segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Sobre partidas em tempos necrófilos

Para César Bento.
"A morte é um risco para quem está vivo". Por anos essa foi uma frase repetida em minha família. Por seis anos, para ser mais preciso: de setembro de 2009 a novembro de 2015, tempo em que meu pai (e, por tabela, eu, e minha mãe e meu irmão) conviveu com um câncer (e erros médicos). Era uma forma de desanuviar o ambiente sem negar a realidade. Foram seis anos com a morte fazendo voos rasantes, em que por mais que meu pai tivesse incluído a doença na sua vida e seguido a viver normalmente (a quimioterapia passou a ser parte da rotina), eu ia dormir e acordava sempre com o receio de uma notícia fatídica, que se não fosse o fim repentino, fosse seu prenúncio para breve, sem chances de reverter. O estresse em viver sob esse medo permanente é grande e desgastante.

Logo vai fazer um ano que vivemos coletivamente sob esse mesmo voo rasante da morte, potencializado pela nossa sociedade (e sociabilidade) necrosada e nossos necropolíticos, necroempresários, necromídia, necrojuízes. Bolsonaro repete a frase inicial deste texto com sentido oposto, de negar a realidade e fugir de suas responsabilidades. Os que têm os pés no chão vivemos em um medo permanente: vai de amigos, conhecidos e desconhecidos, até minha mãe, pertencente ao grupo de risco, passando por mim próprio, que sigo vivo e tendo que sair de casa todo dia para trabalhar (hoje soube de outra colega infectada, fica o medo e o desejo de uma recuperação plena). 2020 foi o primeiro ano em 21, ou seja, desde que saí da casa dos meus pais, em que não tive notícia de nenhum suicídio de alguém próximo ou companheiro/amigo de alguém próximo - não sei se isso tem algum lado positivo: foram tantas mortes que pode ser que uma delas tenha sido um suicídio disfarçado.

Curiosamente, para o covid não perdi ninguém próximo. Mas todo esse clima parece fazer as mortes mais pesadas, mais supérfluas - no sentido de que não precisavam acontecer agora. E a impossibilidade de velar torna tudo mais irreal e mais dolorido, difícil de acreditar. Em setembro, faleceu minha avó - de idosa, mesmo. Senti que ali se rompia o último elo com minha família, meus antepassados - faço questão de não ter contato com meus familiares, salvo duas exceções -, e lamentei que fazia quase dois anos que não a via - nem nunca mais a verei.

Hoje acordei com a notícia da perda do César, um grande amigo, que desde maio estava às voltas com uma meningite bacteriana. Há quatro dias fiz os votos habituais de feliz aniversário, enfatizando que tivesse antes de tudo saúde. Ainda que soubesse que estava enfermo, nunca quis acreditar que fosse algo tão grave - e ele também foi sempre discreto quanto aos detalhes do seu estado de saúde -, daí sua partida precoce ter me pego de surpresa - e qual partida não é precoce para quem fica? 

César sempre com mil histórias e uma ótima verve para contá-las (desde sempre eu insistia que ele devia escrever essas histórias e lançar um livro, já tinha até pré negociado uma editora), que iam de encontros chatos com gente famosa a rolês exóticos com pessoas que seriam famosas no futuro, causos da cena underground paulistana dos anos 1990, com pequenas infrações legais e muitas loucuras; um cara quadrado de segunda a sexta que desbundava com louvor nos finais de semana; um dos amigos que eu sempre ia pedir opinião sobre arquitetura e decoração e referências sobre São Paulo (ficou me devendo de mostrar uma pretensa plataforma abandonada na 23 de maio); que ganhou o apelido de "Bicha má da pirogada" porque nos encontros em minha casa sempre trazia uma caixa de chocolate com açúcar (sendo que eu não posso comer açúcar) e sabia polemizar como poucos (ousasse alguém criticar o excesso vegano e ele contava como ele fazia para matar um coelho, justificando que a carne ficava melhor assim que quando comprada já do bicho morto, inclusive contando do drama do Guilherme, seu companheiro de anos, quando via ele chegando com os animais); era também um talentoso cenógrafo e iluminador cênico - eu não só gostava muito dele, como o admirava. Como minha avó, fazia quase dois anos que não o via - a última vez ele fora comigo para ver um apartamento, ficou devendo conhecer minha nova casa, e dói saber que não conhecerá. Há todo um sem sentido que essa perda fez brotar em mim nesta segunda-feira.

