera do milagre pela ciência, se em parte se dá pela nossa subjetivação ainda fortemente influenciada pelo pensamento religioso - em que a necessidade de crer é imperativo, duvidar (sem ser em nome de outra crença) seria o inferno na Terra -, em outra é fruto da própria omissão das ciências e da academia em favor um ensino mais amplo e mais robusto da ciência, seus pressupostos, suas bases. O que temos é a apresentação, seja no ensino básico, seja na imprensa, de uma vulgata científica que apela à crença, a vulgarização extremamente rasa e rasteira de resultados ou, pior, de possíveis resultados. Para o vulgo, a ciência é apenas outra crença e os métodos de uma pesquisa exitosa não diferem em muito de uma boa reza: não adianta culpar o ignorante se quem tem o conhecimento e a possibilidade de instruí-lo é negligente ao repassá-lo. No cinema, uma boa caricatura de como a ciência é chega ciência aos grande público, de como são vistos os cientistas, está num filme dos seus primórdios: Viagem à Lua, do Georges Meliès, de 1902. Nele, homens com conhecimentos vindo da tradição (ao estilo da escolástica), vestidos em túnicas de magos, que fazem mágicas (como transformar as lunetas em banquetas) e tem ideias mirabolantes (como viajar à lua)! E só na hora de se apresentarem fora de seu círculo é que vestem fato completo, para ganhar a impressão de pessoas sérias e sisudas.
Por fim, o pensamento mágico na política e no pensamento social. Apesar de todos os alertas dos cientistas, dos pesquisadores, da OMS, muitos não acham que vai ser assim tão grave, porque o Brasil seria, sei lá, uma terra abençoada por deus, porque o brasileiro pega imunidade de tudo pulando no esgoto. Antes do grotesco com o vírus, já tínhamos um exemplo grotesco com o "vírus da corrupção": era tirar o PT (depois virou acabar com o PT), que a corrupção acabaria no país: 500 anos de história permeadas por relações pouco republicanas e alienar um partido resolveria. Ou então as reformas milagrosas dos neoliberais: das privatizações de FHC à reforma previdenciária de Bolsonaro-Guedes-Globo-STF, passando pela reforma trabalhista de temer. Que tal o fato de um homem, dotado apenas da vontade, ser capaz de mudar "tudo isso que está aí"? Convém lembrar que antes dele, no início deste século, havia quem dissesse que era "só você querer que amanhã assim será", miraculosamente, num estalo de dedo: em 48 horas o Brasil se resolveria. Ainda que hoje esse pensamento mágico na política seja instrumentalizado pela extrema direita (PSDB de Doria Jr é extrema direita, e sua repaginação durante o coronavírus não oculta sua política genocida nas periferias), ele já o foi também pela esquerda, que muitas vezes não sentiu necessidade de combatê-lo. Novamente a um exemplo do cinema: Encouraçado Potenkin, de Sergei Einsensteim (1925): basta um chamado à consciência de um dos marinheiros revoltados para que os artilheiros da embarcação deixem de cumprir a ordem do comandante, sem ninguém titubear, e estar pronta a revolta dos opressores contra os oprimidos. Consciência de classe instantânea, não dá tempo nem de preparar um miojo.
Talvez quem chegou até este ponto do texto esteja se perguntando: e como sair desta encruzilhada? Imaginar que haja uma resposta e que ela viria num texto é outro sintoma de apego a um pensamento mágico. O que podemos saber é que não há uma resposta pronta, sequer que acharemos algo de aplicação imediata para sairmos desse cipoal. Se a crise do coronavírus abre uma janela de oportunidades para começar a nos desvencilhar do pensamento mágico nessa (des)medida (o podcast Luz no Fim da Quarentena, do Foro de Teresina, me parece ser uma boa forma de divulgação científica sem vulgarização, mas não tenho condições de avaliar se alguém sem qualquer familiaridade com ciência dá conta de acompanhá-lo), é também uma janela de oportunidades para os oportunistas de plantão aprofundarem esse irracionalismo.
O que não podemos é seguir achando que a falta de reflexão e autorreflexão é privilégio de determinado grupo - de direita ou esquerda: por conta do espírito do tempo, estamos imersos nesse desejo de respostas rápidas, de fácil aplicação, que não demandam muitos esforços e não tem efeitos colaterais, alternativas que só podem ser milagres ou engodos. Ou aceitamos que precisamos trabalhar, trabalho pequeno, de dia a dia, sem glamour, com raros eventos interessantes para serem postados nas redes sociais, acompanhado de profunda reflexão crítica de nosso fazer e de nossas crenças - assim como nossa necessidade de crer -, ou não haverá novo mundo como consequência da pandemia: apenas novos elementos de um velho mundo conhecido, cômodo e sufocante.

28 de abril de 2020