Bolsonaro deu hoje, 28 de maio, mais um piti de machão (crê ele ser de machão) e avisou que "acabou, porra!". Não fui atrás das reações a seu ato, mas desconfio que haja vários proeminentes políticos, jornalistas, intelectuais e formadores de opinião dizendo que "agora Bolsonaro passou dos limites", com uma certeza e amnésia indefectíveis, tal qual quando falaram a mesma frase dois, três, cinco, dez dias atrás; ignorando que Bolsonaro ultrapassou os limites em 1999, ao defender publicamente na tevê o assassinado do presidente da República. Depois disso não havia mais limites, era apenas conivência com um deputado do baixíssimo clero, e depois com um aliado de ocasião das elites nacionais e internacionais, que acabou por se tornar presidente. Esse papo de limite me lembra as aulas de física do segundo grau (que eu ia bem mal, por sinal), a Lei de Hooke, F=k.x, sendo que para Bolsonaro o k, que marca a constante elástica, tende ao infinito, e só será mesmo rompido quando for tarde demais para seus críticos dizerem que ele "ultrapassou os limites", pois ele terá realizado aquilo que é seu desejo: "a Constituição sou eu".
Enquanto isso, apesar de sabido da necessidade de se formar grandes frentes de respostas e ações - uma frente pela democracia formal que em tese vivemos, uma frente antifascista, e uma frente progressista -, as complicações postas pelos atores envolvidos nos fazem antes ter esperança numa quimera, de uma união formada da urgência imperiosa, do que de uma costura bem feita e organizada. E se acaso acontecer a união pela democracia - a frente mais premente -, não me surpreenderia que seja totalmente atrelada a algum projeto conservador, mesmo fascista, e às esquerdas não restar nada além que aderir, sem perspectivas para o depois - é o preço que se paga por não conseguir abandonar certo narcisismo que distorce a avaliação da própria força frente o contexto (e não se trata aqui de se render à "utopia do real", mas reconhecer que as esquerdas, via de regra, abandonaram o trabalho de base e estão, sim, muito fragilizadas, para além do bate cabeça das lideranças).
Enquanto isso, apesar de sabido da necessidade de se formar grandes frentes de respostas e ações - uma frente pela democracia formal que em tese vivemos, uma frente antifascista, e uma frente progressista -, as complicações postas pelos atores envolvidos nos fazem antes ter esperança numa quimera, de uma união formada da urgência imperiosa, do que de uma costura bem feita e organizada. E se acaso acontecer a união pela democracia - a frente mais premente -, não me surpreenderia que seja totalmente atrelada a algum projeto conservador, mesmo fascista, e às esquerdas não restar nada além que aderir, sem perspectivas para o depois - é o preço que se paga por não conseguir abandonar certo narcisismo que distorce a avaliação da própria força frente o contexto (e não se trata aqui de se render à "utopia do real", mas reconhecer que as esquerdas, via de regra, abandonaram o trabalho de base e estão, sim, muito fragilizadas, para além do bate cabeça das lideranças).
Se há dificuldade das esquerdas em chegar a um entendimento de defesa da democracia mais rasteira - essa que permite que se discutam os problemas sociais e se apresente propostas de soluções alternativas -, que dizer da necessidade de se unir a forças da direita democrática para barrar alternativas fascistas que se desenham em modelitos menos toscos que os atuais ocupantes do Planalto - esses que dizem que vidas importam mas seguem fomentando chacinas de pretos pobres periféricos, como se o problema do vírus fosse prejudicar os números de sua polícia.
Porém, mesmo uma união menos ampla, entre esquerdas e/ou forças progressistas, tem parecido difícil de acontecer, justo porque o modo de pensar não difere muito do pensamento neofascista dos bolsonariamos - sinal dos tempos, talvez -, apenas diferindo cosmeticamente.
Se soa anedótico que todo mundo que rompa - ou apenas que não se alinhe imediata e acriticamente - com Bolsonaro se torne "comunista", as esquerdas são apenas um pouco (não muito) mais disfarçadas nesse quesito, ao cobrarem atestado de pureza para quem quiser estar ao seu lado na luta contra o fascismo e por um mundo mais justo. Pior: ao menos o bolsonarianismo repele aqueles que se afastaram, parte das esquerdas tem a proeza de repelir aqueles que se aproximam: a enxurrada de críticas a admitir Felipe Neto ao seu lado, por ele ter apoiado o golpe, mesmo ele fazendo publicamente autocrítica e atacando pontos caros do pensamento conservador, como a meritocracia, talvez aponte para um saber inconsciente da sua impotência para pôr em ação tudo o que gostaria - por conta tanto da vida real, da política real, do mundo real, quanto da fraqueza do trabalho de base e tibieza das lideranças -, que prefere se fechar num gueto, na garantia de não precisar ser cobrada por seus erros depois.
Parece-me que falta a nós uma leitura básica e não cristã, não moralista de Maquiavel: a ética política não é a ética das relações pessoais, antes das relações de poder; assim como as relações políticas são feitas com vistas ao futuro, mas com base no presente, afinidades presentes num contexto presente - o tal "wishfull thinking", as "profecias autorrealizáveis", não funcionam nem mesmo nos mercados de dinheiro fictício, como provou Soros, em 2002, com seu "ou Serra ou o Caos". Cobrar atestado de pureza de quem quiser lutar ao lado ou temer se unir a alguém que será adversário no futuro é o caminho para irrelevância - se não for para a derrota.
Em 1983-1984 estavam no mesmo palanque políticos conservadores de famílias tradicionais, lideranças da esquerda pré-64, intelectuais de vários matizes e capacidades, um líder sindicalista em ascensão, políticos egressos da Arena: caminhos diversos que convergiram nas Diretas Já, e logo divergiram no caminhar da balbuciante democracia brasileira. Uma frente ampla feita apenas de poucos que concordam em tudo não será ampla, nem será efetiva - e o momento que vivemos nos pede efetividade antes de tudo, como condição para poder seguir trabalhando com as utopias que nos mobilizam.
28 de maio de 2020
PS: falo das esquerdas por ser o campo no qual me incluo, mas não quero com isso responsabilizar exclusivamente as esquerdas pela dificuldade em formar essa união pela democracia ou contra o fascismo. É notório que (boa) parte da direita, aproveitando de sua superioridade na correlação de forças atual, tenta vincular a defesa da democracia com reformas estatais anti-povo, às quais as esquerdas se opõem radicalmente. Vale notar a diferença para Macron, por exemplo, que suspendeu as propostas polêmicas desse tipo em favor de centrar na questão do combate à pandemia, conseguindo assim uma efetiva união nacional.
PS2: como de costume, não sei escolher título.
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