Logo vai fazer um ano que vivemos coletivamente sob esse mesmo voo rasante da morte, potencializado pela nossa sociedade (e sociabilidade) necrosada e nossos necropolíticos, necroempresários, necromídia, necrojuízes. Bolsonaro repete a frase inicial deste texto com sentido oposto, de negar a realidade e fugir de suas responsabilidades. Os que têm os pés no chão vivemos em um medo permanente: vai de amigos, conhecidos e desconhecidos, até minha mãe, pertencente ao grupo de risco, passando por mim próprio, que sigo vivo e tendo que sair de casa todo dia para trabalhar (hoje soube de outra colega infectada, fica o medo e o desejo de uma recuperação plena). 2020 foi o primeiro ano em 21, ou seja, desde que saí da casa dos meus pais, em que não tive notícia de nenhum suicídio de alguém próximo ou companheiro/amigo de alguém próximo - não sei se isso tem algum lado positivo: foram tantas mortes que pode ser que uma delas tenha sido um suicídio disfarçado.
Curiosamente, para o covid não perdi ninguém próximo. Mas todo esse clima parece fazer as mortes mais pesadas, mais supérfluas - no sentido de que não precisavam acontecer agora. E a impossibilidade de velar torna tudo mais irreal e mais dolorido, difícil de acreditar. Em setembro, faleceu minha avó - de idosa, mesmo. Senti que ali se rompia o último elo com minha família, meus antepassados - faço questão de não ter contato com meus familiares, salvo duas exceções -, e lamentei que fazia quase dois anos que não a via - nem nunca mais a verei.
Hoje acordei com a notícia da perda do César, um grande amigo, que desde maio estava às voltas com uma meningite bacteriana. Há quatro dias fiz os votos habituais de feliz aniversário, enfatizando que tivesse antes de tudo saúde. Ainda que soubesse que estava enfermo, nunca quis acreditar que fosse algo tão grave - e ele também foi sempre discreto quanto aos detalhes do seu estado de saúde -, daí sua partida precoce ter me pego de surpresa - e qual partida não é precoce para quem fica?
César sempre com mil histórias e uma ótima verve para contá-las (desde sempre eu insistia que ele devia escrever essas histórias e lançar um livro, já tinha até pré negociado uma editora), que iam de encontros chatos com gente famosa a rolês exóticos com pessoas que seriam famosas no futuro, causos da cena underground paulistana dos anos 1990, com pequenas infrações legais e muitas loucuras; um cara quadrado de segunda a sexta que desbundava com louvor nos finais de semana; um dos amigos que eu sempre ia pedir opinião sobre arquitetura e decoração e referências sobre São Paulo (ficou me devendo de mostrar uma pretensa plataforma abandonada na 23 de maio); que ganhou o apelido de "Bicha má da pirogada" porque nos encontros em minha casa sempre trazia uma caixa de chocolate com açúcar (sendo que eu não posso comer açúcar) e sabia polemizar como poucos (ousasse alguém criticar o excesso vegano e ele contava como ele fazia para matar um coelho, justificando que a carne ficava melhor assim que quando comprada já do bicho morto, inclusive contando do drama do Guilherme, seu companheiro de anos, quando via ele chegando com os animais); era também um talentoso cenógrafo e iluminador cênico - eu não só gostava muito dele, como o admirava. Como minha avó, fazia quase dois anos que não o via - a última vez ele fora comigo para ver um apartamento, ficou devendo conhecer minha nova casa, e dói saber que não conhecerá. Há todo um sem sentido que essa perda fez brotar em mim nesta segunda-feira.
Em setembro de 2015, pouco antes de meu pai ser internado para a cirurgia que abreviaria sua vida, tivemos que cortar o pinheiro de estimação da casa (no Google Street View ele ainda está lá, como que a negar o que veio depois). Após cortá-lo, enquanto fazia o luto (e sem imaginar o que nos esperava), minha mãe soltou a frase que me parece definidora do nosso estar no mundo, ainda mais em momentos como esse: "viver é ir morrendo aos poucos".
25 de janeiro de 2021
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