Em setembro de 2015, pouco antes de meu pai ser internado para a cirurgia que abreviaria sua vida, tivemos que cortar o pinheiro de estimação da casa (no Google Street View ele ainda está lá, como que a negar o que veio depois). Após cortá-lo, enquanto fazia o luto (e sem imaginar o que nos esperava), minha mãe soltou a frase que me parece definidora do nosso estar no mundo, ainda mais em momentos como esse: "viver é ir morrendo aos poucos".

 25 de janeiro de 2021

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Tempo de campanha e a despolitização das eleições

O assunto é tratado apenas marginalmente nas análises das eleições, porém julgo ser de grande importância para compreender os resultados dos últimos três pleitos, com o crescimento da direita, em especial da extrema: o tempo de campanha eleitoral. Não falo da divisão do tempo da propaganda entre os partidos - ainda que isso também influencie -, e sim do tempo da campanha na rua e nas mídias.

Com 17 segundos, Boulos conseguiu ir ao segundo turno em São Paulo e em duas semanas com dez minutos diários, conseguiu dobrar seus votos, angariando 94% dos votos dos candidatos cujo partidos podem ser postos à esquerda do espectro político (aí incluído, mesmo que a fórceps, os eleitores do Márcio França). Pode ser otimismo irrealista meu, mas julgo que esse resultado teria sido muito melhor se não fossem as reformas políticas operadas desde 2015.

A minirreforma eleitoral de 2015, a pretexto de diminuir os custos das campanhas - proibidas de financiamento empresarial -, reduziu de 90 para 45 dias o tempo da campanha política - e de 45 para 35 o tempo de propaganda no rádio e na tevê. Ademais, para a eleição de 2018, o tempo do horário eleitoral (erroneamente chamado de) gratuito nas concessões públicas de radiodifusão diminuiu de dois blocos diários de 30 minutos para dois de 10 minutos, além de inserções breves ao longo da programação. (Se eu fosse tentar encaixar na terminologia do autor que sou especialista, o francês Guy Debord, diria que tais alterações levaram à reedição da Lei Falcão dentro do modelo do “espetacular difuso”, com o detalhe de que já superamos a dicotomia “espetacular difuso” x “espetacular concentrado”, estaríamos em tempos de “espetacular integrado”, e as regras anteriores se encaixariam nesse recorte).

Faço aqui um exercício de pura especulação: não fosse essa limitação de tempo, os resultados das eleições que levaram Doria Jr à prefeitura, em 2016; Bolsonaro ao Planalto, em 2018, e Covas, à prefeitura de São Paulo, este ano, teriam sido diferentes. Talvez acabassem eleitos, contudo as disputas tenderiam a ser mais acirradas - e, por consequência, muito mais sujas.

A diminuição de tempo do horário eleitoral gratuito de uma hora para vinte minutos diários fez crescer a importância das inserções breves durante a programação, feitos de slogan publicitários imediatos, sem tempo para desenvolver uma ideia - seja proposta ou desconstrução do adversário -, mesmo que altamente ideologizada. É a adestração a la Pavlov: puro ato reflexo, nada de reflexão - algo muito afim aos tempos de internet, caixas de comentários, WhatsApp, fake news e afins. Saem as propostas vazias entram os slogans vazios. É também forçar a política a uma pretensa irrelevância: para não atrapalhar a novela, o futebol, o jornal direcionado, diminui-se a voz dada diretamente aos candidatos: que percam todos, mas que tirem a voz daqueles que podem contradizer William Bonner ou a corrente de WhatsApp (importante em tempos de criminalização das esquerdas e dos movimentos sociais).

O grande momento da despolitização extrema, entretanto, é a diminuição do período eleitoral. A redução de três meses para um mês e meio de campanha nas ruas dificulta o debate e a elaboração de propostas (mesmo que gerais), dificulta o trabalho de desfazer mentiras divulgadas pela internet, de fazer militância na rua, e facilita que candidatos sem qualquer conteúdo vençam. Russomano talvez seja um exemplo do quanto a campanha - e em especial os debates -, por mais precária que seja, é capaz de evidenciar políticos e diferenciá-los dos sabonetes travestidos de políticos: tivéssemos uma semana de campanha e nenhum debate, possível que tivesse sido eleito prefeito da capital; como não é esse o caso, o tempo o força a abrir a boca, e cada vez que faz isso perde apoiadores.

Volto à especulação levantada acima (que pode ser chamada de metafísica, já que impossível de ser posta à prova). Em 2016, Haddad disputava a reeleição. Depois de quatro anos com pouquíssima publicidade - não sei se por estratégia um tanto heterodoxa e arriscada ou se por ingenuidade política arrasadora, em acreditar que haveria, durante seu mandato, “engajamento orgânico”, como se diz na linguagem das redes sociais, enquanto sua gestão e seu partido era massacrados pela mídia -, o então prefeito passa a breve campanha a elencar suas realizações - conforme as pesquisas, sua rejeição cai de 52% para 41%, e sua intenção de votos parte dos 9% para os 16% das urnas, numa onda que começava a crescer, tal qual ocorrera em 2012. Tivesse mais tempo de campanha, Haddad poderia mostrar melhor o que havia feito e pouco publicizado, e talvez fosse para o segundo turno contra o tucano, o que poderia evidenciar o despreparo deste - se suficiente para desbancá-la, é outra história, mas Doria Jr acabaria comprometendo em parte sua imagem. Campanha curta, venceu o candidato do slogan vazio e das fake news (no caso, sobre si próprio, a tal do “João trabalhador”).

Em 2018 a eleição presidencial foi marcada pela facada em Bolsonaro (que muitos preferem chamar de “fakeada”). Até o evento, haviam ocorrido dois debates. Neles o desempenho de Bolsonaro foi pífio, ombro a ombro com Álvaro Dias e Henrique Meirelles, sendo “papado” até pelo Cabo Daciolo. A facada vem em momento mais que oportuno: permite que fuja dos demais debates sob a alegação de estar em recuperação, sem ficar com a pecha de covarde; pode então centrar a campanha nas redes sociais e redes de fake news, ambiente que domina. A se imaginar se tivéssemos um mês e meio a mais de campanha: ou Bolsonaro desidrataria a la Russomano nos debates, ou precisaria de uma facada muito cedo a ponto de poder ser posto em dúvida sua ausência nos últimos debates do turno. Se seria suficiente para que não fosse eleito, impossível até especular, mas é de se acreditar que a dinâmica da eleição seria muito diferente, ou com denúncias de fake news despontando antes, ou com investimentos ainda mais altos nesses meios (para desespero do Véio sonegador da Havan), ou com ataques mais diretos ao seu fascismo por parte, por exemplo, de Alckmin, se notasse que ele não estava garantido no segundo turno.

Do exemplo de 2020, basta lembrar que Covas é um candidato fraquíssimo, não possuía  nada da sua administração para mostrar e sem o antipetismo radical em seu ápice para animar as bases, como ocorrera com seu padrinho: mais tempo de exposição sem as verbas do passado para banhos diários de marketing o obrigaria a se expôr de modo comprometedor. Novamente: não sei se isso alteraria o resultado da eleição, certamente alteraria a dinâmica da disputa. E tão importante nessa desidratação do candidato da direita: as campanhas de Boulos e Tatto retomaram muito da política e da politização há tempos deixado de lado pelas esquerdas com chances de vitória, que preferiam aderir ao discurso centrista do que a ciência política chama de “catch all party” (partido cata-tudo, em tradução livre).

Em resumo, o que quero levantar é que se as esquerdas querem não apenas voltar a ter chances nas disputas eleitorais como, principalmente, ter chances de politizar o debate, vai ser preciso fazer uma contraminirreforma eleitoral, que reestabeleça um tempo razoável para a discussão de programas, propostas, problemas e ideias. Claro, só disputa eleitoral não garante a politização, contudo esses movimentos de redução das campanhas - assim como propostas de eleição geral integrada, cada quatro anos - beneficiam principalmente as candidaturas de direita (muito mais do que as candidaturas dos ocupantes dos cargos, como interpretam alguns analistas). E mais importante que isso: campanha eleitoral serve para aprofundar e exacerbar a discussão sobre política, sobre os rumos da cidade, do estado, do país*, o trabalho político efetivo deve ser feito o tempo todo, todos os anos - aqui, o pós-eleição de Boulos, chamando para discutir os próximos passos e como colaborar na construção de um movimento de massas, mostra que o líder do MTST compreendeu esse ponto e, mais importante, não se furtou da responsabilidade, como fez Haddad e o PT, em 2018. São boas sementes que começam a ser plantadas, ainda que tardiamente; nos cabe agora persistência para semeá-las e paciência para esperar o momento em que esse trabalho render seus frutos.


09 de dezembro de 2020.


* É curioso notar o temor das elites frente às eleições, mesmo numa democracia de baixíssima intensidade como a Brasileira - isso enquanto não derem um golpe ditatorial explícito.